
CAPA DA EDIÇÃO BRASILEIRA DA OBRA DE FRANÇOIS GUIZOT INTITULADA: "HISTÓRIA DAS ORIGENS DO GOVERNO REPRESENTATIVO NA EUROPA" (Tradução de Vera Lúcia Joscelyne). Rio de Janeiro: Liberty Fund / Topbools, 2008, 827 pp.
A nossa triste realidade é que contamos com um Estado patrimonial mais forte do que a sociedade. A essência deste consiste em que surgiu a partir do alargamento de uma autoridade patriarcal original, que estendeu a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administrá-lo tudo como se fosse propriedade familiar ou patrimonial. Essa é a caracterização que desse tipo de Estado faz Max Weber (1864-1920) em Economia e Sociedade (1920), sua obra principal. O poder, entre nós, tem donos. Isso já tinha sido destacado por Raimundo Faoro (1925-2003), no seu clássico livro Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1958), por Antônio Paim (1927-2021) em A querela do estatismo (1978) e por José Osvaldo de Meira Penna em O dinossauro: uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas (1988).
O Estado Patrimonial emergiu entre nós de uma forma vertical, com a sociedade como testemunha passiva do processo. Convenhamos que o Estado brasileiro não surgiu de uma assembleia de pessoas que lutavam com a antiga nobreza para ver representados os seus interesses no Parlamento. A primeira organização política que conhecemos foi a das Sesmarias Hereditárias, outorgadas na América pelo Rei de Portugal, no século XVI, aos seus fiéis seguidores e colaboradores. “Portugal não conheceu o feudalismo” frisava o criador da historiografia portuguesa, o grande Alexandre Herculano (1810-1877), que era um espírito liberal da escola de François Guizot (1787-1874). A nossa primigênia realidade no universo político foi o Estado Patrimonial, cuja cabeça era o Rei de Portugal, o qual, na entrada da modernidade, era caracterizado como “mercador de mercadores”, segundo frisa Lúcio de Azevedo (1855-1933) na sua obra Épocas de Portugal econômico (1929).
É possível passar desse tipo de Estado para um outro, em que a sociedade tenha um papel ativo? Weber considera que sim. Esse modelo de Estado mais ativo foi definido, pelo sociólogo alemão, como Estado contratualista. Este se caracteriza porque as instituições surgem não de uma autoridade patriarcal originária, mas de um contrato social elaborado entre as classes em pugna pela posse do poder, como se deu na Europa Ocidental. O momento de consolidação do Estado no Brasil corresponde, numa primeira etapa, à criação do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves (1815-1822) e, num segundo momento, à substituição daquele pelo Império do Brasil (1824). O constitucionalista Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), inspirado em Benjamin Constant de Rebecque (1769-1830), precursor dos doutrinários franceses, foi quem delineou os aspectos básicos da nossa representação parlamentar, colocando à frente da mesma o Parlamento e o Poder Moderador, exercido pelo Imperador e o seu Conselho de Estado. Esse seria o primeiro passo para transmigrar da modalidade de Estado Patrimonial para um modelo de Estado Contratualista. Com o Ato Adicional (1841) ficou definida claramente a feição deste, reconhecido inclusive por liberais da têmpera de François Guizot.
Com a queda do Império em 1889 e a sua substituição por uma República de cunho oligárquico, terminamos perdendo o contato com a defesa da representação política. O Congresso, no ciclo republicano, foi polarizado pela figura cada vez mais forte do Executivo, tendo culminado todo esse processo histórico com o Ciclo Getuliano, no qual o Brasil abandonou o aperfeiçoamento da representação e a definitiva consolidação de um presidencialismo de tipo parlamentar, como o existente em países como a França, por exemplo. Ficamos reduzidos a um Estado Patrimonial presidencialista.
Os Estados contratualistas teriam surgido, segundo Weber, ali onde houve feudalismo de vassalagem e a sociedade se diversificou em grupos de interesse. Dois foram os grupos iniciais que, ao longo da Idade Média, configuraram as classes que lutavam pela posse do poder: a nobreza, proprietária das terras e das armas e a nascente burguesia das cidades, que se tornou poderosa ao acumular dinheiro decorrente do comércio e da venda dos seus serviços, na prática do artesanato e na nascente indústria. “Die Stadtluft macht Frei” (“O ar da cidade torna o homem livre”), rezava o adágio alemão, que lembrava a origem citadina da nascente burguesia. No modelo contratualista surge, como consequência da diversificação da sociedade em classes aglutinadas ao redor da defesa dos seus interesses, a preocupação por aperfeiçoar os mecanismos da representação. Estes, no início da Modernidade, eram aglutinados ao redor das duas casas do Parlamento, na Inglaterra: A Câmara dos Lordes (representativa da Nobreza), que tinha como finalidade garantir a representação dos interesses da sua classe, que giravam ao redor da posse da terra e das armas. Essa câmara passou a representar a Tradição. A outra casa era a Câmara dos Comuns, que lidava com a representação dos interesses dos comerciantes, inicialmente, e dos proprietários das máquinas na nascente indústria, nos primórdios do Capitalismo, ao longo dos séculos XVII e XVIII. A política, nesse contexto, não constituiria mais a dominação de um senhor todo-poderoso sobre uma sociedade passiva (como ocorria no mundo do Patrimonialismo). Aquela seria definida por François Guizot como “luta de classes”.
A política tinha como essência a defesa dos interesses das classes que se defrontavam na luta pelo poder. Não podendo se eliminar as duas classes iniciais, Nobreza e Burguesia, agiram através de partidos que propugnavam pela conquista do poder. Não conseguindo a classe dos Nobres se sobrepor à dos Burgueses, terminaram chegando a um modelo de exercício do poder como negociação de interesses nas duas instâncias, representadas pela Câmara Alta (defensora dos interesses dos proprietários da terra e das armas, os interesses tradicionais da nobreza) e pela Câmara Baixa ou Câmara dos Comuns (defensora dos interesses da nascente burguesia, consolidados ao redor da luta pela liberdade de comércio e da venda do trabalho no artesanato ou na nascente indústria). Após o ciclo das guerras civis entre as duas classes, no final do século XVII, na Inglaterra, ao ensejo da Revolução Gloriosa de 1688, consolidou-se a formação do Estado Moderno como contrato social entre as classes em pugna pela posse do poder, representadas no Parlamento.
Nas Ilhas Britânicas e nos países por elas influenciados (como Estados Unidos, Canadá e vários países da Europa Ocidental) a diferenciação entre classes sociais e a luta pela defesa dos seus interesses se efetivou mediante uma organização do território que favorecia a defesa da representação dos interesses materiais das classes. Foi assim como, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, se consolidou a organização dos Distritos Eleitorais. Cada país, na Europa Ocidental, foi dividido nesses distritos, com uma população mais ou menos equivalente e onde se organizava a eleição tanto dos representantes municipais (nas câmaras de vereadores), regionais (nas assembléias provinciais) ou nacionais (no Parlamento).
Nos países do continente europeu onde não ocorreu a organização dos distritos eleitorais, não se efetivou a contento o controle dos eleitores sobre os eleitos, pois o sistema proporcional era amplo demais e se projetava sobre grandes extensões territoriais, em que se tornava difícil a concretização da representação em pequenas unidades geográficas. Esse fenômeno ocorreu principalmente nos confins da Ilha europeia: na Península Ibérica e na Rússia, onde terminou prevalecendo “um Estado mais forte do que a sociedade”, como apontava Karl Wittfogel (1896-1988) no seu clássico livro O despotismo oriental (1957).
O problema fundamental que afeta a representação no Brasil, ao longo do ciclo republicano, decorre da inexistência dos distritos eleitorais. A República, tragicamente para nós, cortou, como já foi frisado, com a tradição vigente no Império de aperfeiçoar a representação. Com o sistema proporcional vigente, as siglas partidárias organizam a lista dos candidatos elegíveis, a partir das conveniências dos chefes partidários, não levando em consideração diretamente a representação dos interesses dos cidadãos. Assim, os eleitos para as Câmaras Municipais, para as Assembleias Legislativas dos Estados e para a Câmara dos Deputados e o Senado, consultam mais os interesses dos líderes e donos dos partidos políticos que dos eleitores. O cidadão comum dificilmente consegue identificar os seus representantes, tanto em nível do município, como no contexto do Estado em que reside. A essa situação se junta a questão ideológica e programática dos vários partidos, estruturados ao redor dos interesses dos líderes e dos donos das siglas partidárias, as quais, no Brasil contemporâneo, gozam de um montante econômico biliardário garantido pela alta burocracia do Estado (um Fundo Partidário de 5,8 bilhões de reais!).
Esta situação que conspira contra a verdadeira representação, viu-se reforçada, no final do ciclo militar, pelo Pacote de Abril do general Ernesto Geisel (1977) que favorecia o clientelismo ao redor do Executivo, conferindo maior representação aos Estados mais dependentes dos favores da União. Assim, as regiões menos desenvolvidas do país passaram a ter uma representação mais forte que as regiões mais desenvolvidas cultural e economicamente. Não é de estarrecer, assim, a inércia do Congresso quando se trata de fazer as coisas andarem em favor da maior parte da sociedade civil. Ao longo dos embates sofridos pelo governo Bolsonaro com os setores da manhosa burocracia e do Judiciário, o Parlamento terminou seguindo o caminho de se alinhar com os novos donos do poder, ficando inerte diante do desgastante processo de ataques provenientes da Magistratura e da oposição legislativa contra o governo.
Nesse quadro de indefinição dos laços que deveriam existir entre eleitores e eleitos, grassa o desinteresse pela política, de parte dos cidadãos. Os partidos, assim como os corpos colegiados recebem notas muito baixas, quando os cidadãos são consultados acerca do seu interesse por essa estrutura política. Muito diferente é a situação ali onde há distritos eleitorais claramente definidos, como, por exemplo, no Canadá ou nos Estados Unidos. Nesse contexto, existe um liame que une eleitos e eleitores, com os primeiros prestando contas, costumeiramente, aos segundos. Observa-se, neste meio, o comparecimento rotineiro dos eleitos, sejam municipais, provinciais ou federais, para prestar contas de sua gestão aos eleitores e ouvir as suas demandas em relação a uma melhor representação dos interesses dos eleitores. A instituição do recall, de outro lado, possibilita aos cidadãos emitirem o seu voto em relação com o desempenho dos seus representantes, que podem ver cassada a sua cadeira no Parlamento ou na Câmara regional ou distrital, quando os cidadãos não se sentem satisfeitos com o teor da representação exercida pelos seus eleitos. Onde há distritos eleitorais em pleno funcionamento, a democracia é algo vivo. Onde não há esse liame, a representação é um faz de conta, como infelizmente ocorre no Brasil.
Seria necessário, no Brasil, criar primeiro os distritos eleitorais, da forma em que funcionam na Grã Bretanha e nos países por ela influenciados como o Canadá, os Estados Unidos ou a Austrália. Junto com a criação dos distritos eleitorais, para que a representação realmente funcione, faz-se necessário que ocorra, no sistema educacional, o oferecimento regular, para as crianças e os adolescentes, da disciplina “Educação para a Cidadania”, que indique aos formandos quais as regras básicas da representação e do jogo político-partidário.
No Brasil contemporâneo, houve um momento histórico em que se abriu a oportunidade para a criação dos distritos eleitorais. A Comissão de Constituição e Justiça, na discussão pelos constituintes do texto da nova Carta, entre 1987 e 1988, tinha apresentado o projeto de criação desses distritos. Havia um ambiente favorável à aprovação do sistema distrital, como base para a representação parlamentar. Tudo, no entanto, foi por água abaixo, quando o trabalho do Presidente da mencionada Comissão simplesmente foi demolido por um colega de bancada. O senador José Richa, presidente da Comissão, e um dos fundadores do PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira) que defendia o voto distrital, com alta probabilidade de aprovação no seio da Comissão de Constituição e Justiça, foi sabotado pelo colega senador Mário Covas, a quem não interessava a instituição do voto distrital, pois ele dominava o panorama político do Porto de Santos, seu reduto eleitoral, sob o viés do que se denomina em ciência política de “feudo podre”, onde conseguia a unanimidade do apoio dos sindicatos.
Assim, a proposta do voto distrital, embora tivesse amplas simpatias entre os membros da Comissão de Constituição e Justiça, terminou sendo torpedeada pelo ativismo político do Senador Covas, que no dia da votação mobilizou os militantes do sindicato dos portuários, para que impedissem o funcionamento da Comissão, que já tinha chegado a um consenso em prol da aprovação do voto distrital. A Comissão foi dissolvida após o confronto entre Covas e José Richa e a questão foi levada ao Plenário da Constituinte, onde a instituição do voto distrital foi derrubada pela maioria, devidamente influenciada por Covas e os seus seguidores. O argumento para a derrubada do voto distrital era cínico: “Por que – frisava Covas – vou abandonar o sistema proporcional, que me garantiu a permanência no Senado? É mais seguro, para mim, manter o voto proporcional, sem adotar o sistema distrital”. Esse argumento sofístico terminou vingando na sessão plenária da Constituinte.
A principal consequência do abandono do voto distrital na Assembleia que deu ensejo à Constituição de 5 de outubro de 1988, consistiu na definitiva deformação da representação, que passou a girar não em torno à defesa dos interesses materiais dos eleitores, mas ao redor da política oligárquica dos Partidos, ferozmente controlada pelos caciques partidários (numa reedição da oligárquica “política dos governadores” vigente ao longo da República Velha).
Essa ausência de defesa dos interesses dos eleitores, levou, nos dias que correm, ao corajoso e jovem deputado federal pelo Rio Grande do Sul, Marcel van Hattem, a propor a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito acerca da corrupção da representação hoje, em face dos ataques de um déspota Ministro do STF, Alexandre de Moraes, que conspurcou a independência de Poderes, ao invadir a seara do Executivo e do Legislativo com as suas decisões monocráticas, visando a impor, por qualquer meio, a candidatura de Lula da Silva, sem que nenhuma objeção pudesse ser levantada, nem pelo Presidente da República nem pelo Parlamento.
Assistiu-se, nos últimos meses de 2022, à arbitrária condenação de jornalistas que denunciavam esse estado irregular de coisas, bem como à invasão do Poder Judiciário sobre o Parlamento, com a decretação da prisão de Deputados Federais, de empresários, de jornalistas e de simples cidadãos, como indígenas e alguns civis que protestavam pelas suspeitas de fraude eleitoral nas urnas eletrônicas. Foi cassado o direito à livre expressão, garantido a todos os brasileiros pela Constituição de 1988.
Valham, aqui, as corajosas palavras do editorial do jornal Gazeta do Povo de Curitiba (28-11-2022), em relação à iniciativa do deputado van Hattem, quando da sua proposta de abertura da CPI mencionada: “Isso significa que o verdadeiro sentido da liberdade de expressão – e de outras garantias constitucionais violadas ao longo dos três inquéritos e da campanha eleitoral – se perdeu, especialmente entre os que têm a obrigação constitucional de defendê-la, no caso dos ministros, e os que têm a obrigação moral de lutar por ela, como formadores de opinião e entidades da sociedade civil organizada. Recuperar este verdadeiro sentido até que ele volte a ser um consenso evidente é imprescindível se queremos a pacificação do país. O requerimento de abertura da CPI demonstra essa consciência de que há algo muito errado com a forma como as Cortes se dispuseram a fazer essa ‘defesa’ da democracia e das liberdades”.
Justificando a iniciativa da mencionada CPI, escreveu o deputado van Hattem: “Nos últimos anos e de forma acentuada nos últimos meses, foram inúmeras as violações de direitos e garantias individuais contra cidadãos brasileiros, políticos e também contra pessoas jurídicas, perpetradas por ministros das cortes superiores; ou seja, perpetradas justamente por aqueles que teriam o dever de garantir o pleno exercício desses direitos e não de violá-los. Tais violações não datam apenas da recente disputa eleitoral; já vêm ocorrendo desde que o Supremo instaurou o abusivo inquérito das fake news, em que a Corte se atribuiu o papel múltiplo de vítima, investigador, acusador e julgador – o primeiro caso de censura, aplicado à revista Crusoé, data de 2019”.
O governo de Jair Bolsonaro significou, de um lado, um corte radical com a prática de uma República oligárquica, onde a representação foi sequestrada pela manutenção de privilégios da classe política e da alta magistratura, que terminaram deformando ainda mais a nossa já combalida representação, desfigurada pelo abandono da luta em prol da representação de interesses no Parlamento, em benefício de uma vaporosa “representação nacional” que, ao pôr em prática o voto proporcional, terminou se fechando na manutenção de privilégios da alta magistratura e da classe política. O “Consórcio de Imprensa” posto em funcionamento para desmoralizar Bolsonaro e o seu governo, serviu para manter a oligarquização da política em benefício do stablishment e em prejuízo da representação dos interesses reais dos cidadãos do país.
As massivas e pacíficas manifestações que, a partir de 2013, têm percorrido as cidades brasileiras para protestar contra a oligarquização da República por Magistrados e Políticos corruptos, apoiando o combate à corrupção generalizada posta a nu e punida, corajosamente, pela Operação Lava-Jato, essas massivas manifestações foram replicadas em 7 de setembro de 2021 e 2022, destacando uma realidade: “a nossa bandeira jamais será vermelha”. No passado Dia da Independência, 300 cidades pelo Brasil afora foram percorridas por rios de milhões de brasileiros vestindo as cores verde e amarela da nossa bandeira. Os ditadores de plantão, no STE, proibiram a exibição do que ninguém poderia negar: os milhões de brasileiros que saíram pacificamente às ruas, reivindicando o mais elementar dos direitos: o de poderem exprimir as suas opiniões políticas sem temor a serem desmonetizados, perseguidos e presos sumariamente. Os ditadores de plantão conseguiram, de momento, o que queriam: tirar Lula da prisão e elegê-lo Presidente da República, num pleito submetido a críticas quanto à lisura na utilização das urnas eletrônicas. Conseguirão governar o país tranquilamente?
Conclusão: quatro iniciativas que poderiam ser implementadas, por parte da sociedade civil, com vistas ao aperfeiçoamento da representação.
1 – Pesquisa acerca da implantação e o aperfeiçoamento do Governo Representativo na história brasileira.
Essa pesquisa levantaria os aspectos essenciais da obra magna de Silvestre Pinheiro Ferreira em prol da implantação da representação parlamentar, na Constituição Imperial de 1824. Os conceitos fundamentais de Pinheiro Ferreira em torno à representação e ao voto distrital foram sintetizados por ele nas seguintes obras: Projetos e ordenações para o Reino de Portugal (3 volumes, 1831), Observações sobre a Carta Constitucional do Reino de Portugal e Constituição do Império do Brasil (1831), Manual do cidadão em um governo representativo (1834), Memórias políticas sobre os abusos gerais e modo de se reformar e prevenir a revolução popular, redigido por ordem do Príncipe Regente no Rio de Janeiro em 1814-1815 (obra publicada postumamente, em 1884, pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). Esta obra, aliás, trata de forma muito semelhante a temática da representação, em face do Tratado de Política de Benjamin Constant de Rebecque, publicado em 1810.
Outro expoente significativo acerca da temática da eleição e dos distritos eleitorais seria o visconde de Uruguai, Paulino Soares de Sousa (1807-1866) no tocante especificamente às propostas levantadas por ele para o aperfeiçoamento do modelo distrital, no seu Tratado de Direito Administrativo (1862). Embora não acreditasse que fosse possível aplicar, imediatamente, o modelo britânico dos distritos eleitorais, Paulino considerava que este seria o ideal a ser atingido e para o qual a elite imperial deveria educar os eleitores.
Merece atenção a obra de Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), no que se refere à forma em que o estadista gaúcho propunha concretizar a representação no estado do Rio Grande do Sul, em duas obras, inspiradas no liberalismo doutrinário de François Guizot: Ditadura, parlamentarismo, democracia (1928) e Do voto e do modo de votar (1931). É importante destacar, de outro lado, a concepção de Ruy Barbosa (1849-1923) sobre o sistema eleitoral, nos seus Manifestos à Nação (1910), bem como nos Discursos Parlamentares (1915). Por último, seria muito esclarecedor consultar duas obras de Sílvio Romero (1851-1914): Parlamentarismo X Presidencialismo (1893) em que o pensador sergipano defende a adoção do primeiro para evitar a tirania ensejada pelo segundo e Doutrina contra doutrina (1894), na qual critica a “ditadura científica” perpetrada pelo presidencialismo no Rio Grande do Sul, recomendando a adoção do sistema parlamentar, enraizado nos colégios eleitorais à maneira inglesa.
Uma visão ampla acerca da forma em que, no período imperial e na República, foi encarada a questão das bases eleitorais do nosso sistema representativo, pode-se encontrar no Curso de Introdução ao Pensamento Brasileiro, coordenado por Antônio Paim e publicado, em 13 volumes, em 1982, pelo Decanato de Extensão da Universidade de Brasília.
2 – Estudos técnicos realizados para o estabelecimento, no Brasil, dos distritos eleitorais.
Deveriam ser revistas, aqui, as pesquisas desenvolvidas pelo jurista Ronaldo Poletti (1942-), em torno ao sistema representativo e ao seu aperfeiçoamento. Os mais significativos escritos de Poletti são os seguintes: O Poder Legislativo – Legislativo e Executivo (1983), “Soberania e Império na Ordem Jurídica Internacional” (publicado em Notícia do Direito Brasileiro, Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2005), “Municípios e Poderes Tribunícios” (Publicado em Diritto e Historia, Roma, 2010), “O avanço da Common Law (falso ou verdadeiro?) e o recuo do Romanismo na América Latina – Um projeto de pesquisa” (publicado em Notícia do Direito Brasileiro, Universidade de Brasília, 1998).
3 – Sugestão de projetos, junto ao atual Parlamento, em torno ao aperfeiçoamento da representação.
Deve-se levar em consideração que, nas eleições de outubro de 2022, houve uma significativa renovação do Congresso, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, com a eleição de parlamentares de tendência liberal-conservadora, preocupados com a reformulação da representação e com a retomada das pautas saneadoras da atividade política ensejadas pela Operação Lava-Jato.
O novo Congresso, que iniciará os seus trabalhos em 1º de fevereiro de 2023 será, assim, sensível à preocupação com a adoção de um sistema que garanta um melhor tipo de representação no Parlamento brasileiro. A porta estará aberta, sem dúvida, para o acolhimento de projetos que visem ao aperfeiçoamento da daquela, como é o caso dos relativos aos distritos eleitorais. Entidades independentes de pesquisa (como é o caso do Instituto Liberal do Rio de Janeiro) poderão contribuir nesse estudo, no terreno específico da formulação de modelos práticos de distritamento eleitoral.
4 – Realização de estudos comparativos acerca do aperfeiçoamento da representação no contexto internacional.
Esses estudos visariam a fazer um levantamento dos principais problemas enfrentados pela representação parlamentar no mundo atual, notadamente em decorrência do desgaste experimentado pelos tradicionais corpos colegiados e pelos partidos políticos, na Europa e nos Estados Unidos, face à discussão de problemas tecnológicos cada vez mais complexos e com a incorporação, aos colégios eleitorais, de massas progressivamente mais numerosas. A esses reptos somou-se, já no presente milênio, a interferência da mídia digital face à representação. Essas questões já tinham sido tratadas, pioneiramente no Brasil, por Antônio Paim em Agenda teórica dos liberais brasileiros (1997) e O liberalismo contemporâneo (2ª edição, 2000), bem como pelos integrantes do Grupo de Estudos sobre o Liberalismo organizado, no Rio de Janeiro, por Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007). Este autor aprofundou, também, o tema das eleições, do ângulo das exigências éticas da democracia, na obra intitulada: Democracia e direitos humanos – Ensaios de filosofia prática (política e jurídica) (2003).
Os temas relacionados à complexidade crescente da democracia de massas face à representação, foram, também, objeto de reflexão por parte de estudiosos da sociologia brasileira como Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-2019) em Ordem burguesa e liberalismo político (1978), por Simon Schwartzman (1939-) em São Paulo e o Estado Nacional (1975) e Bases do autoritarismo brasileiro (1982) e pelo próprio Antônio Paim em A querela do estatismo (1978) e Momentos decisivos da história do Brasil (3ª edição de 2020).