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A SAGA DO PENSAMENTO ESTRATÉGICO LUSO-BRASILEIRO

A SAGA DO PENSAMENTO ESTRATÉGICO LUSO-BRASILEIRO

ESTÁTUA DO FUNDADOR DO REINO DE PORTUGAL, AFFONSO HENRIQUES (1109-1185), NO CASTELO DE GUIMARÃES

Esta variante do pensamento político está presente, desde tempos remotos, na cultura luso-brasileira. Portugal desenvolveu, muito cedo, uma política de sobrevivência no meio de Nações mais fortes. Na partilha do Reino entre os filhos de Afonso VI (1039-1109), Rei de Leão e Castela e Imperador da Espanha, coube à herdeira do Condado Portucalense, Dona Teresa de Leão (1080-1130), filha bastarda, fazer valer os seus direitos contra as pretensões de Dona Urraca I de Leão e Castela (1081-1126), que pretendia se apossar das suas terras.

Casadas as meias-irmãs com dois príncipes estrangeiros, Urraca com Raymundo de Borgonha (1070-1107) e Teresa com Henrique de Borgonha (1066-1112), houve uma negociação entre este e o seu tio, Guido de Borgonha (1050-1124), bispo de Vienne (cidade do departamento de Isère, na França), que em 1119 seria eleito Papa em conclave reunido em Cluny, tendo adotado o nome de Calixto II. Henrique de Borgonha e o futuro Papa acordaram que a Santa Sé garantiria a independência do Condado Portucalense, em face das pretensões de Castela. Não há dúvida de que essa preocupação estratégica entrou no DNA político do fundador do Reino de Portugal, Dom Afonso Henriques (1109-1185), filho de Teresa e Henrique de Borgonha.

Ulteriormente, essa política de sobrevivência manifestar-se-ia nas medidas tomadas pelos Reis de Portugal, no sentido de costurar alianças que garantissem a independência do país em face das pretensões espanholas ou de outros reinos europeus, notadamente da França. Data do século XVII o “plano B” da Coroa portuguesa de transferir a capital do Reino para fora do continente, caso houvesse uma invasão por parte de outro Estado. Inicialmente tinha-se pensado na instalação da Corte nas Ilhas Açores, como capital de um Reino que, além de Portugal, abarcasse, também, o Pará e o Maranhão. Quando o general José Bonaparte (1768-1844) entrou na Península Ibérica ao ensejo das conquistas napoleônicas, em 1808, pôs-se em funcionamento um plano desse tipo, contando com o apoio da Armada Inglesa, com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, inicialmente para Salvador e, pouco depois, para o Rio de Janeiro.

Zelo estratégico especial tiveram os negociadores portugueses do Tratado de Tordesilhas (assinado entre Espanha e Portugal e ratificado pelo Papa Júlio II, em 1506), no sentido de, mediante hábeis negociações e falsificação de mapas, ir alargando a faixa que correspondía a Portugal, em direção ao oeste. Senso estratégico extraordinário acompanhou à idéia pombalina, no século XVIII, de ocupar a hinterlândia brasileira, mediante a transferência da capital da Colônia para o Planalto Central, de onde pudessem ser atendidas todas as Províncias, colocando um tapume para a expansão castelhana, cujas Colônias ficaram confinadas nos Andes, ao ensejo da anulação definitiva do Tratado de Tordesilhas, em 1777, pelo Tratado de Santo Ildefonso. O plano pombalino de ocupação do Planalto Central voltou a ser acariciado pelo Patriarca da Independência brasileira, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), em 1821, e seria a idéia geradora da construção de Brasília, no governo de Juscelino Kubitschek (em 1961). Os mapas portugueses dos séculos XVI e XVII foram progressivamente empurrando a linha demarcatória do antigo Tratado para o oeste, de forma a garantir a posse, por Portugal, de vastas áreas que outrora eram reivindicação castelhana. A política de construção de fortes, no período pombalino, conserva esse mesmo espírito, de garantir a defesa dos limites das colônias portuguesas. Nesse contexto de um senso quase instintivo de sobrevivência coletiva, que garantiu a soberanía portuguesa entre vizinhos mais poderosos, inserem-se os primórdios do pensamento estratégico brasileiro.

Sobre as idas e vindas das negociações estratégicas acerca dos limites dos Impérios espanhol e português, frisou o historiador Fernando Roque Fernandes: “O Tratado de Santo Ildefonso repetia, em linhas gerais, os limites fixados em 1750, especialmente aqueles nas fronteiras ao norte dos territórios. As alterações ocorreram em grande parte ao sul. A localidade de Xuí, no Rio Grande do Sul, foi escolhida em lugar de Castilhos Grandes; a Colônia do Sacramento e os Sete Povos das Missões passaram definitivamente a pertencer à Espanha. No norte, as modificações cobriam as áreas entre o Japurá e o vale do Rio Negro. Conforme Apontou Demétrio Magnoli, o Tratado deflagrou um novo ciclo de expedições e de trabalhos de reconhecimentos. Minuciosos levantamentos cartográficos foram desenvolvidos sobre a Capitania de São José do Rio Negro, no atual Estado do Amazonas. O período também corresponde à retomada portuguesa da Província do Rio Grande de São Pedro, no atual Estado do Rio Grande do Sul e da Ilha de Santa Catarina que esteve sob poder espanhol entre 1776 e 1777. Sua assinatura encerra as operações de confrontações militares entre Portugal e Espanha” [Fernando Roque Fernandes, “Tratado de Santo Ildefonso”, in: https://www.infoescola.com/historia-do-brasil/tratado-de-santo-ildefonso/ ].

Recolhendo a herança dos autores que pensaram o Brasil a longo prazo num contexto estratégico, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, destacam-se quatro pensadores na contemporaneidade: a professora Terezinha de Castro (1930-2000), o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), o general Carlos de Meira Mattos (1913-2007) e o jornalista e sociólogo Oliveiros da Silva Ferreira (1929-2017). A estratégia brasileira, no decorrer do século XX, esteve marcada por um fator decisivo: o perfil autoritário incutido à República pelos positivistas.

Assim, foram de cunho autoritário as formulações estratégicas efetivadas durante o longo ciclo getuliano (pela segunda geração castilhista) e durante o ciclo militar de 64, que orbitou ao redor do modelo denominado por Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-2019) de “autoritarismo instrumental”. No entanto, em que pese o viés autoritário, firmou-se, definitivamente, a base modernizadora do Estado brasileiro, no ciclo getuliano e no período militar pós 64.

No primeiro período, efetivou-se a integração política nacional, superando as divisões ensejadas pelas oligarquías estaduais. No segundo período (que corresponde ao ciclo militar), realizou-se a transformação do país em economía industrial e deu-se um passo definitivo rumo à integração nacional, mediante a modernização das telecomunicações e a abertura da malha rodoviária federal, sendo que se equacionou também, de forma pacífica, a abertura democrática, à luz do que o general Golbery denominava de “engenharia política”, com a volta dos exilados e a livre fundação de partidos políticos.

Não deixa de ostentar uma faceta autoritária a formulação da política externa, efetivada pelo regime lulo-petista à sombra da “diplomacia presidencial” praticada por Lula da Silva (1945-) e por Dilma Roussef (1947-), norteada, inicialmente, pelo ex-ministro Mangabeira Unger (1947-) e, depois, pela geração de diplomatas terceiro-mundistas que tomaram conta do Itamaraty, embalados na retórica gramsciana e na compulsão ideológica do antiamericanismo, e que efetivaram grosseira simplificação da globalização, tendo obstaculizado a formação de um Mercado Comum Latino-Americano ao ensejo da ALCA.

Podem ser identificados acertos na política brasileira, sendo o principal a decisão de formular uma Estratégia Nacional de Defesa que corresponda ao ideal democrático e à complexidade do mundo contemporâneo. Mas esta disposição não se coaduna com os aspectos negativos mencionados no parágrafo anterior, nem com a irracional sonegação, pelos governos petistas, dos recursos a serem aplicados na realização da política traçada, especialmente no que respeita à vigilância de fronteiras e aos projetos correlatos, como o SISFRON. Seria conveniente a formulação de uma estratégia que incorporasse, novamente, o controle, pela sociedade civil, do aparelho do Estado, mediante o revigoramento da representação parlamentar e a limitação da ingerência indevida do Executivo na legislação, como acontece com a prática das “medidas provisórias”. Esses ideais, de inspiração liberal, foram praticados pelos estrategistas do século XIX e deixados de lado no ciclo republicano.

A formulação de uma estratégia que incorpora o ideal democrático está presente, no entanto, nas inúmeras iniciativas da sociedade civil e de alguns órgãos das Forças Armadas, que menciono a seguir: em primeiro lugar, a criação do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2005, por iniciativa do professor Expedito Carlos Stephani Bastos e minha; sobressaem, aquí, a contribuição dada por Expedito Bastos, com estudos acerca de tecnologia militar e história dos blindados brasileiros, por Aristóteles Rodrigues, com análises estratégicas que abarcam a variável psicossocial e por mim com trabalhos de cunho historiográfico sobre o nosso pensamento estratégico ao longo dos séculos XIX e XX. (Essa iniciativa, infelizmente, acabou sendo abortada, no início de 2020, pela direção da UFJF, que foi tomada integralmente pelo PT). Em segundo lugar, destaco os Foros Nacionais, programados regularmente no Rio de Janeiro pelo Instituto Nacional de Altos Estudos, sob a coordenação do ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso (1931-2019). Em terceiro lugar, vale lembrar os estudos e eventos programados, no Rio de Janeiro, pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) sob a direção do embaixador José Botafogo Gonçalves (1935-). Em quarto lugar, recordo os Encontros Nacionais de Centros de Estudos Estratégicos, programados, no Rio, pela ECEME, com a colaboração da ESG. Em quinto lugar, vale lembrar as atividades do Centro de Estudos e Formulação Estratégica do Exército, com sede em Brasília. Em sexto lugar, menciono os seminários promovidos regularmente sobre temas estratégicos e políticos, pelo Instituto Millenium, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em sétimo lugar, recordo os seminários desenvolvidos, no Rio de Janeiro, pela Academia Brasileira de Defesa, presidida pelo brigadeiro Ivan Frota(1930-). Em oitavo lugar, não podem ser esquecidos os colóquios e simpósios programados, no Rio de Janeiro, pelo Instituto de História e Geografia Militar (presidido pelo general Aureliano Pinto de Moura) e pela Academia Brasileira de Filosofia (presidida atualmente pelo professor Edgard Leite).

No que tange às revistas e publicações especializadas, cabe mencionar as seguintes: Política e Estratégia, editada pela sociedade Convívio, em São Paulo, ao longo dos anos 80 do século passado (sob a direção de Adolpho Crippa e Antônio Carlos Pereira); a Revista de Ciência Política publicada pela Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, destacando-se, aquí, os trabalhos desenvolvidos pelo cientista político Octavio Amorim Neto; A defesa nacional, publicada regularmente no Rio de Janeiro pela Bibliex; a Revista Aeronáutica, editada no Rio de Janeiro, para o Clube da Aeronáutica, pelo coronel aviador Araken Hipólito da Costa, sob cuja direção foram criados os Cursos de Pensamento Brasileiro, ao longo da última década; a Revista do Exército Brasileiro, publicada no Rio de Janeiro pela Bibliex; as diversas publicações sobre temas estratégicos, que regularmente realizam a Biblioteca do Exército, no Rio de Janeiro, bem como a Escola de Guerra Naval e a Escola Superior de Guerra; a Revista de Economia e Relações Internacionais, publicada em São Paulo pela Fundação Armando Alvares Penteado; as inúmeras publicações realizadas sobre temas diplomáticos e estratégicos pelo Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais IPRI (ligado ao Ministério das Relações Exteriores, em Brasília); as revistas eletrônicas Ibérica – Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos e Cogitationes , coordenadas por Alexandre Ferreira de Souza e Marco Antônio Barroso, do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da Universidade Federal de Juiz de Fora, etc.