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A SOCIEDADE INVERTEBRADA SEGUNDO ORTEGA Y GASSET: O SEPARATISMO ESPANHOL E O ENSIMESMAMENTO BRASILEIRO

A SOCIEDADE INVERTEBRADA SEGUNDO ORTEGA Y GASSET: O SEPARATISMO ESPANHOL E O ENSIMESMAMENTO BRASILEIRO

O FILÓSOFO ESPANHOL JOSÉ ORTEGA Y GASSET (1883-1955) FUNDADOR DA "ESCOLA DE MADRI"

A onda separatista que como coqueluche percorreu a Europa e que teve o seu ápice no caso da Catalunha (em 2017) com a declaração de independência, pelo Parlamento Catalão, sob a inspiração do líder regional e ex-membro do Parlamento Europeu, Carles Puigdemont (1962-), é um fantasma que, vez por outra, assombra aos espanhóis. José Ortega y Gasset (1883-1955) em España invertebrada (1922) debruçou-se sobre o tema, colocando-o no contexto dos nacionalismos locais e do movimento pendular que os acompanha. Para o grande pensador, Espanha estava sofrendo desse mal na primeira metade do século XX (como, aliás, agora, claro que por motivos diferentes). [cf. Ortega y Gasset, España invertebrada: bosquejos de algunos pensamientos históricos. Madrid: Austral, 1999].

Os países, como as pessoas, segundo Ortega, precisam de um élan vital que os unifique. A criação dos Estados nacionais foi acompanhada desse tipo de inspiração coletiva. Mas nem sempre se mantém viva a chama do primeiro nacionalismo que conseguiu erguer o grande edifício do Estado Nacional, por sobre as diferenças locais. Às vezes, estas se tornam de grande vulto, como as sombras que, segundo dizia o nobre jurista peruano José Domingo Choquehuanca (1789-1854), “crescem quando o sol declina”.

A bela metáfora foi criada por Choquehuanca, descendente das nobrezas inca e espanhola e que desempenhava o cargo de alcaide e justiça mor do distrito peruano de Azángaro, no Departamento de Puno (sul do Peru). Quando o Libertador Simon Bolívar (1783-1830) passou pelo povoado de Pucara (2 de agosto de 1825), Choquehuanca o saudou com a famosa arenga que rezava assim: “Quiso Dios de salvajes formar un gran imperio y creó a Manco Cápac (1515-1544); pecó su raza y lanzó a Pizarro (1478-1541). Después de tres siglos de expiaciones ha tomado piedad de la América y os ha creado a vos. Sois, pues, el hombre de un designio providencial. Nada de lo hecho hasta ahora se asemeja a lo que habéis hecho, y para que alguno pueda imitaros será preciso que haya un mundo por libertar. Habéis fundado tres repúblicas que en el inmenso desarrollo a que están llamadas, elevan vuestra estatua a donde ninguno ha llegado. Con los siglos crecerá vuestra gloria, como crece el tiempo con el transcurso de los siglos y así como crece la sombra cuando el sol declina”.

Ora, esse élan coletivo explica a grandeza do Império Romano, como explica, também, o rápido crescimento e a pujança do Império espanhol, criado por Fernando de Aragão (1452-1516) e Isabel de Castela (1451-1504), no final do século XV, ao unificarem em torno à corte de Madri as dispersas províncias de Galícia, Asturias, Valencia, Catalunha e o País Basco, às quais se juntaram, também, ao longo do século XVI, os Países Baixos, o Milanesado e o Reino de Nápoles. Tudo girou ao redor de um élan ambicioso que estendia o manto castelhano e aragonês, tecido de ideais estratégicos internacionais, na trilha da saída ao Mediterrâneo por parte do reino de Aragão e em direção à África e ao centro da Europa, por parte do reino de Castela.

No contexto dessa Weltpolitik foi construída heroicamente a unidade nacional espanhola. Ora, essa unidade, que deu ensejo à nova oikoumene com motivo da descoberta do Novo Mundo, entrou em refluxo quando, com Felipe II (1527-1598), ao longo do século XVI, o Império espanhol deixou de pensar ousadamente em termos de projetos internacionais, passando a se recolher, como fizera no final da vida Carlos V (1500-1558), nas sombras do mosteiro medieval, tarefa de que se desincumbiu com sombria eficiência, no clima de volta ao passado, Felipe III (1578-1621), no século XVII.

Sempre me impressionou o paralelo que se pode estabelecer entre os dois primeiros-ministros dos Reis da Espanha e da França, o conde-duque de Olivares (1587-1645) e o cardeal de Richelieu (1585-1642). Um e outro espelhavam no seu projeto pessoal a índole dos seus soberanos, declinante, no caso espanhol, em ascensão e pujança estratégica, no caso francês. Espanha começou a decair, enquanto a França, com Luís XIV (1638-1715), crescia em projeção internacional.

A consequência dessa perda de élan vital (que está vinculado a um projeto estratégico e não a uma passiva herança de família) acentuou-se no século XIX com a perda das colônias do Novo Mundo e com a independência, no início do século XX, das poucas que ainda restavam: Cuba e Puerto Rico. Restou a saudade da imensa oikoumene e os espanhóis passaram a cultivar ousado projeto cultural de unidade do mundo ibérico, impulsionados em boa medida pelos ensinamentos pedagógicos do krausismo, através da Institución libre de Enseñanza do grande Francisco Giner de los Ríos (1839-1915), que inspiravam a criação de um império cultural da inteligência e do espírito, ao redor do ideal hispanista. [Cf. Frederik PIKE, “Making the Hispanic World safe from Democracy: Spanish Liberals and Hispanismo”. Review of Politics, 1971]. Mas, convenhamos, isso era muito pouco para quem construiu um império mundial no qual, como dizia Carlos V, “não se punha o sol”.

A nostalgia da perda do antigo élan imperial foi assim traduzida por Ortega y Gasset nas seguintes palavras: “Pues bien: la vida social española ofrece en nuestros días un extremado ejemplo de este atroz particularismo. Hoy es España, más bien que una nación, una serie de compartimentos estancos. Se dice que los políticos no se preocupan del resto del país. Esto, que es verdad, es, sin embargo, injusto, porque parece atribuir exclusivamente a los políticos pareja preocupación. La verdad es que si para los políticos no existe el resto del país, para el resto del país existen mucho menos los políticos. Y qué acontece dentro de ese resto no político de la nación? Es que el militar se preocupa del industrial, del intelectual, del agricultor, del obrero? Y lo mismo debe decirse del aristócrata, del industrial o del obrero respecto a las demás clases sociales. Vive cada gremio hermeticamente cerrado dentro de sí mismo. No siente la menor curiosidad por lo que acaece en el recinto de los demás. Ruedan los unos sobre los otros como orbes estelares que se ignoran mutuamente. Polarizado cada cual en sus tópicos gremiales, no tiene ni noticia de los que rigen el alma del grupo vecino. Ideas, emociones, valores creados dentro de un núcleo professional o de una clase, no trascienden lo más mínimo a las restantes. El esfuerzo titánico que se ejerce en un punto del volumen social no es transmitido, ni obtiene repercusión unos metros más allá, y muere donde nace. Difícil será imaginar una sociedad menos elástica que la nuestra; es decir, difícil será imaginar un conglomerado humano que sea menos una sociedad. Podemos decir de toda España lo que Pedro Calderón de la Barca (1600-1681) decía de Madrid en una de sus comedias: Está una pared aquí /de la outra más distante / que Valladolid de Gante”.

Conclusão para brasileiros.

Concluirei estas reflexões à maneira orteguiana, olhando para as nossas circunstâncias.

Convenhamos que essa situação de idiotia no próprio grêmio e de ignorância do resto, tão bem caracterizada por Ortega em relação à história espanhola, é também fenômeno que hoje nos afeta a todos os brasileiros. Dividimo-nos em patotas que são como compartimentos estanques, quando só poderemos encontrar o caminho nas sombras desta pandemia enxergando um projeto que nos abrigue a todos, como Nação. Trabalhar em prol desse projeto é o que o Brasil espera dos seus homens públicos, que infelizmente parecem ter perdido o norte do patriotismo. Só poderemos sair da mediocridade rasteira que se espraia pelo clientelismo e o espírito de patota, voltando os olhos para um projeto nacional, que abarque a nossa sociedade como um todo e que se abra à inspiração das tradições que se sedimentaram na nossa história.

O imperativo categórico de hoje aponta para um repto inadiável: sair do patrimonialismo! Essa era a reclamação do meu mestre e saudoso amigo Antônio Paim, na sua obra intitulada: Momentos decisivos da história do Brasil (3ª edição organizada por Antônio Roberto Batista. Campinas: Távola Editorial, 2020). Como fazer o dever de casa em face do Estado Patrimonial que nos assoberba e nos mantém alienados?

A resposta é clara: refazendo as nossas instituições de governo representativo, efetivando a reforma política, que endireite o funcionamento do Congresso, das Assembleias estaduais e das Câmaras de vereadores, a fim de que tornem possível a efetiva representação, nesses corpos colegiados, dos interesses dos cidadãos. A representação, no Brasil, virou ficção, pelo fato de que se afastou da representação dos interesses dos brasileiros. O caminho é difícil, mas não impossível. Pressupõe a reforma política, tantas vezes adiada.

O primeiro passo seria atender à exigência de um novo pacto federativo, que reconstitua o real peso dos interesses dos cidadãos nos Estados. Ainda vige o “Pacote de abril” do general Geisel, que deformou o perfil da representação estadual, a fim de fazer pesar nela, mais os interesses da burocracia da União, com a conhecida distribuição de favores por parte do governo central, mediante a fantasmagórica figura das “emendas parlamentares”.

O Brasil está desigualmente representado no Congresso. Passaram a pesar mais, a partir da mencionada reforma feita no final do ciclo militar, aquelas regiões que mais dependiam dos favores da União. A nossa representação no Parlamento é atrasada e capenga. Carreatas, “motociatas” e panelaços deveriam exigir, por todos os cantos deste imenso Brasil, não a adesão messiânica a determinado candidato, mas a efetiva atenção do Congresso e do governo em geral à exigência de renovação do nosso pacto federativo! Completar-se-ia este caminho de renovação da representação, mediante a adoção do voto distrital, tantas vezes apresentado como solução e tantas vezes engavetado pelos nossos políticos. A solução para sair do ensimesmamento das nossas instituições políticas não cai do céu, mas somos nós que devemos concretizá-la!