Voltar

ASPECTOS DA ÉTICA PÚBLICA NO PENSAMENTO DE ALEXIS DE TOCQUEVILLE (1805-1859)

Talvez Alexis de Tocqueville tenha sido um dos pensadores sociais e homens de ação que realizou, de forma mais completa, a dupla feição da ética estudada por Max Weber (ética de convicção e de responsabilidade) [cf. Weber, 1972]. O pensador francês, efetivamente, ancorou tanto numa quanto noutra. Tocqueville cultua o ideal da ética de convicção quando reflete acerca do seu compromisso como intelectual. Mas desenvolve, outrossim, interessante conceito de ética de responsabilidade em relação à problemática da pobreza. É meu propósito, neste breve trabalho, abordar ambos os aspectos mencionados para caracterizar as suas linhas gerais, destacando que os dois integram o conceito tocquevilliano de ética pública.. Desenvolverei, portanto, dois itens: 1) A ética intelectual de Tocqueville, atrelada à defesa incondicional da liberdade; 2) A ética política de Tocqueville, alicerçada no princípio da benevolência. Concluirei destacando a íntima relação existente entre as duas éticas concebidas pelo pensador francês.

1) A ética intelectual de Tocqueville, atrelada à defesa incondicional da liberdade.- O pensador francês considerava que o seu primeiro compromisso como intelectual consistia no esclarecimento e na divulgação da verdade histórica, que conduzisse à conquista da liberdade para todos os franceses. Neste seu empenho não admitia negociação. Daí as suas fortes críticas aos socialistas, aos bonapartistas, aos seus pares, os nobres (que tinham ancorado numa proposta de volta ao Ancien Régime), e aos próprios doutrinários, seus mestres, que tinham fechado as conquistas liberais na gaiola de ouro do formalismo jurídico e do elitismo burguês. Destaquemos, de entrada, a forma toda peculiar em que Tocqueville entende a democracia, como conquista da liberdade por parte de todos.

Três pontos saltam à vista na ética intelectual tocquevilliana: em primeiro lugar, a fundamentação das suas convicções morais no cristianismo, do qual o nosso autor tira o princípio fundamental de que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade e, portanto, podem aspirar aos benefícios da liberdade. Em segundo lugar, a solidariedade com os seus concidadãos, que correm perigo de cair nas mãos do despotismo, em lugar de conquistar a almejada liberdade. Em terceiro lugar, o dever de testemunhar a verdade histórica que o nosso autor descobriu na sua viagem à América. Essa verdade histórica resume-se na seguinte afirmação: a liberdade democrática é possível!.

No tocante ao primeiro ponto, Tocqueville [1977: 329] escreve o seguinte: "Todos os grandes escritores da Antigüidade faziam parte da aristocracia dos senhores, ou pelo menos viam essa aristocracia estabelecida sem contestação ante os seus olhos; o seu espírito, depois de se haver expandido em várias direções, achou-se, pois, limitado por aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e iguais".

Em relação ao segundo ponto, assim escrevia Tocqueville (em carta inédita a Orglandes, de 24/11/1834) [apud Mélonio, 1993: 30]: "Eu creio que cada um de nós deve prestar contas à sociedade, tanto dos seus pensamentos quanto das suas forças. Quando vemos os nossos semelhantes em perigo, é obrigação de cada um ir em socorro deles".

Em relação ao terceiro ponto, o dever de testemunhar a verdade histórica descoberta na América, Françoise Mélonio [1993: 30-31] escreve: "Tocqueville regressa, pois, da América, investido do dever de testemunhar. O primeiro volume da Démocratie, que publica em 1835, recebe desse objetivo apologético os traços que fazem dele o breviário da democracia moderna. A Démocratie é uma obra de auxílio ao povo em perigo (...). Ora, há urgência. Na Europa, os tempos se aproximam do triunfo da democracia. Tocqueville assume a postura de um São João Batista da democracia clamando no deserto: acordai antes que seja tarde demais!; o movimento democrático não é, ainda, suficientemente rápido como para desistir de dirigi-lo. A sorte [das nações européias] está nas suas mãos, mas bem cedo lhes escapa. E que não se diga que é tarde demais para tentar. Contra os pregoeiros de desgraças, os resignados, Tocqueville faz um apelo aos franceses para que, sem delongas, tomem o seu destino nas próprias mãos, a exemplo da América. Como os profetas e os pregadores, Tocqueville argumenta com os riscos que representa uma conversão tardia".

2) A ética política de Tocqueville, alicerçada no princípio da benevolência.- O pensador francês elaborou a sua concepção de uma ética política, ao discutir a problemática da pobreza na sociedade européia da sua época. As suas reflexões a respeito estão contidas em dois escritos de 1835, intitulados "Memória sobre a pobreza" e "Segundo artigo sobre a pobreza", que foram redigidos para a Sociedade Acadêmica de Cherbourg e que integram os seus "Escritos Acadêmicos". Na edição das Obras de Tocqueville [primeiro volume, 1991], preparada por André Jardin, Françoise Mélonio e Lise Queffélec, outros dois ensaios de Tocqueville foram escolhidos: o "Discurso à Academia Francesa" de 1842 sobre a história da França e o "Discurso à Academia de Ciências morais e políticas" de 1852, sobre a ciência política. A finalidade desses "Escritos Acadêmicos" era, segundo aponta Françoise Mélonio [1991: I, 1626] discutir "como estruturar a sociedade moderna, aglutinando os cidadãos desunidos, que a hierarquia de privilégios do Antigo Regime não organizava mais".

Tocqueville analisa a problemática da pobreza no contexto mais amplo da ciência social da época, inspirada na fisiologia social de Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq d'Azyr, Saint-Simon, etc. [cf. Rosanvallon, 1985: 22; Mélonio, 1993: 33 seg.; Vélez-Rodríguez, 1997c: 22-45]. É bem verdade que o nosso autor supera qualquer pretensão cientificista, deixando de render tributo, portanto, ao vício do historicismo. Mas utiliza o símil do corpo enfermo, para se referir à problemática social. Em relação ao mencionado fenômeno na Inglaterra, por exemplo, o nosso autor escreve: "(...) o pauperismo, esta enorme e horrível chaga em um corpo vigoroso e saudável" [Tocqueville, 1991: I, 1174].

Fiel ao arquétipo epistemológico mencionado, Tocqueville analisa a problemática da pobreza em três etapas: sintomatologia, tratamento errado e tratamento certo. Em relação à primeira etapa, o pensador francês destaca um fato paradoxal: essa doença somente é visível em organismos fortes. As nações que caminham rumo à modernidade, como a Inglaterra e a França, apresentam o contraste entre geração da riqueza e pobreza, contraste que não é visível onde a pobreza é a norma e a riqueza a exceção, como na Espanha ou em Portugal. O nosso autor dedica especial atenção ao estudo da doença na Inglaterra, país que conseguiu desenvolver os recursos econômicos de forma a permitir à maioria dos seus cidadãos a conquista de uma vida confortável e segura. Um sexto da população britânica, no sentir de Tocqueville, é marginalizada pela pobreza. Mas justamente por estar a maioria dos cidadãos em situação de conforto econômico, a marginalização do proletário é mais visível entre os ingleses do que na própria França.

No que tange à França da sua época, Tocqueville destaca que acontece algo semelhante: percebe-se mais a pobreza ali onde houve maior desenvolvimento. A respeito, o nosso autor escreve: "A média dos indigentes na França (...) é de um pobre para vinte habitantes. Mas grandes diferenças são observáveis entre as diferentes partes do mesmo reino. O departamento du Nord, que é com certeza o mais rico, o mais populoso e o mais desenvolvido, sob todos os pontos de vista, tem cerca de um sexto de sua população como dependente da caridade. Em Creuse, o mais pobre e menos industrial de nossos departamentos, existe apenas um indigente para cada cinqüenta e oito habitantes. Ainda de acordo com esta estatística, La Manche está listado como tendo um indigente para cada vinte e seis habitantes". [Tocqueville, 1991: I, 1156].

Em relação à segunda etapa na discussão da problemática da pobreza (o tratamento errado da mesma), Tocqueville chama a atenção para a confusão que a cultura humana termina estabelecendo entre necessidades artificiais e essenciais. O nosso pensador considera que o progresso da civilização leva, também, a que a sociedade busque aliviar as necessidades dos que se sentem carentes. "O progresso da civilização - frisa a respeito [Tocqueville, 1991: I, 1164] - não apenas expõe os homens a muitas infelicidades inéditas: ele também faz com que a sociedade amenize as misérias que são totalmente desconhecidas nas sociedades menos civilizadas. Em um país onde a maioria tem vestimentas ruins, habitações de má qualidade, pouco alimento, quem pensaria em dar roupas limpas, comida saudável e habitação confortável aos pobres? A maioria dos ingleses, tendo todas essas coisas, considera a ausência delas um problema terrível; a sociedade crê estar destinada a ajudar aqueles que não possuem tais confortos, e a curar os males que não são sequer reconhecidos como tais em outros lugares".

Essa tendência encontrou expressão na Inglaterra, pela primeira vez, na lei de Elizabeth I que dispunha a nomeação, em cada paróquia, de inspetores dos pobres (1601). Essa medida vinha responder à supressão, por Henrique VIII, de todas as comunidades dedicadas à caridade. Essa foi a remota origem da preocupação do governo inglês com a questão da pobreza, que nos países protestantes passou a ser responsabilidade do Estado, enquanto que no universo católico tradicionalmente foi incumbência da caridade privada [Tocqueville, 1991: I, 1164-1165].

Tocqueville é claro na sua crítica à forma estatal da caridade: para ele, toda medida contra a pobreza, alicerçada numa estrutura burocrática permanente, produz a preguiça social. O nosso autor se antecipava profeticamente das dificuldades encontradas pelo Welfare State na erradicação da pobreza. Eis as palavras de Tocqueville em relação ao tópico em apreço: "Qualquer medida que estabeleça a caridade legal de forma permanente e lhe dá uma forma administrativa cria, com isto, uma classe ociosa e preguiçosa, que vive às custas da classe trabalhadora e industrial. Isto, pelo menos, é a conseqüência inevitável, senão o resultado imediato. Ela reproduz todos os vícios do sistema monástico, mas não os altos ideais de moralidade e religião que em geral estavam associados a eles. Tal lei é uma semente ruim plantada no solo da estrutura legal. Assim como na América, as circunstâncias podem prevenir que a semente tenha um rápido desenvolvimento, mas não podem destrui-la, e se a geração atual escapar à sua influência, o bem-estar das gerações seguintes será devorado " [Tocqueville 1991: I, 1170].

Tocqueville formula os elementos básicos do que poderíamos chamar de princípio da beneficência na ética pública, quando apresenta as suas soluções, na terceira etapa da discussão da problemática da pobreza. O nosso pensador parte da definição moral do princípio da beneficência. Esse princípio alicerça-se numa espécie de imperativo categórico: deve poder se aplicar universalmente e as suas conseqüências devem estar de acordo com a moral.. Eis as suas palavras a respeito: "Obviamente não quero pôr em julgamento a beneficência, que é uma das virtudes mais naturais, belas e sagradas. Mas penso que não existe nenhum princípio, por melhor que seja, cujas conseqüências possam ser todas consideradas boas. Ela deveria ser uma virtude humana e sensata, não uma inclinação fraca e irresponsável. É necessário fazer o que for mais útil a quem recebe, e não o que mais agrada ao doador; fazer o que melhor atende as necessidades da maioria, e não o que é a salvação de poucos. Apenas desta forma posso conceber a benevolência. Qualquer outra forma seria a representação de um instinto ainda sublime, mas não mais me parece digna de receber o nome de virtude" [Tocqueville, 1991: I, 1177-1178].

A seguir, o nosso autor discute se a solução da problemática da pobreza mediante a aplicação do princípio da beneficência, pode-se dar pelo caminho da caridade veiculada pela iniciativa individual. Tocqueville não duvida em reconhecer a utilidade dessa modalidade de ação social; mas pensa que é insuficiente para equacionar o problema da pobreza.. Em relação a este ponto, o nosso autor escreve: "Resta-nos, então, a caridade individual. Ela produz apenas bons resultados. Sua fraqueza mesma é uma garantia quanto a conseqüências perigosas. Ela atenua a miséria, mas não produz nenhuma outra. No entanto, quando contemplada à luz do desenvolvimento progressivo das classes industriais, bem como de todos os males que a civilização traz junto com o bem inestimável que produz, a caridade individual parece bastante ineficaz. Ela era suficiente na Idade Média, quando o entusiasmo religioso deu-lhe uma enorme energia, e quando era mais fácil de ser realizada; mas seria ela hoje insuficiente, estando tão enfraquecida e carregando um fardo tão pesado? A caridade privada é um poderoso agente que não deve ser desprezado, mas seria imprudente depender dela. Ela é apenas um dos meios" [Tocqueville, 1991,: I, 1179].

O pensador francês examina, a seguir, se o caminho para o equacionamento da problemática da pobreza seria o da associação das pessoas caridosas. Esse tipo de solução, ao regularizar os auxílios, poderia dar à beneficência individual mais atividade e maior poder. Tocqueville não deixa de reconhecer a enorme utilidade da colaboração entre este tipo de ação e a "caridade pública", ministrada pelo Estado. Mas, além de reconhecer a fragilidade de soluções necessariamente temporárias, que se organizam nos momentos das grandes calamidades, considera que a "esmola do Estado" deve ser tão passageira, tão instantânea e tão imprevisível quanto as calamidades que busca remediar [Tocqueville, 1991: I, 1178].

O nosso pensador enxerga uma solução mais larga. Trata-se da formulação de uma política social que abarque três grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária dos camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo moderno pelo sistema produtivo.

A propósito deste ponto, escreve Tocqueville [1991: I, 1180]: "Depois de considerar curar males, não seria útil tentar preveni-los? Existiria uma maneira de impedir o deslocamento da população, de forma que os homens não deixem o campo e venham para a indústria na cidade antes que tenha esta a capacidade de suprir suas necessidades? Poderia a riqueza total de uma nação continuar a crescer sem que uma parte dos trabalhadores amaldiçoe a prosperidade que eles mesmos produzem? Seria possível estabelecer uma relação mais exata entre a produção e o consumo de bens manufaturados? Seria possível ajudar as classes trabalhadoras a poupar o fruto de seu trabalho, o que lhes permitiria esperar uma reviravolta em sua sorte em épocas de calamidade pública, sem que morram?"

No fundo da proposta tocquevilliana há três convicções de profunda fé liberal: em primeiro lugar, é possível, mediante uma inteligente legislação, criar os mecanismos institucionais que permitam corrigir os desvios do sistema produtivo, a fim de torná-lo mais justo, de acordo com o ideal democrático; em segundo lugar, a legislação deve atender à educação do homem, que é o meio adequado para lhe permitir desenvolver a sua inteligência; em terceiro lugar, a legislação deve-se voltar, também, para a democratização da propriedade, que é o meio através do qual os pobres podem recuperar a dignidade perdida, a sua liberdade, a fim de que se integrem produtivamente à sociedade moderna.

Em relação à educação, frisa Tocqueville: "Entendo (...) a caridade pública como abrir escolas para os filhos dos pobres a fim de fornecer gratuitamente à inteligência os meios de adquirir, mediante o trabalho, os bens do corpo". Já no que tange à legislação que democratize a propriedade, o nosso pensador destaca dois tipos de medidas: umas, dirigidas ao homem do campo, a fim de evitar o êxodo rural; outras, dirigidas ao operariado urbano, a fim de estimular, nele, o sentido de responsabilidade, mediante o desenvolvimento da poupança.

A respeito do primeiro aspecto, escreve Tocqueville [1991: I, 1183-1184]: "Considero que entre os meios de dar aos homens os sentimentos da ordem da atividade e da economia, não conheço um mais poderoso que o de lhes facilitar o acesso à propriedade fundiária (...). O meio mais eficaz de prevenir a pobreza nas classes agrícolas é, pois, com certeza, a divisão da propriedade fundiária. Essa divisão existe entre nós, na França, e não devemos temer, pois, que se instalem, aqui, grandes e permanentes misérias. Mas pode-se ainda melhorar muito o conforto dessas classes e tornar os males individuais menos cruéis e mais raros. É dever do governo e das gentes de bem trabalhar para que isso aconteça".

O nosso pensador considerava que, no que tange à divisão fundiária, o problema era muito grande na Inglaterra, devido à concentração de terras em poucas mãos. Os camponeses despojados das suas pequenas propriedades iam para as cidades engrossar o exército de proletários. A expansão da pequena propriedade fundiária na França, de outro lado, não foi obra da Revolução de 1789, mas ocorreu paulatinamente ao longo dos séculos XVII e XVIII, como paradoxal efeito do desmantelamento centralizador das instituições feudais. O nosso autor dedicou uma longa análise ao fenômeno, na sua obra O Antigo Regime e a Revolução [Tocqueville, 1988: 117-127; 211-227; 259-269].

No que tange à legislação que deveria estimular no operariado urbano o sentimento de responsabilidade, Tocqueville [1991: I, 1187] escreve: "A meu modo de ver, o problema a ser resolvido é este: como encontrar um meio de dar ao operariado industrial, bem como ao pequeno agricultor, o espírito e os hábitos da propriedade. Dois meios principais apresentam-se: o primeiro (e a primeira vista o mais eficaz), consistiria em estimular no operariado o surgimento de um interesse pessoal na sua fábrica. Isso produziria, nas classes industriais, efeitos semelhantes aos que enseja a divisão da propriedade fundiária na classe agrícola".

O nosso autor examina detalhadamente como se poderia dar essa solução na França da sua época. Considera que, embora ideal, a participação do operariado na gestão e nos lucros das empresas é uma medida que, pela excessiva politização dos sindicatos, não tem sido possível instaurar. Mas acha que, no futuro, mediante o amadurecimento da classe operária, graças a um sindicalismo mais evoluído e ao desenvolvimento da instrução, será possível chegar a esse tipo de participação, que tornaria o operário efetivamente proprietário no seio das indústrias. Por enquanto, Tocqueville considera que a solução é estimular a poupança, mediante uma adequada política salarial e a criação de mecanismos financeiros que a tornem segura e atraente aos trabalhadores. A respeito, o nosso autor frisa: "Posto que não é possível dar aos operários um interesse de propriedade na fábrica, pode-se, ao menos, facilitar-lhes, à sombra dos salários que retiram da fábrica, a criação de uma propriedade independente. Favorecer a poupança sobre os salários e oferecer aos operários um método fácil e seguro de capitalizar as suas poupanças e de fazê-las produzir lucros, tais, são, pois, os únicos meios de que a sociedade pode se servir, nos nossos dias, no esforço de combater os maus efeitos da concentração das propriedades mobiliárias nas mesmas mãos, a fim de dar à classe industrial o espírito e os hábitos da propriedade, que uma grande porção da classe agrícola já possui. Toda a questão reduz-se, pois, a buscar os meios que possam permitir ao pobre capitalizar e tornar produtivas as suas poupanças" [Tocqueville, 1991: I, 1188].

Qual seria o mecanismo financeiro ideal, na França, para estimular e gerir a poupança dos trabalhadores? O nosso autor é cético quanto à possibilidade de o Estado desempenhar a contento essa função, devido aos seus incontroláveis gastos e às desgraças que a imprevidência do Leviatã tem causado na história do país. A respeito, escreve: "Depois de cem anos, o Estado somente produziu, mais de uma vez, a falência: o Antigo Regime a produziu, a Convenção também. Durante os últimos cinqüenta anos o governo da França mudou radicalmente sete vezes e foi reformado em muitas outras oportunidades. Durante esse período, os franceses experimentaram 23 anos de guerra terrível e duas invasões quase totais do seu território. É triste recordar esses fatos, mas a prudência exige que eles não sejam esquecidos. Seria prudente, justamente num século de transição como o nosso, num século polarizado, pela sua conjuntura histórica, por grandes agitações (...) entregar nas mãos do governo, quaisquer que sejam a sua forma e o seu representante atual, toda a fortuna de um tão grande número de homens?"[Tocqueville, 1991: I, 1191].

O nosso autor apela para uma solução original: reformar as caixas de poupança então existentes, de maneira que fossem instituições de crédito descentralizadas, que possibilitassem a aplicação do dinheiro arrecadado pela poupança dos trabalhadores, em obras que beneficiassem as várias regiões [Tocqueville, 1991: I, 1194]. De outro lado, o pensador francês propõe a criação de uma espécie de "banco dos pobres" que substituísse os montepios, considerados por ele como estabelecimentos graças aos quais o pobre é arruinado a fim de lhe garantir um refúgio na sua miséria" [Tocqueville, 1991: I, 1195].

O perfil da instituição bancária imaginada pelo nosso autor seria o seguinte: "Nesse sistema, a administração receberia de um lado as poupanças e, de outro, dar-lhes-ia aplicação. Os pobres que possuem dinheiro para emprestar o depositariam nas mãos de uma administração que, mediante contrato garantido por penhor, remetê-lo-ia aos pobres que teriam necessidade de empréstimo. A administração não seria mais do que um intermediário entre esses dois grupos. Na realidade, seria o pobre capitalizado ou momentaneamente favorecido pela fortuna, quem emprestaria com juros a sua poupança ao pobre pródigo ou em situação precária. Nada de mais simples, de mais prático nem de mais moral do que tal sistema: as poupanças dos pobres, administradas dessa forma, não poriam em risco nem o Estado nem os pobres mesmos, pois nada há de mais seguro no mundo do que um empréstimo garantido por penhor. Além do mais, esse seria um verdadeiro banco dos pobres, cujo capital seria fornecido pelos próprios pobres" [Tocqueville, 1991: I, 1195].

Conclusão.- As duas dimensões da ética no pensamento de Alexis de Tocqueville, a intelectual e a política, embora tematizadas em contextos diferentes da sua obra, estão, contudo, profundamente relacionadas. Diríamos que o ideal da ética política, materializado no princípio da beneficência, torna-se possível unicamente mediante o cumprimento do imperativo da defesa incondicional da liberdade para todos. O nosso pensador, efetivamente, caracteriza o princípio da beneficência da seguinte forma: fazer o bem mais verdadeiramente útil àquele que o recebe, de forma que sirva ao bem-estar do maior número. Ora, no pensamento tocquevilliano o bem mais radicalmente útil que se pode conceber para alguém na sociedade consiste na conquista da liberdade. O completo desenvolvimento do imperativo categórico da beneficência aponta, em última instância, para essa finalidade. Trata-se de fazer aos excluídos da sociedade da sua época, os proletários, o bem mais útil. Esse bem consiste, no pensamento do nosso autor, em dotá-los dos meios que lhes possibilitem reconquistar a dignidade perdida, alicerçada na liberdade. O proletário deve ser estimulado, nas empresas, a ter algum interesse material, assim como o homem do campo deve preservar as suas pequenas posses. Isso, basicamente, porque a partir daí eles poderão reconstruir o ideal de luta pela liberdade. O pensamento ético de Alexis de Tocqueville ancora, destarte, na mais pura tradição liberal de Locke, Montesquieu, Jefferson e dos federalistas americanos.

BIBLIOGRAFIA

MÉLONIO, Françoise [1991]. "Écrits académiques -- notice". In:Alexis de Tocqueville, Oeuvres, I. (Organizador, André Jardin, com a colaboração de F. Mélonio e L. Queffélec). Paris: Gallimard, La Pléiade, pgs. 1626-1634.

MÉLONIO, Françoise [1993]. Tocqueville et les Français. Paris: Aubier.

ROSANVALLON, Pierre [1985].Le moment Guizot. Paris: Gallimard.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1977]. A democracia na América. (Tradução, prefácio e notas de N. Ribeiro da Silva). 2ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1988].L'Ancien Régime et la Révolution. (Prefácio, notas, cronologia e bibliografia a cargo de F. Mélonio). Paris: Flammarion.

TOCQUEVILLE, Alexis de [1991]. Oeuvres, I. (Organizador, André Jardin, com a colaboração de F. Mélonio e L. Queffélec). Paris: Gallimard, Pléiade.

VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo [1997a] "A problemática da pobreza segundo Alexis de Tocqueville". In Carta Mensal, Rio de Janeiro, vol. 43, no. 508, pgs.3-16.

VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo [1997b]. "O liberalismo democrático segundo Alexis de Tocqueville (1805-1859)". In: Cultura, Revista de história e teoria das idéias. Lisboa, vol. X, segunda série, pgs. 437-460.

VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo [1997c]. Socialismo moral e socialismo doutrinário. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho; Londrina: Instituto de Humanidades; Brasília: Instituto Teotônio Vilela. Volume I da coleção A Social Democracia.

WEBER, Max [1972]. Ciência e política: duas vocações. (Prefácio de M. T. Berlinck; tradução de L. Hegenberg e O. Silveira da Mota). São Paulo: Cultrix.