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AUTORITARISMO E CORRUPÇÃO (UM TEXTO DE 1985)

AUTORITARISMO E CORRUPÇÃO (UM TEXTO DE 1985)

CAPA DA REVISTA CONVIVIUM (Nº 5, 1985), NA QUAL FOI PUBLICADO O ENSAIO DE RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ INTITULADO: "AUTORITARISMO E CORRUPÇÃO" (MAIO DE 1985).

Este tema é de muita atualidade nos dias que correm. No início de Nova República, tornou-se corriqueiro conhecer revelações de fantásticas cirandas de corrupção, ocorridas ao longo do período de arbítrio por que o País passou durante as últimas décadas. Autoritarismo e corrupção é um binômio bem conhecido dos brasileiros. Todos almejamos conjurá-lo, a fim de que não se repita. Mas, para que a sociedade possa controlá-lo, é necessário conhecer as suas raízes, a fim de preparar o antídoto adequado. As bactérias, quando desconhecidas, não podem ser combatidas. Somente após a sua identificação laboratorial é que se torna possível deflagrar a luta com os antídotos aos quais elas se mostraram sensíveis. Como no combate antibacteriano, um superficial e inadequado conhecimento do inimigo pode conduzir ao reforço das suas defesas e a um posterior alastramento do mal no organismo. Se não aprofundarmos seriamente nas raízes do binômio autoritarismo-corrupção no seio da sociedade brasileira, as reformas que porventura forem equacionadas agirão como cortina de fumaça que apenas oculta a grave doença, ensejando a sua posterior propagação.

Pretendo fazer uma aproximação cultural (ou culturológica, como diria Oliveira Vianna) do fenômeno mencionado. É necessário, antes de mais nada, justificar o valor desta abordagem. Infelizmente a nossa tradição intelectual, carregada do cientificismo aplicado, típico da mentalidade pombalina (que se projetaria até a contemporaneidade, atrelada ao carro chefe do positivismo e do tecnocratismo getuliano), sempre considerou como secundária a abordagem cultural dos problemas, passando a valorizar a identificação e o tratamento técnicos dos mesmos.

Assim aconteceu com a questão da moral e da política em Portugal sob o Marquês de Pombal (1699-1782) [cf. PAIM, 1978], que as identificava simploriamente como variáveis a serem equacionadas à luz da ciência aplicada a serviço do Estado, no contexto do que o primeiro-ministro português identificava pomposamente como “aritmética política”. Assim aconteceu também entre nós, quando a elite de padres ilustrados que se formou no Seminário de Olinda decidiu apregoar a transmutação republicana do nascente Império, através da combativa voz de frei Caneca (1774-1825), que considerava ser a República primordialmente questão de geometria. Escrevia o frade carmelita nas suas Cartas de Pítia a Damião: “Pela geometria conhecemos evidentemente a existência do Supremo Arquiteto do Universo; pela geometria admiramos a sua infinita sabedoria no sistema da criação e sua providência no andamento regular da natureza; pela geometria dominamos a fúria do oceano, dirigimos a força dos euros, penetramos os abismos e subimos aos astros; ajustamos os impulsos do nosso coração com os ditames da reta razão; proporcionamos os trabalhos às nossas forças, os remédios às moléstias, as penas aos delitos, os prêmios às virtudes; pela geometria equilibramos os movimentos das grandes massas das nações, regularizamos o valor dos povos e o seu entusiasmo. Todas as coisas em que não entram a régua e o compasso da geometria são desregradas e descompassadas, são monstruosas. Por falta de geometria é que o nosso governo, não conhecendo a gravidade específica dos negócios civis e políticos nem a relação deles entre si, não sabe equilibrar as forças dos diversos agentes sociais, desencaixa de seus lugares as molas da sociedade, vai quebrá-las e reduzir tudo a poeira” [CANECA, frei, 1976: 51-52]

Quis lembrar as palavras de frei Caneca porque a sua concepção de geometria política antecede fielmente à proposta da física social de Augusto Comte (1798-1857), que seria formulada quase 30 anos depois e que encontrou ampla ressonância na intelectualidade brasileira a partir de 1870. As questões sociais e o equacionamento delas, para os positivistas de todos os matizes, eram problemas de ciência positiva, não de negociação nem de imaginação política. A abordagem cultural da problemática social ficava banida no bojo da “metafísica liberal”, soma de todos os males e de todas as ignorâncias. Este preconceito contra a cultura levou um positivista ilustrado como Luís Pereira Barreto (1840-1923) a rejeitar a ideia de universidade como atentatória contra os interesses da Nação [cf. BARRETO, 1967: 133]. Não estranha assim que um positivista prático, formado sob as asas do Castilhismo gaúcho, como Getúlio Vargas (1883-1954), deflagrasse a partir de 1930 a bandeira do “equacionamento técnico dos problemas” sociais [cf. PAIM, 1978: cap. I], ensejando assim a longa série das soluções tecnocráticas, que fazem ouvidos moucos às vozes que não venham dos arraiais da ciência aplicada. Estas vozes são, geralmente, quando bem entoadas, as dos humanistas e as dos políticos. Na última quadra do regime militar assistimos à formulação de nova hipótese cientificista, que daria resposta a todos os problemas e enigmas do futuro do País, sob o título de “engenharia política” [cf. SILVA, 1981].

Não é difícil traçar a linhagem do novo discurso tecnocrático, a partir da “aritmética política” pombalina, passando pela “geometria política” de frei Caneca e pelo “equacionamento técnico dos problemas” do período getuliano. Tudo, na complexa malha de variáveis de um país continental como o Brasil, encontraria solução adequada no cálculo dos alquimistas do poder, de posse da técnica e da autoridade discricionária. Neste contexto de culto cientificista tornou-se praticamente inútil a investigação sobre as raízes culturais dos nossos problemas. Mas é justamente o aprofundamento nestas raízes que nos vai permitir conhecer mais de perto o homem brasileiro.

Desenvolverei os seguintes pontos nesta análise das raízes culturais do binômio autoritarismo-corrupção: 1 – Ilustração do problema. 2 – Análise culturológica do autoritarismo. 3 – Análise culturológica da corrupção. 4 – Conclusão: perspectivas futuras.

1 – Ilustração do binômio autoritarismo-corrupção.

Cairia na repetição banal dos noticiários da rádio, da televisão ou dos jornais, se pretendesse fazer aqui uma exposição completa da forma em que o duplo problema autoritarismo – corrupção se revela na sociedade brasileira. O favorecimento a amigos e familiares com cargos e dinheiros públicos, o enriquecimento particular às custas da poupança alheia, os rombos previdenciários, as “caixinhas”, a aplicação da lei para favorecer amigos e prejudicar inimigos, as comissões ocultas, os jetons fraudulentos, os dribles fiscais, a concupiscência orçamentívora dos que procuram de algum modo se “encostar” no Estado, os funcionários fantasmas, os “mortos-vivos” que elegem outros “vivos”, etc., são figuras infelizmente familiares do nosso folclore político-social. Tão familiares que provocam até a hilaridade quando mencionadas em público. Não pretendo, pois, fazer uma enumeração exaustiva. Gostaria apenas de lembrar que a incômoda presença desses vícios é tão antiga quanto o próprio Brasil, e que as suas raízes chegam até a formação da nossa matriz cultural e política: Portugal.

Já no século XVII o padre Antônio Vieira se queixava, num dos seus sermões, da corrupção que grassava entre os ministros de Sua Majestade: “Perde-se o Brasil - lamentava o ilustre pregador – porque alguns ministros de Vossa Majestade não vêm aqui buscar o nosso bem, vêm buscar os nossos bens”. No seu sermão, o padre Vieira lamenta que, tendo sido enviados para tomar conta de Pernambuco, estes altos funcionários foram além da sua missão e chegaram a arrasar a antiga capitania. E afirma a seguir: “Esse tomar o alheio, ou seja, o do Rei e o dos povos, é a origem da doença. E as várias artes e modos e instrumentos de tomar são os sintomas que, sendo por natureza muito perigosos, tornam cada vez mais mortal (a doença). E se não, pergunto a fim de que se conheça melhor as causas dos sintomas: Toma nesta terra o ministro da Justiça? – Sim, toma. Toma o ministro da Fazenda? – Sim, toma. Toma o ministro da Milícia: - Sim, toma. Toma o ministro de Estado? – Sim, toma” [cit. Por PEDREIRA, 1978].

Mas a corrupção praticada no Brasil pelos ministros de Sua Majestade era também moeda corrente em Portugal, onde a alergia diante do trabalho produtivo juntava-se ao fenômeno dos “parasitas mendicantes”, que correspondiam à corriqueira figura do pícaro ou vagabundo cantada na Espanha pela literatura picaresca. Lúcio de Azevedo (1855-1933), na sua clássica obra Épocas de Portugal econômico – Esboços de história [1978: 19-20] frisa: “Em Portugal, o estado convulso da sociedade, as guerras intestinas e de fronteira, por fim a epopeia marítima suscitavam o gosto da aventura e afastavam do trabalho (...), concorrendo para engrossar a hoste dos parasitas mendicantes, cujo excesso as leis pretendiam refrear. Os povoados maiores exerciam como agora a sua atração sobre a gente dos campos. Filhos de jornaleiros abandonavam o casal nativo e iam para as vilas aprender ofício. Deste modo evitavam ser compelidos pela justiça à faina agrícola, consoante a lei (...)”.

Se os nossos antepassados portugueses não gostavam muito do trabalho, isto não significava, contudo, que tivessem renunciado ao fausto e à ostentação. Eis o interessante testemunho dado por um escritor da época das descobertas, Nicolau Clenardo que, numa carta ao seu amigo Tiago Látomo, revelava como os portugueses, perante a ilusão da riqueza fácil, passaram a cuidar apenas de exterioridades: “Se quisesse condescender com os costumes desta terra, começaria por sustentar uma mula e quatro lacaios. Mas como seria possível? Jejuando em casa, enquanto brilhava fora como um triunfador, e teria de tragar este amargo remédio de dever mais do que poderia pagar. Eis aí o que faz um cortesão acabado! Isto faz-me lembrar um certo indivíduo, pelo qual imaginareis os outros. Este, cujo retrato vou descrever-vos, andava de rixa com um estrangeiro, creio que francês, que viera para Portugal no tempo de D. Manuel, como fazendo parte da casa da Rainha Dona Leonor. O português levava-lhe a palma no fausto exterior, mas o francês tinha melhor mesa. Conhecendo este, como quer que fosse, os hábitos locais e levado pela curiosidade, conseguiu habilidosamente obter o livro onde eram lançadas as despesas diárias do outro. Eis o resultado da pesquisa: “Acertou em dar logo com os olhos num passo bastante cômico, mas genuinamente português. Encontrara apontada a seguinte diária: água, 4 ceitis; pão, 2 reais; rabanetes, 4 e ½ reais. Como durante toda a semana continuassem estas prodigalidades, imaginava que o domingo, este pelo menos, seria lautamente banqueteado; mas para este dia (que viu ele?) achou simplesmente isto escrito: Hoje, nada, por não haver rabanetes na praça”.

Eis a conclusão de Nicolau Clenardo: “Há aqui, meu caro Látomo, uma chusma desses faustuosos rabanôfagos que trazem toda via pela rua atrás de si maior número de criados do que de reais gastam em casa. E até creio que chega a havê-los com menos rendimentos do que eu, que não obstante, trazem uma comitiva de oito criados que sustentam sabe Deus como, se não a custa de uma abundante alimentação, certamente à força de fome e por outros meios que eu sou muito estúpido para aprender nunca em dias de minha vida. E não é fácil recrutar uma turba inútil de servidores, porque esta gente prefere suportar a aprender qualquer profissão” [cit. por CRUZ COSTA, 1967: 26].

Essa tendência de baixa produtividade e de luxo oriental é típica também do nosso meio. Batizada de “alta privilegiatura” pelo jornalista Marcos Sá Corrêa, para quem “um burocrata brasileiro tem serviços médicos de sueco, carreira de japonês, clima de europeu e produtividade de brasileiro mesmo”. O citado jornalista considerava que a perniciosa tendência ao ócio remunerado era uma das causas principais da maré inflacionária em que a sociedade brasileira se debatia nesses tempos [SÁ CORRÊA, 1983: 74-80].

Nem precisaríamos ilustrar o outro termo do binômio, o autoritarismo. Exemplos dele temos à vontade. Contudo, o que mais preocupa é que o vezo autoritário constitui a regra e não a exceção na cultura política luso-brasileira. Breves interregnos de liberalismo vêm-se seguidos, na nossa história, por largas etapas de autoritarismo. E, o que é pior, este vício contamina não só o Estado, mas tem-se difundido até nas mais escondidas dobras do organismo social.

Muitos são os estudos que a sociologia dedicou à análise do fenômeno autoritário, desde o pioneiro trabalho de Raimundo Faoro, Os donos do poder (1958), até as obra de Wanderley-Guilherme dos Santos, Ordem burguesa e liberalismo político e Poder e política: crônica do autoritarismo brasileiro (ambas de 1978), de Antônio Paim com A querela do estatismo (1978) e de Simon Schwartzman, com Bases do autoritarismo brasileiro (1982). Contudo, nesta ampla produção científica situa-se, sem dúvida, a magna obra do sociólogo fluminense Francisco José de Oliveira Vianna (1983-1951) que dissecou magistralmente o fenômeno autoritário, identificando as suas raízes no chamado por ele “complexo de clã”, que presidiu à nossa formação social e política.

Como a análise do fenômeno autoritário abarca já uma ilustração dele, terminarei esta caracterização do binômio autoritarismo-corrupção salientando apenas um fato: a corrupção ocorre, na tradição cultural luso-brasileira, num contexto de autoritarismo, em que o poder político é entendido não como busca do bem comum, mas como negócio particular. O jurista Evaristo de Moraes Filho identificou bem a união indissolúvel entre os dois termos do binômio, ao frisar que os que praticavam atos de corrupção no passado recente “(...) eram autoridades em algum setor, e houve uma hipertrofia no sentido de resguardar o respeito à autoridade. A autoridade estava sempre certa. Isto possibilitou o alastramento da corrupção (...)” [MORAES FILHO, 1985: 5].

2 – Análise culturológica do autoritarismo.

Oliveira Vianna, nas suas obras: Populações meridionais do Brasil (1920) e Instituições políticas brasileiras (1949), mostrou de forma clara como se processou a nossa formação social. Contrariamente às nações européias que conheceram o surgimento do Estado moderno ao ensejo da maturação de instituições que garantiam a participação da coletividade na administração da coisa pública, como aconteceu por exemplo na Inglaterra, no Brasil a primeira autoridade a ser conhecida foi de tipo patriarcal e autoritário: o senhor de engenho. Assim caracteriza o sociólogo fluminense a primazia desta autoridade patriarcal no seio do latifúndio, que foi a nossa primeira célula política:

“Essa sociedade em formação, dispersa, incoerente, revolta, gira realmente em torno do domínio rural. O domínio rural é o centro de gravitação do mundo colonial. Na disseminação geral da população, lembra um pequeno núcleo solar com as suas leis e a sua autonomia organizada. Dele é que parte a determinação dos valores sociais. Nele é que se traçam as esferas de influência. Da sociedade colonial – abstraídos os aparelhos administrativos, que se lhe ajustam, estranhos e inassimiláveis – resta apenas, como elemento celular, o domínio rural. Sobre ele a figura do senhor de engenho se alteia prestigiosa, dominante, fascinadora. Nenhuma desprende de si, em torno, para outras classes, fluidos mais intensos de sedução magnética e ascendência moral” [OLIVEIRA VIANNA, 1973, I: 68].

O senhor de engenho, todo-poderoso e imbatível, é a figura central da nossa organização política no período colonial. Poder legislativo, executivo e judiciário no interior do seu latifúndio, submete a si também o poder espiritual do capelão, que o acompanha nas suas andanças bandeiristas, junto com a heterogênea tribo de parentes, índios, cafuzos, mulatos, pardos e mamelucos que lhe obedecem cegamente. Ao redor do senhor de engenho reúne-se o clã parental. Agarrados como o molusco à rocha, os indivíduos desse insolidário universo buscam a segurança e o alimento ao redor da casa-grande, que com a sua interminável série de alcovas, de salões e de senzalas materializa o caráter variado e domiciliar da sociedade em formação. O poder do senhor de engenho é, ao mesmo tempo, paterno e político; congrega, ao redor da mesma mesa, filhos, parentes, agregados, escravos. A partir deste núcleo larário e graças ao apoio do exército particular que arma com o elemento mulato e vermelho, captura índios, submete outros patriarcas e estende, mediante as bandeiras, para além do seu domínio familiar, as fronteiras da sua dominação carismática. É o singular fenômeno caracterizado por Max Weber (1864-1920) como Patrimonialismo.

Weber identificou o Patrimonialismo com aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu poder doméstico. Ao lado da organização do poder político segundo o modelo doméstico, é igualmente essencial ao Patrimonialismo a estruturação do quadro administrativo, através do qual se exerce a dominação. Quando este recebe do soberano, ou conserva, com o consentimento dele, determinados poderes de mando e as suas correspondentes vantagens econômicas, temos o que Weber chama de dominação estamental. A forma em que surgiu o Estado no Antigo Egito, na China, na Rússia, nos Califados árabes e na Península Ibérica foi a patrimonial, contrária à forma contratualista que vingou na Europa Ocidental e no Japão, que conheceram a experiência feudal [cf. WEBER, 1944, IV: 188-189; 190-191].

No Brasil, como demonstrou suficientemente Raimundo Faoro [cf. FAORO, 1958], também foi patrimonial a forma em que se consolidou o poder do Estado a partir do latifúndio, de um lado, e do poder do rei português, de outro, o qual sempre entendeu o seu domínio sobre os territórios de ultramar como parte da administração da Casa Real. Oliveira Vianna mostrou a forma em que a Coroa, a partir da criação do Distrito Diamantino, no final do século XVII, disciplinou com mão de ferro a mineração, na trilha já conhecida do esmagamento da livre iniciativa, que tinha ocorrido no fim do ciclo açucareiro em Pernambuco ao ser destruída pela Coroa portuguesa, com a ajuda da Inquisição, a primeira experiência bem sucedida de empresa capitalista em terras brasileiras.

A nossa formação política, em síntese, decorre da perspectiva clânica (do “complexo de clã”, diz Oliveira Vianna) remanejada no seio do poder privatizante e centralizador do monarca patrimonial. A política, nessa perspectiva, é a “coisa nostra”, a forma de fazer vingar os interesses privados, familiares, à custa do Estado. A política não é a arte de barganhar para defender os próprios negócios: é, como frisa Simon Schwartzman, “o grande negócio” [SCHWARTZMAN, 1982]. Esta é a secreta raiz do autoritarismo brasileiro, que se exprime coloridamente na mentalidade de torcida com que encaramos a coisa pública, aplicando a lei aos inimigos e livrando dela os amigos. Esta é, ao mesmo tempo, a fonte da corrupção na vida pública brasileira, que decorre da perspectiva orçamentívora com que nos aproximamos do Estado, perdendo de vista os limites que separam o público do privado. O jurista gaúcho Paulo Brossard exprimiu claramente esta problemática, quando afirmava: “(...) Há essa mentalidade devastadora de que o País existe para fornecer meios de vida para cada pessoa, se possível sem trabalhar (...)” [BROSSARD,1985].

3 – Análise culturológica da corrupção.

Embora o fenômeno da corrupção deite raízes no vezo privatizante da nossa formação política, podemos, no entanto, desenhar o contorno do que chamaríamos de “ética da corrupção”. Assumindo, de acordo com o Dicionário Aurélio, o termo “ética” como o “Estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto” [BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, s/d: 591], tentemos burilar uma caracterização do padrão de comportamento que se estabeleceu na cultura ibérica, em relação ao trabalho.

Na Península Ibérica surge, desde o fim da Idade Média, um tipo cultural diametralmente oposto ao homo oeconomicus que a partir da Idade Moderna se consolida na Europa, acompanhando o fenômeno do nascimento e expansão das cidades, origem da nascente burguesia. As características do tipo castelhano ou português, do cavaleiro cristão que García Morente define como defensor de uma causa e possuidor de virtudes nobiliárquicas, como o anseio de grandeza, a ousadia, a altivez, o pensamento intuitivo e não o cálculo, o personalismo e o culto à morte, modelaram-se ao longo da história ibérica, sobretudo durante o episódio que foi tão decisivo na vida dos povos peninsulares: a luta de vários séculos contra os muçulmanos, em defesa de sua própria existência e da cristandade. Esta defesa da cultura ibérica diante do invasor foi percebida, desde o início, como a defesa de si próprio. A descoberta da América e a luta pelo império que a história dava a espanhóis e portugueses, firmaram o seu caráter cavalheiresco e heroico e terminaram por frustrar, definitivamente, a formação do tipo que construiu a moderna economia do capitalismo, a partir da adoção do ethos do trabalho [cf. VÉLEZ RODRÍGUEZ, 1978: 94 ss. Cfr, também, JARAMILLO URIBE, 1974: 9 ss].

Werner Sombart, no seu clássico livro O Burguês, destaca a retomada de uma concepção nobiliárquica da vida (de inspiração medieval) por parte da nobreza ibérica que comandou a empresa dos descobrimentos, num contexto antimoderno de oposição à escala de valores burgueses centrada no trabalho. A propósito, Sombart cita estas palavras do historiador alemão Leopold von Ranke, tiradas da obra intitulada: Fürsten und Völker von Südeuropa (Príncipados e Povos da Europa do Sul): “Por acaso é tão acertado e admirável consagrar o tempo a atividades que, carecendo em si de importância, ocupam toda uma vida com a única finalidade de ganhar dinheiro dos outros? Como se inexistissem outras ocupações mais nobres! (...). Com os interesses materiais ocorre o que acontece com outras coisas da vida. Aquilo que não prende o espírito de uma nação, não pode chegar a florescer nunca. Os espanhóis viviam dentro de uma concepção católica e hierárquica do mundo e se consideravam obrigados a explorá-la ao máximo; o seu orgulho era manter a posição que os habilitava para tanto. De resto, tentavam, por todos os meios, de disfrutar da vida alegremente e sem esforço. A laboriosidade que exige o trabalho constante e continuado era, para eles, completamente alheia” [apud SOMBART, 1982: 148-149]. O ideal renascentista de gozar a vida plenamente sofreu, nesse caso, do retardamento cultural de volta às origens da vida pautada por valores nobiliárquicos que deixavam para trás as ocupações puramente econômicas. Johan Huizinga ilustrou a forma em que o espírito nobiliárquico espanhol, quando em contato com o humanismo das cidades italianas, conseguiu contaminá-lo com esse traço puramente aventureiro de exaltação da atividade nobiliárquica militar por cima das virtudes chãs do homo oeconomicus [cf. Huizinga, 2013: 559-560].

Ao submeterem o elemento alienígena depois da reconquista, no final do século XV, espanhóis e portugueses encontraram dois grupos sociais, mouros e judeus, que os substituíram nas tarefas econômicas. O judeu nos trabalhos comerciais, bancários e financeiros, e o mouro nos afazeres agrícolas e artesanais. O historiador Jaramillo Uribe frisa que “(...) O trabalho, exercido assim por grupos considerados inferiores religiosa e politicamente, recebeu os mesmos estigmas que tinha naquelas sociedades onde o exerciam os escravos. Foi uma ocupação de párias e não de senhores” [JARAMILLO URIBE, 1974: 11].

Os historiadores concordam em afirmar que mouros e judeus eram peças chaves da atividade econômica na Espanha e em Portugal. Américo Castro faz um balanço dos termos relativos a atividades urbanas e rurais provenientes do árabe, em diversos campos dos trabalhos produtivos, como a agricultura, a construção de obras civis, artes e ofícios, comércio, administração pública, ciências, engenharia militar, etc. No tocante à agricultura e às artes culinárias, provêm do árabe açúcar, arroz, laranja, limão, berinjela, cenoura, alface, alcachofra, almôndegas, escabeche, etc.; no relativo à construção de obras civis, são da mesma origem termos como açude, nora, acéquia, alverca, alborque, alcatruz, alcantila, atanor, alcácer, alcova, azulejo, baldosa, açoteia, saguão, aldrava, alisar, etc.; no terreno das artes e ofícios, são de origem árabe termos como alfaiate, alfageme, alfaqueque, alfarje, arrieiro, almocreve, recoveiro, etc.; no que diz relação ao comércio, são da mesma origem vocábulos como açougue, armazém, cifra, algoritmo, etc.; no campo da administração pública, temos palavras como alfândega, alcaide, bairro, arraial, aguazil, etc.; no que se refere às ciências, provém do árabe termos como alquimia, alambique, elixir, álcalis, álcool, xarope, etc.; no que diz respeito à profissão e à engenharia militares e à arte da guerra, temos alferes, alfaras, arcabuz, alfanje, etc. Conclusão: os mouros tiveram papel de destaque em todas essas atividades, ao lado dos judeus. Já é bem significativo que a própria palavra “tarefa” seja de origem árabe. As nobrezas castelhana e portuguesa, pelo contrário, faziam questão de aderir a uma ética improdutiva e cavalheiresca: as armas e as letras, exaltadas por Dom Quixote no seu famoso discurso [cf. CASTRO, 1948: 62-63].

Essa opção cultural contrária ao trabalho e favorável às atividades cavalheirescas e às letras, produziu dois efeitos historicamente muito significativos para Espanha e Portugal: de um lado, deu às suas atividades no Novo Mundo um caráter exclusivamente predatório; de outro, favoreceu, em Portugal especialmente, a mentalidade orçamentívora: aquilo que garante a riqueza da Nação não é o trabalho produtivo dos indivíduos, como acreditava Adam Smith (1723-1790), mas o Estado tornado empresário segundo a mentalidade pombalina [cf. PAIM, 1978: cap. 1]. A questão seria não como o cidadão se apropriar da riqueza através do trabalho, mas como se encostar no Estado, produtor da riqueza, para se enriquecer às custas dele. Eis o caminho aberto para os rombos previdenciários, para os “Mensalões” e “Petrolões”, e demais falcatruas que esvaziam os cofres públicos e aceleram a espiral inflacionária, comprometendo, de forma criminosa, o índice de desenvolvimento humano do Brasil.

4 – Conclusão: perspectivas futuras.

Como equacionar, no Brasil da Nova República, o problemático binômio autoritarismo-corrupção que tanto nos preocupa? Esta análise pretendeu, unicamente, mostrar uma coisa: sem abordarmos seriamente as causas culturais deste desagradável fenômeno, as reformas que porventura forem esboçadas só farão vingar o mal. Porque estas causas culturais correspondem à nossa representação do universo sociopolítico, e poderemos muito bem nos acomodar a novas estruturas, animados pelo mesmo espírito privatizante, improdutivo e parasita de que se nutrem atualmente o autoritarismo e a corrupção no Brasil.

Para só dar um exemplo da inocuidade de reformas que não levam em consideração o pano de fundo cultural que inspira a ação humana, vejamos a que ponto chegou, nas universidades públicas brasileiras, a desvalorização do trabalho intelectual, após múltiplas lutas reivindicatórias das associações de docentes: para progredir na carreira basta que um professor fique quieto na prateleira, a fim de amadurecer por tempo de serviço. O estímulo à criação intelectual foi banido em aras de uma falsa democratização, que não levou em consideração a nossa secular tendência para o empreguismo improdutivo. As reformas urgentes de que carece a Nova República serão deglutidas pelo sumidouro da corrupção e do autoritarismo, se não tomarmos consciência da origem cultural e do espírito em que vingaram os nossos problemas.

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