Nestes tempos cabulosos em que virtude se confunde com vício e em que surgem associações espúrias que apregoam o crime como se fosse um grande sucesso – refiro-me, aqui, à foto dos felizardos José Dirceu e Kakay, em Paris, fazendo o “L” em comemoração ao sepultamento quase definitivo da Operação Lava-Jato, com a cassação, pelo TSE, do mandato parlamentar do deputado Deltan Dallagnol – vale a pena que nos perguntemos o que realmente é a virtude e qual seria a sua diferença fundamental com o vício e com o triunfo da imoralidade, em matéria política.
Para falarmos em Ética, precisamos fazer uma distinção conceitual entre o que este termo significa, em face da palavra Moral. Alicerçado em dois escritos do saudoso Mestre Antônio Paim (1927-2021), [Tratado de Ética, Londrina: Edições Humanidades, 2003 e Modelos éticos: Introdução ao estudo da Moral, Curitiba: Champagnat 1992], posso frisar que os termos Ética e Moral estão intimamente ligados, mas se referem a objetos formais diferentes.
Segundo a tradição filosófica que se firmou na modernidade, a partir de Immanuel Kant (1724-1804) convencionou-se em entender por Moral um conjunto de normas de conduta, adotado como absolutamente válido, por parte de uma comunidade humana, num tempo determinado. Já por Ética, passou-se a entender o conceito de Moral que foi se sedimentando, numa determinada época, no seio das tradições sobre as quais se alicerça o comportamento coletivo. Assim, a Moral diz relação à concretude das Normas de conduta, enquanto a Ética se refere às categorias específicas que caracterizam o comportamento moral num determinado ciclo histórico.
Destaquemos um aspecto importante da Moral: ela assume um caráter imperativo, ao explicitar a obrigação de seguir uma determinada ou determinadas normas de conduta. Uma norma seria, por exemplo, aquela que Karl Marx (1818-1883) colocou como essencial ao seu sistema econômico e que consistiria no denominado 11º Mandamento, que reza assim: “Não explorarás o trabalho alheio”. Daí emerge, para o Marxismo, a sua força histórica, que repousa, em última instância, na tradição judaico-cristã secularizada e fechada numa concepção materialista. Não estou aqui fazendo uma apologia gratuita de Marx. O Professor Paim, que do marxismo se desgarrou para virar um liberal de convicção, reconhecia que, embora Marx tivesse chafurdado nos seus escritos econômicos num simplório materialismo, no entanto, por força da influência que nele tiveram os escritos dos idealistas alemães (Kant e Hegel, notadamente), incorporou a ideia de “imperativo categórico”, erguendo o princípio “Não explorarás o trabalho alheio” como um dos mandamentos que deveriam presidir a ação política.
O conjunto fundamental de Normas de conduta, essencial para a Civilização Ocidental, seria o Decálogo de Moisés, que está na base da tradição judaico-cristã. A Ética se refere a um conjunto de reflexões que tentam organizar, de forma sistemática, um determinado comportamento moral. Teríamos, assim, por exemplo, no contexto das éticas ocidentais, vários tipos, como o decorrente da visão judaico-cristã que valoriza o trabalho, no contexto da tradição reformista do Protestantismo, que teria dado ensejo, segundo Max Weber (1864-1920), à ética calvinista, presente no Capitalismo.
Paralelamente, ao amparo de filosofias extremadamente utilitaristas, teríamos a formulação de éticas que foram pensadas, na sua origem, ao ensejo do epicurismo, como prolongamento dos interesses egoístas do indivíduo, a partir do princípio sofístico de que “o homem é a medida de todas as coisas”. Tal modelo ético estaria na base, ao nosso modo de ver, de éticas eminentemente materialistas, que tornam válidos comportamentos que só focalizam os interesses úteis imediatos e que, no seu extremo, dão origem ao modelo de ética totalitária presente hoje no imperativo: “Os fins justificam os meios”.
Outras noções que precisam ser esclarecidas são a de Moral Individual e Moral Social. Pela primeira, entendemos o conjunto de Normas de conduta que pautam o comportamento moral dos indivíduos, do ângulo das Obrigações da consciência ou dos Imperativos Categóricos, que criam Deveres Morais que devem ser respeitados custe o que custar e que identificam o comportamento moral das pessoas. Já por Moral Social entendemos aquele mínimo comportamental em que as pessoas acreditam e que é necessário cumprir para que uma determinada comunidade não se dissolva. A Moral individual olha mais para a consciência do indivíduo, enquanto a Moral Social focaliza, preponderantemente, o conjunto de normas de comportamento social emanadas das autoridades formatadoras de determinada comunidade.
O tipo de Moral Social mais evoluído e que acompanha o ideal de Pessoa Humana seria o modelo consensual. Mas existem, também, modelos de moral social emergentes de uma imposição dos que mandam sobre o corpo social. Um exemplo deste seriam as normas emitidas pelo Marquês de Pombal (1699-1782), no contexto do despotismo esclarecido, visando à formação profissional dos indivíduos e à segurança do Estado [cf. PAIM, A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978]. Um exemplo concreto desse modelo foi a “aritmética política” pombalina, que consagrava um perfil de cidadãos tratados como fichas pelo Estado absolutista, guiados com mão de ferro pelo Monarca absoluto iluminado pela ciência aplicada a serviço do Estado. Essa seria a “ética das autoridades” mencionada por Weber.
A França de 1848 vivia tempos similares aos que o Brasil hoje está vivendo, com o triunfo parcial dos socialistas radicais sobre a classe política, que tinha conseguido reorganizar a representação após as desgraças patrocinadas pela Revolução Francesa, o Terror Jacobino e o Absolutismo Imperial de Napoleão Bonaparte (1769-1821). O período da Monarquia de Julho – entre 1830 e 1848 – tinha significado um remanso de paz no convulso panorama político da Nação Francesa. Mas o Conservadorismo de François Guizot (1787-1874), com a sua teoria das Classes Médias chamadas ao exercício do poder para organizar a representação, tinha entrado em crise, justamente pelo aspecto que Tocqueville criticava aos seus mestres, os Doutrinários: nas reformas empreendidas - frisava o jovem autor de A Democracia na América (1835-1840) - faltava aquela reforma que democratizasse definitivamente o sufrágio, a fim de incorporar o proletariado ao exercício da representação e que conquistasse, de uma vez por todas, a chegada ao ideal da plena democracia. Ora, aquilo que foi feito com reformas progressivas amplamente negociadas por William Gladstone (1808-1898), na segunda metade do século XIX na Inglaterra, era necessário fazer na França. Só que o caminho, nesse país, seria diferente do tomado pela Inglaterra, como alertava Guizot no seu genial livro intitulado: História da civilização europeia desde a queda do Império Romano até a Revolução Francesa [cf. GUIZOT, Historia de la Civilización en Europa, trad. espanhola de F. Vela, Madrid: Alianza Editorial, 1990, pp. 307-330]. Tudo na França aconteceu aos borbotões e radicalmente, enquanto, na Inglaterra, as reformas democratizantes produziram-se de forma lenta e com segurança, até serem assimiladas plenamente pelo conjunto da sociedade.
Não duvidaríamos em falar de “ética intelectual” e não de “ética política” em Tocqueville, fazendo referência ao binômio formulado por Max Weber: “ciência como vocação” e “política como vocação”. O compromisso fundamental do pensador francês era com o esclarecimento da verdade histórica, que conduzisse à conquista da liberdade para todos os franceses. Neste seu empenho não admitia negociação. Daí suas fortes críticas aos socialistas, aos bonapartistas, aos seus pares os nobres, que tinham ancorado numa proposta de volta ao Antigo Regime e aos próprios doutrinários, seus mestres, que tinham fechado as conquistas liberais na gaiola de ouro do formalismo jurídico e do elitismo burguês.
Três pontos básicos saltam à vista na ética tocquevilliana: em primeiro lugar, a fundamentação das suas convicções morais no Cristianismo, do qual o nosso autor tira o princípio básico de que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade e, portanto, podem aspirar aos benefícios da Liberdade. Em segundo lugar, a solidariedade com os seus concidadãos, que correm perigo de cair nas mãos do despotismo, em lugar de conquistar a almejada liberdade. Em terceiro lugar, o dever de testemunhar a verdade histórica que o nosso autor descobriu na sua viagem à América e que expressa com a sua famosa frase: “a Liberdade Democrática é possível!”.
Em relação ao primeiro ponto (fundamentação das convicções morais no Cristianismo), Tocqueville escreve: “Todos os grandes escritores da Antiguidade faziam parte da aristocracia dos senhores, ou pelo menos viam essa aristocracia estabelecida sem contestação ante os seus olhos; o seu espírito, depois de se haver estendido por vários lados, achou-se, pois, limitado por aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e iguais” [TOCQUEVILLE, A Democracia na América, trad. brasileira, prefácio e notas de N. Ribeiro da Silva, 2ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1977, p. 323].
Em relação ao segundo ponto (solidariedade dos indivíduos para com os seus concidadãos), assim escrevia Tocqueville: “Eu creio que cada um de nós deve prestar contas à sociedade, tanto de seus pensamentos quanto de suas forças. Quando vemos nossos semelhantes em perigo, é obrigação de cada um ir ao socorro deles” [TOCQUEVILLE, “Carta inédita a Orglanes”, de 24/11/1834, apud MÉLONIO, Tocqueville et les Français, Paris: Aubier, 1993: p. 30].
Em relação ao terceiro ponto (o dever de testemunhar a verdade histórica descoberta na América), Françoise Mélonio escreve: “Tocqueville regressa, pois, da América, investido do dever de testemunhar. O primeiro volume da Democracia, que publica em 1835, recebe desse testemunho histórico os traços que fazem dele o breviário da democracia moderna. A Democracia é uma obra de auxílio ao povo em perigo (...). Ora, há urgência. Na Europa, ‘os tempos se aproximam’ do triunfo da democracia. Tocqueville assume a postura de um João Batista da democracia clamando no deserto: ‘acordai antes que seja tarde demais’; o movimento democrático ‘não é, ainda, suficientemente rápido para desistir de dirigi-lo. A sorte [das Nações européias] está em suas mãos, mas bem cedo lhes escapa’. ‘E que não se diga que é tarde demais para tentar’. Contra os profetas de desgraças, os resignados, Tocqueville faz um apelo aos franceses para que, sem delongas, tomem o destino do país em suas mãos, a exemplo da América. Como os profetas e os pregadores, Tocqueville argumenta com os riscos de uma ‘conversão tardia’ ” [MÉLONIO, Françoise, Tocqueville et les Français, ob. cit., pp. 30-31].
Completemos estes arrazoados acerca da ética tocquevilliana, destacando que o nosso autor pensava ser necessário entender a História como estudo dos fatos no seu encadeamento temporal, evitando com cuidado o pecado racionalista dos filósofos da sua época, que substituíram o estudo dos fatos pela construção de “narrativas” facilmente aceitáveis pelas massas. Isto, aliás, considerava Tocqueville, consistia em desconhecer a História na sua essência e projetaria a sociedade na tentativa de construir narrativas agradáveis ao grande público e úteis para os propagandistas de determinadas ideias salvadoras. A História entendida como paciente reconstituição dos fatos que se passaram é, portanto, a matéria dos historiadores, que não têm nada a ver com o profetismo dos que pretendem oferecer fórmulas messiânicas ao povo.
O principal defeito que Tocqueville enxergava na historiografia dos tempos democráticos, consistia no fato de tal modelo se alicerçar numa concepção fatalista da história, que pressupõe, em primeiro lugar, uma concepção determinista do homem. A respeito, nosso autor escreve: “Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte, e os submetem ora a uma Providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação está totalmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar. Tornam as gerações solidárias umas das outras e, remontando-se, assim, de época em época e de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa que envolve todo o gênero humano e o aprisiona. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos: comprazem-se, ainda, em mostrar que não podiam ter acontecido de outra forma. Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu até ali. Isso é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para seguir um melhor caminho” [TOCQUEVILLE, A Democracia na América, ob. cit., p. 375].
Tocqueville rejeitava de plano tal historiografia por considerar que essa concepção nega a liberdade humana, base da “dignidade das almas”. Tratava-se, para ele, de superar as desgraças da Revolução e do Terror Jacobino, não de conduzir a nação francesa à sua definitiva destruição. Tocqueville identificava o caminho que deveria ser seguido: o da liberdade, ou melhor, o da conquista da liberdade para todos os franceses.
A respeito da crítica efetivada contra essa concepção fatalista, Tocqueville escrevia: “Se essa doutrina da fatalidade, que tem tantos atrativos para aqueles que escrevem a história nos tempos democráticos, passando dos escritores aos seus leitores, penetrasse assim em toda a massa de cidadãos e se apoderasse do espírito público, pode-se prever que logo paralisaria o movimento das sociedades novas e reduziria os cristãos a turcos. Direi mais: semelhante doutrina é particularmente perigosa na época em que nos encontramos; nossos contemporâneos acham-se muitíssimo inclinados a duvidar do livre-arbítrio, porque cada um deles sente-se limitado por todos os lados pela sua fraqueza, mas ainda atribuem, de boa vontade, força e independência aos homens reunidos em corpo social. É necessário que nos guardemos de obscurecer essa idéia, pois se trata de restabelecer a dignidade das almas e não de completar a sua destruição” [TOCQUEVILLE, A Democracia na América, ob. cit., p. 377].
A idéia providencialista em Tocqueville não é um dogma teológico que interfira em sua visão racional da política, colocando uma espécie de fim absoluto para a história. Trata-se de um recurso epistêmico que, de um lado, lhe permite delimitar a área de estudos sobre a política e, de outro, lhe serve para tender uma ponte com a sua concepção ética, que pressupõe a mesma dignidade para todos os homens.
A respeito do papel instrumental da idéia providencialista em Tocqueville, escreve Françoise Mélonio: “O recurso à Providência não implica, pois, que a ciência política seja um ramo da teologia, da fenomenologia do espírito ou da história natural. Tendo afirmado no mesmo movimento a Providência e a liberdade, Tocqueville pode demarcar o campo da política e procurar ali uma racionalidade específica. A primeira Democracia apresenta-se como uma inquirição acerca do regime democrático” [MÉLONIO, Tocqueville et les Français, ob. cit., p. 33].
Outro aspecto que salta à vista na ciência política tocquevilliana é a influência que o autor recebeu da que poderíamos chamar de tendência orgânica dos estudos sociais, característica que era comum no final do século XVIII e no início do XIX. Françoise Mélonio registrou essa influência da seguinte forma: “A prática de Tocqueville tinha um precedente: as pesquisas sociais, inauguradas no século XVIII, que conheceram sua idade de ouro na primeira metade do século XIX. Elas tinham como objeto privilegiado o mal social. Tendo sido pensada a sociedade como um organismo, sua doença implicava uma disfunção geral. Interessar-se pelo pauperismo, pela criminalidade, pela prostituição, constituía o caminho para elaborar um diagnóstico acerca da sociedade, a fim de fixar uma terapêutica. A viagem de Tocqueville [à América] insere-se na grande corrente da pesquisa social, estatística e qualitativa (...)” [TOCQUEVILLE, “Carta inédita a Orglanes”, de 24/11/1834, apud Françoise MÉLONIO, Tocqueville et les Français, ob. cit., p. 30].
BIBLIOGRAFIA
GUIZOT, François. Historia de la Civilización en Europa, (trad. espanhola de F. Vela), Madrid: Alianza Editorial, 1990.
MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français, Paris: Aubier, 1993.
PAIM, Antônio. A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
PAIM, Antônio. Modelos éticos: Introdução ao estudo da Moral, Curitiba: Champagnat, 1992.
PAIM, Antônio. Tratado de Ética, Londrina: Edições Humanidades, 2003.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América, trad. brasileira, prefácio e notas de N. Ribeiro da Silva, 2ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1977.
TOCQUEVILLE, Alexis de. “Carta inédita a Orglanes”, de 24/11/1834, apud Françoise MÉLONIO, Tocqueville et les Français, Paris: Aubier, 1993, p. 30.