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AO MESTRE COM CARINHO

AO MESTRE COM CARINHO

A CANTANTE ESCOCESA LULU KENNEDY-CAIRNS (1948-) QUE CONTRACENOU COM SIDNEY POITIERS NO FILME "AO MESTRE COM CARINHO"

Há 54 anos, em outubro de 1968, numa cálida tarde, em Medellín (com os seus 25 graus o ano todo, que fazem dessa linda capital regional “a cidade da eterna primavera”), comemorei, pela primeira vez, o Dia dos Mestres. Fazia apenas três meses que eu tinha iniciado o meu trabalho como professor, nas Universidades EAFIT e Bolivariana. Fui, com a primeira namoradinha, assistir o filme estrelado por Sidney Poitiers (1927-2022), que tinha o título deste breve comentário: “Ao Mestre com carinho”. Eu vivia uma adolescência tardia, pelo fato de ter ficado no Seminário até os 25 anos. Aconteceu-me, na seara afetiva, algo semelhante ao que se passou com Luiz Carlos Prestes, que por estar enfronhado em revoluções e vida militar, só foi namorar depois dos vinte e tantos.

Bom: o certo é que, aos trancos e barrancos, fui-me habituando aos sobressaltos da nova vida que, de firme, só tinha uma coisa: não duvidava de que seria professor pelo resto da existência!

Hoje vejo para trás a minha história e não me arrependo de ter optado pela docência. Ela foi, para mim, o campo de encontro com muitas gerações de jovens, aos quais ajudei, com as minhas aulas e orientações de cafeteria e biblioteca, a enfrentar os obstáculos que a vida universitária apresenta, sempre.

Orientei muita gente, nos seus trabalhos de graduação, especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Sempre admirei a atitude respeitosa que encontrei espelhada nos meus mestres, na arte de ensinar, à luz do imperativo de respeitar a autonomia dos alunos. Aprendi isso, já nos anos 60, com aquele grande scholar e intelectual integérrimo, que virou amigo do peito, René Uribe Ferrer (1918-1984), meu primeiro decano na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Bolivariana, em Medellín. René era um intelectual conservador, desses que não se fazem mais hoje: escritor brilhante, crítico literário sempre bem fundamentado, advogado proeminente e combativo, filósofo com rigor crítico e lógica implacável e teólogo de profundidades insondáveis. A atitude que mais o marcava como mestre era a tolerância em face das opções de vida de cada um. Estava sempre atento para ouvir as dúvidas e angústias dos seus orientandos, respeitando as suas decisões existenciais, mas sem deixar de mostrar, sempre, aspectos importantes ligados à preservação da dignidade pessoal, porventura deixados de lado pelas jovens mentes. Era um verdadeiro guia espiritual.

 Outro mestre que me marcou foi o grande Otto Morales Benítez (1920-2015), inteligência liberal, combativo líder partidário, a sua sala de aula era a praça pública, a “ágora” dos atenienses. Em Riosucio, sua cidade natal, no Departamento de Caldas, contava-me o Mestre, gostava de, aos domingos, ler com os seus humildes correligionários e com os amigos, o jornal de domingo, discutindo as notícias e as matérias informativas da vida política local e nacional. A sua inteligência, muito viva, estava totalmente dedicada à política e à arte de escrever sobre os grandes clássicos da língua espanhola. Otto era um vigoroso defensor da liberdade para todos, nesse seu compromisso radicalmente democrático. Era também advogado e historiador respeitado, das ideias e da literatura. Conversava com todo mundo, especialmente com os jovens. Lembro que, em certa vinda de Otto ao Brasil, almoçamos juntos naquele belo restaurante do Aeroporto Santos Dumont, cujo terraço se abria para a Bahia da Guanabara, o “14 bis”. A minha filha Vitória, recém ingressada na Universidade para adiantar o curso de Direito, logo foi interrogada pelo meu venerável amigo: “Vitória, me conta: qual é o partido em que militas?” Otto interessava-se pela opção política de todos os que dele se aproximavam e gostava de saber o que os jovens preferiam! Após publicar o meu primeiro livro, em 1978, sem me conhecer, escreveu-me o seguinte: “quero conhecê-lo e me interessa ser seu amigo. Temos muitos interesses em comum”. Aproximei-me dele logo nesse ano e, desde então, até a sua morte (em 2015), mantivemos uma amizade intelectual de grande fecundidade. Otto era um liberal de esquerda, de tendência social-democrata e com a sua proximidade pude observar como é difícil classificar ou excluir as pessoas pelo rótulo doutrinário que as marca, sendo o mais importante a atitude de abertura a todas as tendências e o respeito para com as opções de cada um. Otto dialogava com todo mundo e, como agente mediador das conversações de paz com os movimentos da esquerda radical, sempre foi muito firme em suas convicções de defesa da liberdade e, ao mesmo tempo, muito respeitado. Em mais de uma oportunidade o seu nome foi postulado como candidato à Presidência da Colômbia. Era um oceano de generosidade. Nas minhas idas a Bogotá, sempre o visitava naquele seu escritório, entulhado de livros e processos, situado na bela Torre Colpatria, no coração da cidade. Saía da visita ao meu amigo carregado de livros que, religiosamente, fui conservando na minha biblioteca em Juiz de Fora.

No Brasil, ao longo dos estudos de Mestrado e Doutorado, travei amizade com mais dois mestres que me marcaram: Antônio Paim (1927-2021), meu orientador tanto no Mestrado como no Doutorado, na PUC do Rio e na Universidade Gama Filho, e por cuja mão terminei lendo os clássicos liberais que me libertaram da visão materialista e sem esperança ensejada pelo marxismo, filosofia à qual tinha me aproximado, ao ensejo da simpatia que passei a nutrir pela Teologia da Libertação. Quando do início do Curso de Doutorado, em 1979, acabava de regressar da Colômbia, com escassos recursos financeiros. Ao ser aceito no Programa da Gama Filho, decidi deixar para iniciar o curso no ano seguinte, pois não conseguia pagar as mensalidades. Qual não foi a minha surpresa quando, ao passar pela Secretaria para adiar a matrícula, informaram-me que tanto esta quanto as mensalidades do ano inteiro já tinham sido pagas pelo meu mestre. Anos depois, quando fiz um depósito para o meu amigo com a importância gasta por ele, não aceitou o dinheiro, preferindo que o utilizasse para apoiar o Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro por ele criado.

A conversão cultural para a qual Paim me abriu as portas se deu mediante a disciplinada leitura dos clássicos liberais, à qual me vi obrigado, por dever de ofício, quando da elaboração da minha dissertação de Mestrado, que versava sobre o Castilhismo. Lendo os clássicos do Liberalismo, descobri o quanto eram pouco interessantes as teorias autoritárias que deixavam de lado a defesa da liberdade. Poderia dizer com Lipovetski: “larguei Marx e adotei Tocqueville”. Paim, foi, para mim, a encarnação do ideal ético do professor descrito por Max Weber, como aquele que aposta no crescimento intelectual do seu aluno sem receio de que cresça, lhe abrindo espaços para que saiba descobrir as sendas da liberdade.

De Eduardo Abranches de Soveral  (1927-2003), que foi meu professor no Curso de Doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro na Universidade Gama Filho, aprendi a lição de valorização do crescimento dos meus alunos, excluindo qualquer traço de egoísmo ou de inveja em face do seu desenvolvimento. Lembro-me de que o mestre português insistia em que a ética do professor era semelhante à de São João Batista, com aquele princípio formulado quando do seu encontro com Jesus: “convém que Ele cresça e que eu desapareça”. O mestre, dizia Soveral, não deve ter receio do crescimento dos seus alunos: quanto mais completo for aquele, a sua missão estará cumprida com maior perfeição.

Encerro estas recordações em homenagem aos meus Mestres, com duas lembranças marcantes. A primeira, do centenário  amigo José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017) que representava o Brasil na Polônia, como embaixador, em 1979. Procurou-me em São Paulo, interessado em trocar informações acerca das críticas que eu tinha levantado à Teologia da Libertação. A partir de então, começamos a trocar manuscritos e publicações. Quando, nos anos 90, apresentei a ele um projeto de pesquisa de pós-doutorado que tinha enviado ao CNPQ e que versava sobre o estudo do pensamento de Alexis de Tocqueville (1805-1859), lhe informando que tinha sido rejeitado pelo fato de não ser "filosófico", ele me falou que o enviaria aos seus amigos franceses, sendo que o professor Jean-Claude Lamberti se manifestou interessado em me acolher no Centre de Recherches Politiques "Raymond Aron", em Paris, para que desenvolvesse ali esse projeto. O professor Lamberti, infelizmente, faleceu e o contato inicial foi interrompido. Meses depois, recebi correspondência da assistente do renomado pesquisador, a doutora Françoise Mélonio (1951-), na qual ela escrevia que a viúva de Lamberti tinha lhe passado o meu projeto e que, tendo-o analisado, aceitava me orientar na mesma instituição. Foi assim como, entre 1994 e 1996, desenvolvi, sob a orientação dela, a minha pesquisa, que terminou sendo publicada na Tocqueville Review, editada pela Universidade de Toronto, no Canadá. Desses estudos surgiram dois livros da minha lavra: A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville (publicado em 1998 pela editora Mandarim, de São Paulo) e O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil (atualmente no prelo, em Londrina).