Nos dias 25 e 26 de Maio de 2013 teve lugar, na UNIMEP, Piracicaba - São Paulo, um Colóquio em homenagem à professora doutora Constança Marcondes Cesar, nascida em São Paulo, capital, em 1945.
Coube-me a alegria, e a honra, de abrir esse evento em homenagem à querida amiga Constança. Já lá se vão várias décadas desde esse remoto ano de 1978, quando tive com ela o primeiro contato, ao ensejo de número especial da Revista Reflexão, que ela coordenava na PUC de Campinas, para o qual a minha amiga pedia-me colaboração a respeito da temática do positivismo na realidade brasileira. Nessa época, eu trabalhava na Colômbia, como pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade de Medellín.
Interessava-me iniciar, nessa Universidade, um programa de pós-graduação em História das Idéias Filosóficas na América Latina. Levou-me a pensar nesse programa o fato de ter cursado, entre 1973 e 1974, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, o mestrado em Pensamento Brasileiro (com bolsa da Organização dos Estados Americanos). Esse programa foi organizado pelos caros amigos Antônio Paim (1927-2021) e Celina Junqueira, e funcionou entre 1972 e 1979, ano em que foi fechado por pressão do MEC, atendendo a interesses político-partidários de antigos militantes da Ação Popular. Essas pessoas achavam incômodo o fato de o mencionado programa ter iniciado pesquisa sobre a evolução das idéias filosóficas no Brasil contemporâneo, abrangendo a obra do padre Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), inspirador da AP.
Pois bem: eu considerava que poderia a Universidade colombiana dar uma contribuição ao estudo das idéias filosóficas no âmbito latino-americano, instituindo um programa de pós-graduação stricto sensu. Outras Universidades da Colômbia, aliás, por essa época, cogitavam iniciar programas semelhantes, notadamente a Universidade Santo Tomás, de Bogotá, coordenada pelos padres dominicanos. Elaborei, então, a proposta de criação do mencionado programa, que foi acolhida pela Reitoria da Universidade de Medellín e pelo Conselho Diretivo. Eu desempenhava o cargo de Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa dessa Universidade. Corria então o ano de 1975. Estabeleci contato com o subsecretário para assuntos culturais da Organização dos Estados Americanos em Washington, o professor paranaense Armando Correia Pacheco, que se mostrou interessado em apoiar a minha proposta, concedendo algumas bolsas para estudantes latino-americanos cursarem, em Medellín, o mestrado em História das Idéias Filosóficas na América Latina, complementando, assim, a iniciativa que tinha sido iniciada pela PUC do Rio com o mestrado em Pensamento Brasileiro, que tinha recebido também apoio da OEA. Na obtenção do apoio desta Organização para o meu projeto, foi de particular importância a opinião favorável do então reitor da Universidade de Medellín, professor Orion Alvarez (que tinha se desempenhado anteriormente como expert do Banco Mundial em vários países latino-americanos), bem como a acolhida que a minha proposta teve da parte de Antônio Paim e do saudoso Ubiratan Borges de Macedo, que então exercia as funções de representante brasileiro perante a Escola Interamericana de Defesa, em Washington.
Como a criação do curso de pós-graduação em História das Idéias Filosóficas na América Latina precisava do aval do Ministério da Educação da Colômbia, a Universidade de Medellín submeteu a esse órgão a proposta de minha autoria. O relator do respectivo processo foi o então vice-ministro de Educação, um furibundo heideggeriano que achava que só se podia filosofar em alemão. A minha proposta, em que pese a acolhida da Universidade de Medellín e da Organização dos Estados Americanos, foi definitivamente engavetada pelo Ministério da Educação do país andino.
A guerra do narcotráfico tinha entrado, na Colômbia, a partir de meados dos anos 70, numa etapa de perigosa escalada que terminou cobrando inúmeras vidas ao longo dessa década. Somente em 1978, por exemplo, na Universidade de Antioquia, a maior de Medellín, com cerca de 40 mil estudantes, onde eu lecionava a disciplina História das Idéias Políticas na América Latina, foram assassinados 18 professores de várias tendências políticas. Achei conveniente passar uma temporada no Brasil, aproveitando para cursar o Doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro, no novo programa que acabava de ser iniciado na Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro. Pedi, então, uma licença às Universidades onde trabalhava e vim ao Rio de Janeiro para cursar o Doutorado, no início de 1979. Como não tinha bolsa, comecei a trabalhar em São Paulo como pesquisador da Sociedade Brasileira de Cultura, Convívio, dirigida pelo saudoso amigo Adolpho Crippa, que me liberou parcialmente para cursar no Rio as disciplinas do Doutorado. Terminei o curso, felizmente, em 1982, com a tese intitulada: Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, sob a orientação de Antônio Paim, (que já tinha orientado, aliás, a minha dissertação de mestrado, que levou como título: A filosofia política de inspiração positivista, e que dediquei a estudar o pensamento de Júlio de Castilhos (1860-1903) e da primeira geração castilhista, integrada por Borges de Medeiros, Pinheiro Machado e Getúlio Vargas.
Em São Paulo, entrei em contato com a professora Constança. Conversando com ela acerca dos nossos projetos acadêmicos, contei-lhe o que tinha acontecido na Colômbia com o meu programa de mestrado em História das Idéias Filosóficas na América Latina. Ela mostrou-se interessada em apresentar à PUC de Campinas, onde trabalhava, um projeto dessa índole. Fiquei empolgado com essa possibilidade e elaborei proposta semelhante à que tinha apresentado, anos atrás, à Universidade de Medellín. A professora Constança programou, em Campinas, algumas reuniões de trabalho com os seus colegas de Departamento. Encontrei, neles, um ambiente aberto para a iniciativa. Aperfeiçoei com ela o projeto inicial que ficou pronto em fins de 1979, tendo sido apresentado imediatamente à PUC de Campinas. Paralelamente, entrei em contato com o professor Armando Correia Pacheco em Washington, e o coloquei a par do que então se passava. Ele imediatamente aceitou apoiar, desde a subsecretaria de assuntos culturais da OEA, o novo projeto, oferecendo bolsas para estudantes latino-americanos. Alguns meses depois, em 1980, fiquei sabendo, no entanto, pela minha amiga Constança, que o projeto de Mestrado em História das Idéias na América Latina tinha ficado sob a coordenação de um outro professor da PUC de Campinas que nada tinha a ver com a proposta inicial, tendo sido ela alijada do mesmo. O nosso projeto tinha virado motivo de rixa burocrática, o que, para a professora Constança e para mim, estava fora de cogitação. Desta forma, terminou sendo engavetado novamente o projeto acalentado. A causa foi a mesma: a incompreensão, por burocratas, da importância de um projeto acadêmico aberto ao estudo do pensamento latino-americano.
A minha amiga Constança continuou, no entanto, fiel à idéia de estudar, de forma sistemática, a história das idéias filosóficas na América Latina. Foi assim como publicou, em 1980, a sua obra intitulada: Filosofia na América Latina (São Paulo: Paulinas, 1988), que constitui uma das primeiras contribuições brasileiras nesse terreno. Ainda neste campo, Constança estabeleceu estreitos nexos de colaboração com o grande estudioso francês da história do pensamento latino-americano, Alain Guy, da Universidade de Toulouse-le-Mirail. Como fruto dessa colaboração, vários estudos da Constança sobre o pensamento latino-americano, português e brasileiro foram publicados na França, notadamente os seus escritos sobre Vicente Ferreira da Silva (1916-1963). Dessa estreita colaboração com a mencionada Universidade francesa, surgiu a idéia de Constança doar ao acervo daquela instituição a sua biblioteca particular, o que foi feito, tendo a minha amiga recebido calorosas e justas homenagens das autoridades acadêmicas dessa Universidade.
Constança é, hoje, junto com o filósofo de origem tcheca Zdenek Kourim (1932-), o mais importante elo de ligação entre as Universidades francesas e o Brasil, no que tange à pesquisa da história do pensamento brasileiro e latino-americano. Constança Marcondes Cesar dedicou estudos importantes ao aprofundamento da filosofia francesa contemporânea, destacando-se os seus trabalhos sobre Paul Ricoeur (Paul Ricoeur – Ensaios, obra da qual é organizadora, São Paulo: Paulus, 1998), as linhas mestras do pensamento hermenêutico (A hermenêutica francesa, São Paulo: Alínea, 1996), a estética de Bachelard (Bachelard, ciência e poesia, São Paulo: Paulinas, 1989), a antropologia filosófica francesa (Crise da liberdade em Merleau-Ponty e Paul Ricoeur, Aparecida-SP: Idéias e Letras, 2011), o pensamento de Sartre no seu contexto histórico (Sartre e os seus contemporâneos, obra organizada juntamente com Marly Bulcão, Aparecida-SP: Idéias e Letras, 2008), etc.
No terreno mais largo da filosofia européia contemporânea, é de capital importância e de originalidade indiscutível a obra que a nossa pesquisadora dedica ao pensamento grego, centrada no estudo do filósofo Evanghelos Moutsopoulos (1930-1921) (Filosofia da cultura grega - Contribuição para o estudo do pensamento neo-helênico contemporâneo, Aparecida-SP: Idéias e Letras, 2008).
No terreno específico dos estudos da filosofia luso-brasileira, coube a Constança formular a valiosa hipótese da existência da “Escola de São Paulo” (O grupo de São Paulo, Lisboa: Casa da Moeda, 2000), que teria se formado ao redor do pensamento de Vicente Ferreira da Silva e que abarcou expoentes portugueses da filosofia hermenêutica, como Agostinho da Silva e Eudoro de Souza. É de incalculável valor a participação da minha amiga Constança nos Colóquios Luso-brasileiros de Filosofia, que ao longo dos últimos vinte anos têm sido desenvolvidos por iniciativa do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, sob a coordenação de António Braz Teixeira e José Esteves Pereira e com a colaboração decisiva do saudoso Luís Antônio Barreto (1944-2012), Leonardo Prota (1930-2016), José Maurício de Carvalho e Antônio Paim (1927-2021). (Os trabalhos apresentados por Constança nesses eventos aparecem, entre outras obras, nas seguintes: Natureza, cultura e meio-ambiente, São Paulo: Alínea, 2006 e Papéis filosóficos, Londrina: UEL, 1999). Os centos de páginas dos Anais desses eventos, bem como a volumosa obra a que deu ensejo a colaboração entre pesquisadores portugueses e brasileiros e que eclodiu na Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia (publicada em Lisboa entre 1989 e 1992), dão testemunho inegável da grande fecundidade do pensamento luso-brasileiro, terreno no qual Constança Marcondes Cesar ocupa, de direito, lugar de primeira importância.
A obra de Constança Marcondes César ainda está para ser estudada de forma sistemática. O seu pensamento, além da seara luso-brasileira e latino-americana, tem se espraiado pelos campos férteis da filosofia francesa e da estética contemporânea. Testemunho desse interesse da nossa autora nos terrenos mencionados são, como já foi frisado, os seus estudos sobre Paul Ricoeur, bem como os seus trabalhos sobre estética. Pela relevância que a figura de Constança Marcondes Cesar tem, hoje, para o pensamento filosófico luso-brasileiro, proponho aos meus amigos do Instituto de Filosofia Luso-brasileira que a sua obra seja objeto de estudo num dos nossos próximos Colóquios Luso-Brasileiros. Nada mais justo para reconhecer o trabalho desta incansável pesquisadora das idéias filosóficas em Portugal, no Brasil, e na América Latina.
Londrina, Outubro de 2013.