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"A REBELIÃO DAS MASSAS", UMA RELEITURA UM SÉCULO DEPOIS - (Por: EIITI SATO, PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS / UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA)

EDIÇÃO BRASILEIRA, PELA EDITORA MARTINS FONTES, DE SÃO PAULO, DA OBRA DE ORTEGA Y GASSET INTITULADA: "A REBELIÃO DAS MASSAS", (2007).




Professor Doutor Eiiti Sato, docente de "Relações Internacionais" na Universidade de Brasília.

 Em 1930 foi publicada a obra intitulada A Rebelião das Massas de José Ortega y Gasset (1883-1955). No livro, o filósofo argumentava que “(...) as cidades estão cheias de gente. As casas, cheias de moradores. Os hotéis, cheios de hóspedes. Os trens, cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas de médicos famosos, cheias de enfermos. Os espetáculos, ... cheios de expectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não era problema, começa a sê-lo cada vez mais: como encontrar lugar”. Com essa imagem Ortega y Gasset começa por explicar os motivos de sua preocupação com a emergência das massas, que é o tema de seu livro. O que parece incrível é constatar que o filósofo estava escrevendo essas palavras em fins da década de 1920, quando seu famoso livro começava a ganhar forma. [A primeira edição de A Rebelião das Massas data de 1930, mas o tema começou a ser tratado por Ortega y Gasset em 1926 em artigo publicado no jornal “El Sol” de Madrid]. Não deixa de ser intrigante perguntar o que diria Ortega y Gasset neste início do século XXI?

 Diante da pandemia desencadeada em 2020 esse padrão de uma sociedade cada vez mais massificada e, portanto, mais aglomerada, foi posto em grande evidência. Além de praças e de vias públicas lotadas, de transportes coletivos lotados, e de festas e eventos públicos esportivos e culturais com milhares de participantes aglomerados, até mesmo os embarques em aeroportos para voos nacionais e internacionais também se tornaram locais de grandes aglomerações. Na década de 1920 a aviação civil ainda dava seus primeiros passos. Hoje, nos aeroportos mais movimentados, centenas de milhares de viajantes apressados embarcam e desembarcam diariamente com suas bagagens, souvenirs, e compras de todo tipo. Em outras palavras, de muitas formas, a massificação tornou-se visível em toda parte, constituindo-se numa das marcas mais notáveis deste século XXI, fruto das grandes transformações ocorridas ao longo do século XX. Mentes observadoras como a de Ortega y Gasset já percebiam como as aglomerações, rapidamente, iriam se transformar em verdadeiras multidões, trazendo consequências inéditas para a convivência humana.

 Cabe adiantar que este ensaio não pretende argumentar e nem sugerir que a sociedade de massa deveria ser considerada um mal a ser combatido ou eliminado. Trata-se, isto sim, de argumentar no sentido de que é preciso compreendê-la e de chamar a atenção para o fato de que, como tudo na vida, grandes sucessos trazem consigo problemas igualmente grandes. Ou seja, da mesma forma que as questões ambientais e as preocupações com mudanças climáticas indesejáveis emergiram da expansão bem-sucedida da riqueza e da produção, também a expansão das populações e a democratização do consumo trouxeram uma nova realidade sociológica que desafia os hábitos e os padrões tradicionais do ponto de vista cultural e até civilizatório. O fato é que a sociedade de massa tornou-se um fenômeno com o qual se deve conviver e, para tanto, precisa ser melhor compreendida, tanto em termos das oportunidades quanto em termos de seus impactos problemáticos sobre o comportamento das pessoas e sobre as práticas e as instituições sociais e políticas. É dentro dessa perspectiva que nasceu este ensaio, como uma inquietação possivelmente semelhante à de Ortega y Gasset há quase um século atrás.

MASSIFICAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DO CONSUMO

 A expressão democratização do consumo é um termo mais agradável aos nossos ouvidos e, principalmente, às crenças correntes, sendo utilizada para designar essa massificação do modo de vida, que se espalhou pelo mundo, especialmente nas sociedades identificadas com o capitalismo liberal. A expressão democratização do consumo, no entanto, não deve ser vista como um simples eufemismo. Na realidade, apenas reflete mais um, entre os muitos paradoxos e contradições que formam a existência humana. No início, um desejo generalizado de se atingir um objetivo mas, uma vez atingido, transforma-se em uma fonte de preocupações. Com efeito, por várias décadas, a democratização do consumo foi um sonho alimentado por políticos, por cientistas sociais e até por organizações civis que proclamavam que os benefícios da tecnologia e do progresso material deveriam ser estendidos a toda a população, em toda parte, e que a duração da vida humana deveria ser ampliada de forma contínua e generalizada. Em especial depois da metade do século XX, esse entendimento tornou-se um truísmo e, nesse sentido, manifestações podiam ser ouvidas em discursos oficiais e lidas em livros e em artigos publicados em jornais e revistas das grandes democracias do Ocidente.

 No campo da economia, toda uma classe de teorias foi formulada sob a designação genérica de teorias do desenvolvimento econômico que, no fundo, tentava traçar os caminhos mais eficazes e mais curtos, a fim de levar os benefícios do progresso para todos os segmentos da sociedade e também para as regiões mais remotas do mundo. Em outras palavras, a ordem geral era investir na democratização do consumo o que, na essência, significava investir na produção em massa de bens e de serviços. Assim, de muitas maneiras, essa ideia avançou até mais do que o esperado e foi mais bem sucedida nas sociedades movidas pelo capitalismo liberal.

 O fato é que, em algumas dessas sociedades, a pobreza praticamente desapareceu e a distância entre ricos e pobres foi substituída pela distância entre os ricos e os muito ricos, enquanto na grande maioria dos países periféricos, embora ainda persistisse a existência de bolsões de pobreza, a democratização do consumo estendeu-se para grande parte da população, uma vez que, mesmo nesses países, a maioria da população passou a pertencer ao grupo que genericamente chamamos de “classe média”. Com efeito, os integrantes dessa classe média, mesmo não podendo ser chamados de “ricos”, passaram a auferir renda suficiente para ter acesso aos meios de subsistência e à maioria das facilidades da vida moderna. Ou seja, essa classe média podia não ter acesso a moradias amplas e sofisticadas, mas passava a ter condições de residir em apartamentos e em casas com luz elétrica, com água corrente, e com todos os eletrodomésticos e equipamentos para o conforto caseiro, incluindo-se computadores pessoais, telefones celulares, e outros bens que se tornaram marcas do modo de vida no final do século XX. Além disso, integrantes da classe média também passaram a ter acesso ao lazer, a viagens nacionais e internacionais, podendo, inclusive, adquirir sem grandes dificuldades um automóvel que, até a década de 1950, era um símbolo de riqueza, que apenas uns poucos, possuidores de considerável fortuna, podiam ostentar.

 A massificação do consumo, no entanto, rapidamente começou a exibir seu lado problemático. Muitas cidades, inclusive as de porte médio, passaram a sofrer do problema dos congestionamentos crônicos, que dificultam a movimentação nas cidades, trazendo muita irritação. Os meios de transporte público, constantemente lotados, também se tornaram desconfortáveis e pouco eficientes. Por outro lado, ruas e logradouros públicos encheram-se de transeuntes que se atropelam, especialmente em vias famosas no mundo como a Champs Élysées, a King’s Road, a Via Veneto ou a 5ª. Avenida, comprometendo bastante seu charme, que era o principal atrativo desses logradouros. Multidões passaram a visitar diariamente museus e pontos turísticos, reduzindo muito a possibilidade de se aproveitar adequadamente esse tipo de experiência cultural e sensorial.

 A massificação do consumo trouxe outros efeitos ainda mais complicados e também mais dispendiosos. Entre esses efeitos, alguns têm frequentado sistematicamente a imprensa diária, tais como a poluição crônica das grandes cidades e a produção diária de imensas quantidades de lixo e de variados rejeitos e resíduos urbanos. Em larga medida, o surgimento e o agravamento de problemas ambientais derivam diretamente dos padrões de consumo que, nas últimas cinco ou seis décadas, se estenderam para dezenas e até centenas de milhões de pessoas. Embora haja esforços transformados em programas e em políticas públicas, os investimentos em tecnologias e em práticas mais saudáveis têm se revelado insuficientes. Os dados disponíveis têm mostrado que muito mais investimentos deveriam ser feitos para trazer de volta um certo equilíbrio entre o consumo de massa e a sanidade dos sistemas de convivência dos seres humanos com seu meio natural. O fato é que em muitas regiões do mundo, a velocidade do avanço no consumo tem sido mais rápida do que os efeitos das medidas adotadas para conter os desequilíbrios. No início da década de 1970, quando os temas ambientais passaram a ter destaque na agenda internacional, a grande preocupação ainda se concentrava principalmente na perspectiva de esgotamento dos recursos naturais.[O primeiro relatório do Club de Roma intitulado The Limits to Growth (1972) foi marcante e argumentava que o crescimento econômico tinha limites, em virtude do esgotamento de recursos naturais essenciais para o avanço da industrialização e do consumo, no ritmo observado nas décadas anteriores].

Agora, passado meio século, as preocupações vêm se concentrando cada vez mais nas consequências ambientais da massificação da produção e do consumo. A crise da pandemia desencadeada em 2020 agregou a essas preocupações os efeitos sanitários da disseminação do padrão de convivência humana baseado na formação de aglomerações humanas em toda parte, como já antecipava Ortega y Gasset. Com efeito, uma das dificuldades no combate à pandemia da covid-19 tem sido as aglomerações humanas que se formam em toda parte, servindo de base para boa parte da atividade econômica, facilitando assim a disseminação do vírus.

UM MUNDO DE PRODUÇÃO EM MASSA E DE AGLOMERAÇÕES

 Alguns dados servem para ilustrar as razões e os desenvolvimentos que levaram à formação desse padrão de vida baseado em multidões em toda parte e na disputa frenética para encontrar seu espaço individual, na expressão de Ortega y Gasset. Em 1928, quando Ortega y Gasset escrevia suas reflexões que resultariam na Rebelião das Massas, a população mundial havia acabado de atingir a marca de 2 bilhões, isto é, embora tivesse levado muitos milhares de anos para atingir o primeiro bilhão, a população tinha dobrado em pouco mais de cem anos. Hoje, a população mundial é estimada em mais de 7,8 bilhões de pessoas. Ou seja, mesmo se considerarmos que cerca de um quarto dessa população mundial possa estar vivendo relativamente à margem do progresso e da economia organizada, restariam ainda cerca de seis bilhões de consumidores ávidos por alimentos e por novidades na forma de produtos, de serviços ou de práticas sociais como festas, viagens, celebrações ou eventos sociais, culturais e esportivos. Assim, essa notável expansão das populações, só pode ser explicada pelo avanço do conhecimento da anatomia e da fisiologia humanas e das práticas médicas e, principalmente, da expansão exponencial da produção de alimentos e de bens de consumo, o que significou mudar substancialmente o modo de vida. As mudanças no modo de vida ganharam variadas formas, entre as quais o avanço da urbanização em toda parte e a formação de grandes aglomerações em torno de mercados, de espetáculos públicos e dos meios de transporte. Além disso, mudanças significativas também ocorreram nos padrões de consumo que significaram, por exemplo, a substituição em larga escala de alimentos consumidos in natura por alimentos industrializados. Com efeito, o crescimento exponencial das populações trouxe consigo a produção em massa de bens e de serviços compatível com um mercado em contínua expansão.

 A agricultura de grande escala já trazia consigo a experiência desenvolvida em torno de certos produtos, como a cana-de-açúcar e o café no Brasil, ou como o algodão, o trigo e o milho nos EUA, diferenciando-se cada vez mais da produção agrícola tradicional. A partir da década de 1960, a denominação revolução verde passou a ser utilizada para designar a grande expansão em escala mundial da produção e da produtividade agrícola, especialmente de alimentos. A partir dos EUA e do México, onde ocorreram as primeiras iniciativas da revolução verde, a expansão da produção e da produtividade agrícola se estendeu para muitos outros países em todos os continentes. A base dessa revolução era o emprego de tecnologias que incluíam a disseminação da mecanização da agricultura, o emprego de agrotóxicos e de fertilizantes cada vez mais eficientes, e a produção de variedades e de técnicas agrícolas e de correção do solo, que permitiam o cultivo de grãos e de espécies de plantas em regiões até então consideradas muito pouco propícias à atividade agrícola. [Além do governo dos EUA, instituições como a Fundação Rockefeller tiveram papel destacado nesse trabalho de fomentar a pesquisa cientifica e articular estratégias de desenvolvimento da agricultura. A Revolução Verde ficou associada ao nome de Norman Borlaug, que trabalhou como pesquisador agrícola no México, onde desenvolveu variedade de trigo de alto rendimento, resistente a fungos. Como resultado, o México passou a ser exportador líquido de trigo em 1963. Por seu trabalho, Borlaug foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1970].

Um movimento semelhante ocorreu também com a criação de gado e de outros animais, permitindo a formação de rebanhos e de criações contadas em milhões de cabeças que, por sua vez, passaram a demandar imensas redes de frigoríficos para o abate, o processamento, o armazenamento e a distribuição de carne em escala massiva.

 Nesse quadro, além do apelo social, pois significava alimentar bilhões de pessoas, a revolução verde trazia consigo também o apelo do crescente papel desempenhado pela pesquisa científica. A comunidade científica, assim como os entusiastas da ideia de que a ciência tinha um papel social a desempenhar, podiam traduzir em cifras esse papel nas estatísticas anuais de aumento da produção agrícola, que se revelavam sistematicamente maiores do que as taxas de crescimento das populações. Por qualquer ângulo, os dados indicavam que a ciência e o conhecimento estavam, efetivamente, ampliando o acesso das populações, inclusive dos mais pobres, a padrões melhores de alimentação e de consumo de bens em geral.

 Vale destacar o fato de que, no pós-guerra imediato, uma das grandes preocupações internacionais era com a segurança alimentar que havia sido comprometida, especialmente na Europa e na Ásia, onde a guerra havia impactado severamente a produção agrícola. A criação da FAO (Food and Agriculture Organization) como uma das primeiras iniciativas da ONU – que acabava de ser formalmente estabelecida – reflete essa preocupação mas, provavelmente, a iniciativa mais clara e expressiva dessa preocupação com a segurança alimentar tenha sido o estabelecimento da PAC (Política Agrícola Comum) negociada pelos países europeus na época do Tratado de Roma que criou a Comunidade Econômica Europeia - CEE (1957). Em outras palavras, no momento em que uma verdadeira onda de interesse pela industrialização se espalhava pelo mundo, as nações mais avançadas da Europa preocupavam-se com a produção agrícola. De acordo com o Relatório Anual da FAO referente a 2020, a produção agrícola mundial em 2019 foi de 9,2 bilhões de toneladas, e que essa cifra seria 50% maior do que a do início do século XXI. Apesar dessa imensa produção, ainda conforme o Relatório da FAO, calculava-se que 690 milhões de pessoas ainda eram consideradas subnutridas. Ou seja, haveria ainda espaço para aumento na produção de produtos agrícolas e que deveria haver mais mecanismos e mais programas que facilitassem o acesso dessas 690 milhões de pessoas aos alimentos produzidos no mundo.

 Dessa forma, em larga medida, a revolução verde, assim como outras iniciativas voltadas para o desenvolvimento da agricultura significaram um enorme sucesso, que resultou numa expansão sem precedentes da produção agrícola em toda parte, afastando assim, as preocupações com a segurança alimentar que emergiu no pós-guerra. Alimentos essenciais como o trigo, o arroz, o milho e outros grãos passaram a ser produzidos em escala realmente maciça, em milhões de toneladas. Embora a fartura alimentar tenha chegado à maior parte do mundo, como já mencionado, a expansão dessa produção não foi homogênea e não beneficiou todas as populações e regiões da mesma forma. Nações mais organizadas, como as da Europa, tornaram-se exportadoras líquidas de alimentos, enquanto várias nações na periferia permaneceram dependentes da importação de alimentos.

 A teoria econômica nas décadas de 1950 e 1960 tomava como um verdadeiro truísmo a existência de uma divisão internacional do trabalho, na qual os países periféricos (ou em desenvolvimento, como eram chamados) produziam bens primários (alimentos e matérias-primas), enquanto as economias centrais (países desenvolvidos) produziam bens industrializados. No entanto, salvo algumas exceções, essa divisão não retratava o que ocorria de fato, uma vez que a nação mais industrializada do mundo – os EUA – era também a nação que mais produzia e exportava bens primários, notadamente alimentos. Hoje os dados mostram um cenário ainda menos condizente com aquelas teorias de cinquenta anos atrás. Um país como o Japão fala em políticas de redução da produção de arroz, para evitar a formação de excedentes capazes de gerar efeitos indesejáveis na economia japonesa como a inflação, em virtude da redução de consumo devido à pandemia de 2020. Outro caso ilustrativo é o da Holanda, cujas exportações de bens agrícolas e de seus derivados concorrem diretamente com um país como o Brasil, notável por sua extensão de terras cultiváveis. O fato é que um agregado de países avançados como os da União Europeia apresenta significativos saldos como exportadora líquida de alimentos, enquanto muitos países pobres, mesmo possuindo extensos territórios, continuam sendo importadores líquidos de alimentos.

 No cenário internacional, uma das atividades da FAO tem sido a de prover alimentação para regiões carentes, muitas delas em razão de conflitos domésticos chegando, por vezes, a viver prolongadas guerras civis ou sérias disputas políticas internas, que drenam suas energias e sua capacidade de aproveitar seu potencial econômico a ponto de depender de programas de ajuda internacional. Nesse sentido, em vários desses casos, são constituídas Forças de Manutenção da Paz das Nações Unidas (United Nations Peacekeeping Forces), também conhecidas como Capacetes Azuis. Logo após a Segunda Guerra Mundial, os Capacetes Azuis estavam associados ao provimento de meios e de garantias para a estabilização de conflitos internacionais (formação do Estado de Israel, crise do Canal de Suez, etc.). Mais recentemente, no entanto, suas ações têm predominado nos casos de guerras civis em nações pobres, fazendo surgir a expressão Failed States para designar Estados que, em razão de intermináveis conflitos internos, revelam-se incapazes de prover a mais primária das funções de Estado, que é a ordem política, social e econômica. Nesses casos, a ajuda humanitária, na forma de alimentos, emerge como notavelmente importante para suas populações civis, que não conseguem organizar suas lavouras ou quaisquer outras atividades econômicas para seu próprio sustento.

 Na indústria, a massificação da produção também foi objeto de políticas estruturadas por governos e por agências internacionais de fomento ao desenvolvimento. A teoria econômica, preocupada em levar o desenvolvimento econômico às economias periféricas, produziu conceitos e estratégias com vistas à industrialização dos países mais pobres. Na realidade, no quarto de século que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, o termo “industrialização” havia se tornado quase um sinônimo de “desenvolvimento econômico”. A teoria econômica argumentava (com razão) que havia um processo secular de deterioração dos termos de troca entre bens primários e produtos industrializados no comércio internacional.

[RAUL PREBISCH foi o principal autor desse argumento, mas esse entendimento já era amplamente compartilhado entre os técnicos que atuavam em organizações econômicas internacionais da época]. Na realidade, sabe-se hoje que a redução de preços dos bens primários, especialmente dos bens agrícolas, era um benefício desejado por todos, tanto pela teoria econômica quanto pelas sociedades em geral, que ansiavam por políticas e por soluções que tornassem os alimentos mais baratos e acessíveis às populações pobres em toda parte. O fato é que, até a década de 1970, estratégias e recursos para estimular a industrialização em países pobres surgiram não apenas no seio de governos interessados em melhorar a situação econômica de suas populações, mas também em organizações internacionais, algumas delas criadas especificamente para esse fim. [A Assembleia Geral da ONU declarou formalmente a década de 1960 como a Primeira Década do Desenvolvimento, recomendando que o desenvolvimento deveria ser um objetivo prioritário da comunidade internacional. Além disso, a Assembleia Geral da ONU, por meio da resolução 2152 - 17/Nov./1966, criou a UNIDO - Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial. Em resumo, o engajamento nos esforços de industrialização era generalizado].

 As cifras que mostram o avanço da industrialização são abundantes, mas basta considerar a evolução da indústria automobilística, que foi um verdadeiro símbolo do modo de vida dos fins do século XX. Ao longo das décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a disseminação da produção de veículos foi um fato realmente notável e marcante, refletindo o avanço do processo de massificação da produção e do consumo de bens industriais. Em 1950, a produção mundial de automóveis e de outros veículos somou cerca de 10 milhões de unidades, das quais nada menos do que de 8 milhões foram produzidas nos EUA. Em 2019 a produção mundial de veículos já havia superado 91 milhões de unidades, das quais apenas 12 milhões foram produzidas nos EUA [Dados da International Organization of Motor Vehicle Manufacturers - 2019 Statistics].

 O fato é que a ideia de que os benefícios do progresso tecnológico e econômico deveriam alcançar toda a população mundial não tinha outro caminho, a não ser o da massificação da produção e do consumo em todas as suas facetas. Os historiadores econômicos mostram que na década de 1950, a única sociedade efetivamente “de massa” eram os EUA. Um dos argumentos centrais do livro de W. W. Rostow, uma das obras mais influentes do período, era o da industrialização em larga escala. O tema tornou-se prioritário na agenda internacional, sob o entendimento de que as sociedades primitivas passavam por “etapas do desenvolvimento econômico”, cujo objetivo final seria atingir a condição de “economia de massa”. [As etapas do desenvolvimento econômico, para W. W. ROSTOW, seriam: 1) economia tradicional; 2) estágio de pré-take-off; 3) take-off; 4) desenvolvimento sustentado; 5) economia de massa - The Five Stages of Growth. Cambridge University Press, 1960].

 O entusiasmo com a industrialização era tão grande e generalizado que observadores e analistas mal prestavam atenção ao fato de que um grupo de países tão associados com a industrialização, como os integrantes da recém-constituída Comunidade Econômica Europeia (CEE), adotaram como primeira iniciativa conjunta a implementação de uma Política Agrícola Comum (PAC) [A CEE foi constituída pelo Tratado de Roma de 1957 e incluía 6 países: Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos].

 O advento das tecnologias da informatização associadas aos meios de comunicação não apenas deu novo impulso ao processo de massificação da produção industrial e do consumo, mas pode-se dizer que elevou esse processo a novos patamares ao incluir a informação e o conhecimento no processo de massificação. Com efeito, a informação e o conhecimento foram também transformados em bens de consumo de massa. A disseminação da informação e do conhecimento rapidamente passou a ser feita por meios e instrumentos digitais muito mais ágeis e mais baratos do que os meios tradicionais compostos pelos livros e pela mídia impressa. Esses desenvolvimentos ilustram como as questões sobre a massificação formuladas por Ortega y Gasset se estenderam para todos os domínios do consumo. Ao mesmo tempo que massificaram o acesso à informação e ao conhecimento, essas tecnologias também provocaram a banalização do que era notável e extraordinário, tanto no que se considera bom e desejável, quanto nos crimes e em outras modalidades de ação e de manifestação do fenômeno humano.

O ADVENTO DO HOMEM MASSA

 Quando Ortega y Gasset se referia às “massas”, não estava se referindo a uma classe social, mas a uma particular espécie de indivíduo que se tornava numericamente predominante, independente de sua situação na escala social. Para Ortega y Gasset, o homem massa não é bom nem mau, é o homem médio, medíocre, que ignora a história, o passado, e age movido basicamente pelo instinto e pela busca de objetivos estritamente pessoais e imediatos. Para o homem massa, não existem categorias como país, nação ou povo, mas apenas ele próprio e os grupos de indivíduos com interesses e apetites que devem disputar entre si os espaços e as oportunidades, formando aglomerados que se estendem de forma abrangente como massa disforme, ultrapassando, inclusive, as barreiras eventualmente levantadas pelas classes sociais e até mesmo pelas fronteiras formais dos países. Na realidade, o homem massa constitui uma nova categoria sociológica e pode ser encontrado em qualquer classe social, tanto entre pessoas ricas quanto no meio da pobreza. Assim, a divisão que Ortega y Gasset faz entre massas e minorias é uma distinção sem hierarquização, entre diferentes tipos de indivíduos, independente de seu berço ou de condições socioeconômicas.

 Entre as características mais marcantes do homem massa está o fato de que ele não busca distinguir-se dos demais, seja por meio de suas virtudes, por suas habilidades, e nem mesmo pelas roupas que veste. Ao contrário, sente-se mais à vontade sendo “igual a todo mundo”. Por outro lado, distinguir-se da massa significa valorizar aquilo que é individual, como o mérito, o talento e a beleza. Não quer dizer ser egoísta, mas implica ter a noção de que sua existência, sua obra e sua imagem são únicas e insubstituíveis. Na realidade, o vício do egoísmo está mais presente no homem massa, uma vez que outra característica do homem massa é o sentimento de que seus direitos prevalecem sobre seus deveres – de fato, apenas direitos e quase nenhuma obrigação. Tudo o que vê, tudo que existe à sua volta, está ao seu serviço e existe para ser desfrutado por ele, que nada precisa fazer, a não ser existir, para desfrutar esses direitos e benefícios. Pode ser uma praça pública, uma escola, uma praia de areias brancas, ou um serviço de transporte; entende que tudo está a seu serviço e que não tem qualquer obrigação para com esses equipamentos públicos. Não precisa preocupar-se com sua manutenção e nem sequer precisa ter o cuidado de jogar na lixeira, fixado apenas a dois metros do alcance de suas mãos, o copo de plástico ou a embalagem da guloseima que acabou de consumir.

  Na filosofia, escrevendo sobre o esclarecimento (Aufklärung), Immanuel Kant (1724-1804) dizia que o homem deixa a menoridade, tornando-se adulto, quando é capaz de pensar por si próprio, mas reconhecia que pensar por si próprio dá muito trabalho: é preciso ler muito, estudar muito e refletir muito sobre as questões que o preocupam. [O ensaio intitulado Resposta à pergunta: o que é Aufklärung? foi escrito em 1784 e o termo Aufklärung pode ser traduzido como esclarecimento ou como iluminismo. Alguns tradutores escolheram traduzir como esclarecimento, apesar de Kant estar se referindo ao movimento filosófico que ficou conhecido como Iluminismo dos séculos XVII e XVIII. Em inglês a palavra Enlightement também pode ser utilizado em ambos os sentidos].

Construir uma opinião própria, diferente da opinião corrente, requer considerar não apenas os prós e contras, mas é preciso pensar também sobre as razões, os fundamentos, e também sobre as implicações que podem ter para si e para os outros. O filósofo entendia que a maior parte das pessoas não está disposta a percorrer esse difícil e trabalhoso caminho do esclarecimento e da construção de uma opinião própria bem fundamentada. Prefere a comodidade da opinião pronta do pregador, do líder, ou do grupo e, nos dias de hoje, provavelmente o filósofo incluiria o conforto das redes sociais. “A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma parte tão grande dos homens, libertos há muito pela natureza de toda tutela alheia, comprazem-se em permanecer por toda sua vida na menoridade e é por isso que é tão fácil a outros instituírem-se como seus tutores” – escreve o filósofo.

 Provavelmente, se avançarmos ainda mais nessa direção, iremos encontrar o escritor Fiodor Dostoievski (1821-1881) cujos personagens – torturados pela dúvida e pela ansiedade sobre os dilemas insolúveis da existência humana – incluiriam o sofrimento como parte inerente ao caminho do conhecimento, e da salvação. Dificilmente se pode entender com a devida profundidade os grandes personagens, tanto do mundo da ficção quanto da história real, sem uma boa base da experiência humana. Como argumentam os filósofos, a experiência humana pode ser descrita e relatada, mas não há nada que se compare à experiência vivida. Não há relatos capazes de reproduzir o turbilhão de emoções e de sentimentos de que se é tomado no êxtase dos momentos que se seguem a uma grande conquista ou diante das frustrações e da sensação de solidão e de desamparo que se seguem a uma perda brutal. [“Cinzenta, caro amigo, é toda teoria e verdejante e dourada é a árvore da vida”. Esta conhecida frase de J. W. Goethe (1749-1832) , extraída do diálogo entre Fausto e Mefistófeles, traduz essa dificuldade de se compreender a vida sem a experiência].

A História registra a vida de personagens – governantes, artistas, filósofos e cientistas – cujas vidas foram marcadas por dilemas dilacerantes e por conquistas e decepções que dificilmente podem ser compreendidas em toda a sua extensão por um leitor ou estudioso, cuja experiência de vida não possa servir de referencial e de medida para as situações difíceis que grandes figuras da história tiveram de enfrentar. Em resumo, por qualquer ângulo, se afigura muito mais simples e mais cômodo ser um seguidor do que ter a ousadia de pensar por si próprio e de agir e de se arriscar, seguindo seu próprio entendimento a despeito da incompreensão do meio em que vive, ou seja, nas palavras de Ortega y Gasset, é bem mais fácil e mais simples ser um homem massa.

UMA REBELIÃO DAS MASSAS?

 Uma breve observação do mundo à nossa volta nos leva a concluir que, efetivamente, não houve uma rebelião das massas. Uma rebelião implicaria a tomada do poder pela força ou, pelo menos, uma oposição clara ao poder estabelecido, de forma sistemática e minimamente organizada. Os fatos mostram que, na realidade, o que houve nas sociedades modernas é que as classes política e empresarial – além da imprensa, obviamente – passaram a exaltar e a bajular o homem massa, descobrindo nele virtudes e valores que o próprio homem massa desconhecia. Repentinamente, mesmo sem ter sequer reivindicado, as massas passaram a ser uma espécie de árbitro do sucesso ou do fracasso, seja de empreendimentos empresariais ou de projetos e programas formulados por grupos políticos ou culturais. Hoje o sucesso de artistas populares é medido pelo número de “seguidores”.

 Na esfera da economia, são as massas que, de forma crescente, passaram a garantir os mercados mais promissores e mais expressivos. As grandes fortunas pessoais que se formaram nas últimas três ou quatro décadas, basearam-se em companhias como a Amazon, a Microsoft, o Facebook, ou a Walmart e os fabricantes de telefones celulares. São empreendimentos voltados para o atendimento de mercados cujos consumidores são contados em dezenas e até centenas de milhões de pessoas, que buscam satisfazer suas necessidades de consumo mais corriqueiras e mais imediatas. Obviamente, isso não quer dizer que não haja espaço para empreendimentos complexos e para produtos e obras tradicionais, dirigidos para mercados refinados ou que possam demandar grandes investimentos em trabalho árduo e denso, tanto em talento criativo quanto em competência técnica. A construção de linhas de trens de alta velocidade, de estradas sobre terrenos que exigem grandes obras de arte de engenharia, ou de edifícios como o Burj Khalifa com centenas de andares, ou ainda a retomada dos investimentos na exploração do espaço sideral são atividades que movimentam grandes negócios no mundo de hoje e que demandam conhecimentos e habilidades que não se fazem presentes nas “massas”. Apesar de tudo, mesmo essas grandes obras também derivam da necessidade de atender as demandas de milhões de pessoas que dependem de transporte rápido e eficiente, de crescentes quantidades de moradias e de produtos cuja fabricação requer insumos que atravessam fronteiras e viajam por milhares de quilômetros até que sejam processados e integrados a um produto final que, na maioria das vezes, visa a atender a grande massa de consumidores espalhados pelo mundo. Assim, pode-se dizer que a sociedade de massa tornou-se uma realidade condicionante da vida econômica. Quando A Rebelião das Massas foi publicada, a aviação civil dava seus primeiros passos e, na década de 1960, as viagens aéreas ainda eram um luxo, que se refletia nos preços das passagens e no padrão social e cultural dos viajantes. A “classe econômica” ainda não existia. Era uma realidade muito diferente dos dias de hoje, em que as companhias aéreas disputam ferozmente o mercado bilionário dos viajantes da classe econômica.

 No campo da política, em especial nos sistemas políticos onde o conceito de democracia é praticamente reduzido ao exercício do voto, a elite abandonou a política e a atividade política tornou-se uma forma promissora de ascensão social. Nesse tipo de democracia, o homem massa não precisou chocar e violentar a ordem vigente. Seguir as regras foi o suficiente. Certamente que o exercício do voto é um componente essencial das democracias, mas em termos de perspectivas de longo prazo, não é suficiente. As democracias mais bem sucedidas, além do exercício do voto, contam com instituições e práticas que combinam o princípio da representatividade com a capacidade de valorizar o mérito e, para os postos públicos, a capacidade de selecionar talentos de liderança em condições de fazer da atividade política uma força capaz de reunir e de orientar as energias construtivas e criadoras da sociedade. Em países onde a democracia acabou reduzida ao exercício do voto, a atividade política virtualmente perdeu seu sentido mais nobre – a busca do bem comum – tendendo a transformar-se numa simples escada de ascensão social para a própria classe política. Nesses casos, o serviço público tornou-se dominado pelo corporativismo em detrimento do mérito e, ao invés de força capaz de reunir e de orientar os talentos e as energias criativas da sociedade para o bem comum, as atividades políticas transformam-se em parasitas já que seus integrantes, para assegurarem seu sucesso econômico pessoal, dependem da permanência no poder. Ou seja, ao transformarem a atividade política na fonte de suas rendas, os ocupantes de cargos e de funções públicas passam a orientar suas ações – assim como os recursos do Estado – para seus fins pessoais e não para o benefício da sociedade, na forma de bens públicos benéficos para a nação como um todo.

 A história mostra que em sociedades de tradições tão díspares como a grega dos tempos de Sócrates (469-399 a.C.) e a chinesa de Confúcio (551-479 a.C.) surgiram conceitos como o de idiotes na Grécia e o de junzi na velha China. Ambos os conceitos nasciam da mesma preocupação em distinguir tipos humanos que se revelavam positivos ou problemáticos na convivência social, no exercício de funções públicas. Para os gregos antigos, idiotes era um termo que designava a espécie de pessoas que se preocupavam apenas com seus interesses e com problemas pessoais, fosse em razão de sua pobreza, de suas ocupações, ou mesmo de seu egoísmo, isto é, não conseguiam ver nada além de seus interesses pessoais, sendo incapazes de se preocupar com os destinos da cidade, ou seja, com o bem comum. Por outro lado, figuras como Sócrates, Eurípedes (480-406 a.C.) e Sófocles (497-406 a.C.) foram cidadãos que, diferente dos idiotes, serviram a cidade de várias formas e em várias circunstâncias, seja no exército enfrentando os inimigos de Atenas, ou ocupando postos no governo da cidade. Ao mesmo tempo em que desenvolviam suas ocupações na esfera pessoal, tais como pensar e ensinar, ou produzir peças teatrais que hoje fazem parte do repertório da cultura universal, esses cidadãos dedicavam parte de seu tempo, e até de sua fortuna, para o bem da coletividade a que pertenciam. Enquanto isso, praticamente na mesma época, do outro lado do mundo, Confúcio dedicava sua vida à educação e ao ensino, tendo como principal foco de suas preocupações a formação dos junzi, que ele chamava de homens nobres porque, para além de seus interesses pessoais, esses junzi eram capazes de ver e de se preocupar com os destinos da cidade e do povo ao qual pertenciam. Entre os cerca de 3.000 discípulos que Confúcio educou ao longo de sua existência, muitos eram oriundos de famílias pobres de comerciantes e de artesãos, nos quais Confúcio reconhecia essa qualidade de compreender e de preocupar-se com os destinos da cidade, ou seja, com o bem comum.

 O fato é que, sob um entendimento bastante limitado do conceito de “democracia”, as massas tornaram-se politicamente o fator decisivo em qualquer eleição em virtude de sua expansão volumétrica. Tal como no campo da economia, em que as massas passaram a se constituir no grande mercado capaz de criar fortunas de dimensões até então inimagináveis, na política, dada a expansão volumétrica de homens massa, tornou-se muito mais lógico e mais tentador investir na construção de uma legião de seguidores por meio de promessas e de bajulações. As minorias pensantes são sempre um grupo complicado, cheio de ideias próprias e desconfiado até do sucesso. Em suma, no jargão político, o “populismo” tornou-se uma força quase irresistível nos sistemas políticos onde democracia é reduzida a voto e eleições. Com efeito, faz muito pouco sentido esperar que políticos que vivem de seus cargos eletivos, dediquem seu tempo em convencer eleitores pensantes, geralmente preocupados com objetivos de longo prazo e com possíveis desenvolvimentos problemáticos e indesejáveis da ordem vigente. Na realidade, mesmo no substrato de grandes sucessos alcançados ou de uma ordem social e econômica aparentemente estável, sempre há, potencialmente, desenvolvimentos em curso que podem transformar-se em problemas. Não se trata de argumentar que o voto popular deva ser considerado um mal, mas apenas chamar a atenção para o fato de que uma sociedade, para ser equilibrada, não pode prescindir de sua elite pensante e crítica, especialmente porque é essa elite que ajuda a identificar não apenas problemas, mas também forjar tendências e assinalar objetivos de longo prazo, para tornar possíveis os benefícios que só podem ser gerados pelos bens públicos, geralmente pouco perceptíveis à grande massa de homens comuns, preocupados com seus interesses individuais e mais imediatos.

  Um caso que pode corroborar a hipótese de que não houve uma rebelião das massas, mas uma consensual entrega do poder ao homem massa, pode ser observado na Constituição Brasileira de 1988. Todas as constituições modernas, de muitas formas, incluem as liberdades e os direitos do cidadão. No entanto, na Constituição Brasileira de 1988 os direitos individuais deixaram de ser um elemento constitutivo para tornar-se o foco principal. Ou seja, diferente das demais constituições modernas, o manejo do Estado e das esferas de poder deixaram de ser o objeto central dos dispositivos constitucionais para se concentrar nos direitos do indivíduo. Com efeito, no Artigo 5º da Constituição Brasileira, em que são especificados “os direitos individuais e coletivos”, são listados 78 direitos do indivíduo, que devem ser garantidos e proporcionados pelo Estado. Mais adiante, no Capítulo II, são enunciados os “direitos sociais”, que são especificados no Artigo 6º como sendo “direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos desamparados...” Logo adiante, no Artigo 7º, a Constituição estabelece que devem ser assegurados “aos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social ... a proteção do emprego ... o seguro desemprego ... salário mínimo capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo ... ” Assim, além dos direitos individuais, a Constituição Brasileira lista outros 34 direitos sociais incluindo, por exemplo, a proteção a sindicatos e o direito de greve. O fato é que a Constituição enuncia toda essa série abrangente de direitos que o Estado deve garantir e proporcionar, confundindo-os com o bem-estar do indivíduo que cada um deve procurar prover para si próprio. De fato, em toda parte, alimentação, moradia, vestuário, higiene e transporte são itens que, em toda parte, são itens de conforto e de bem-estar que, tipicamente, cabe ao próprio indivíduo buscar. A responsabilidade do Estado é com políticas públicas que promovam o crescimento econômico que possa trazer como consequência a geração de empregos. Na educação, o padrão que predomina em outros países é o de que o Estado, além de ser a instância normativa, atua apenas subsidiariamente em termos financeiros. Mesmo em um país como a China, comandada pelo Partido Comunista, não existe “educação pública gratuita” como no Brasil, e os estudantes universitários pagam taxas que podem ser bastante elevadas dependendo do curso. Nos EUA, embora existam muitas universidades públicas nenhuma é gratuita. O Estado subsidia parte dos custos, uma vez que em toda parte a educação superior é muito dispendiosa e seria impossível para as instituições funcionarem satisfatoriamente, apenas com as receitas das matrículas e anuidades. O fato é que a Constituição não menciona os meios com os quais poderá contar para realizar essa tarefa de proporcionar bem-estar generalizado, cujos custos são incalculáveis. Metaforicamente, pode-se dizer que, implícito na Constituição Brasileira está o entendimento de que o Estado deve ser uma espécie de cornucópia de onde brotam continuamente direitos e benefícios para todos os indivíduos em sua vida privada.

 As constituições refletem o tempo em que foram produzidas e, por essa razão, ao longo do tempo sofrem alguma alteração ou são adicionadas emendas como forma de adequá-las a uma realidade sempre em transformação. Nesse sentido, é importante considerar que a Constituição Brasileira foi produzida em um particular ambiente político, no qual o País deixava para trás um período de mais de duas décadas durante as quais a formatação do Estado e o exercício do poder haviam ocupado o centro das atenções. Assim, os constituintes de 1988, cheios de entusiasmo, deslocaram seu foco para outro extremo, para os direitos do indivíduo, confundindo-os com bem-estar individual. Com generalizado entusiasmo e sem qualquer consideração quanto aos meios necessários, os direitos atribuídos ao indivíduo foram minuciosamente designados e prescritos no documento. Na realidade, tanto entre constituintes quanto na opinião pública da época, ninguém ousava levantar objeções quanto a esses direitos, fosse do ponto vista moral e, menos ainda, sob o argumento de que o Estado não teria os meios necessários para provê-los. Pode-se dizer que essa Constituição contrasta, de forma bastante radical, com um dos trechos mais aplaudidos e citados do discurso de posse do Presidente John F. Kennedy (1917-1963), em 1961: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas pergunte o que você pode fazer por seu país”. Ou seja, não parece exagero dizer que, em termos de sentido, a Constituição brasileira de 1988 recomenda que cada cidadão veja o Estado e a nação como um butim a ser dividido e disputado, e não como um bem, como um patrimônio comum, a ser construído como produto da vontade coletiva. Nessa mesma direção, em A Rebelião das Massas, Ortega y Gasset dedica um “Epílogo aos Ingleses”, argumentando que “... o excepcional, a originalidade extrema do povo inglês radica em sua maneira de tomar o lado social ou coletivo da vida humana, no modo como sabe ser uma sociedade ...”. O fato é que a sociedade de massa, apesar de ser um fenômeno sociológico e antropológico geral, assumiu feições próprias em cada lugar e seus problemas, assim como as oportunidades que traz consigo, também ganharam coloridos que diferem de país para país. No Brasil, ao eleger a defesa e a promoção do corporativismo como objetivo central, em detrimento do mérito, o espaço público foi entregue ao homem massa e transformado em simples escada de ascensão social.

A IMPORTÂNCIA DAS ELITES EM UM MUNDO MASSIFICADO

 Em geral, biografamos as pessoas que se destacaram por sua inteligência, por seu talento, por sua coragem, pela sua capacidade de empreender, enfim destacamos aqueles que se distinguiram entre seus contemporâneos e seus pares. Mas a realidade é que de um ponto de vista da sabedoria mais profunda, vinda da Antiguidade, o mundo deve ser reservado à grande maioria das pessoas que transitam entre nós de forma anônima, perdida na multidão: “os humildes herdarão a terra e se deleitarão na plenitude da paz” (Salmos 37, 11), é o que diz a tradição judaico-cristã de forma inequívoca. O fato é que em todas as tradições culturais e religiosas a humildade é considerada uma virtude central. Na realidade, seria simplesmente insuportável um mundo feito apenas de grandes talentos e de indivíduos extraordinários, pensando e orientando permanentemente suas ações de forma crítica. Se considerarmos o lado pessoal e espiritual, provavelmente essa perspectiva seria ainda mais dramática, já que as figuras que costumamos biografar por seus feitos extraordinários, via de regra, foram pessoas angustiadas e atormentadas por dilemas dilacerantes, pela inquietação constante e pela incompreensão. São existências muito mais próximas dos personagens de Dostoievski, para quem a raiz da consciência seria o sofrimento, do que da figura do príncipe e da princesa dos contos de fadas para quem, superadas as dificuldades, “viveram felizes para sempre ...”.

 Apesar de tudo, as massas humildes não são um poço de virtudes como geralmente sugere a retórica em torno de termos como “democracia”, “povo” ou “cultura popular”. Na realidade, as massas são feitas de personagens capazes de atrair simpatia, mas não deixam de ser seres humanos complexos e frequentemente assolados por vícios como a mesquinhez, a inveja e a ignorância. Talvez a imagem um tanto dura e até cruel, mas reveladora da grande maioria dos homens massa tenha sido elaborada pelo pensador José Ingenieros, contemporâneo de Ortega y Gasset. [JOSÉ INGENIEROS nasceu em Palermo, na Itália, em 1877, mas ainda pequeno sua família imigrou para a Argentina, tendo, crescido e estudado nesse país. Morreu com apenas 48 anos, em 1825, em Buenos Aires. A primeira edição de El Hombre Mediocre data de 1913, mas há muitas edições da obra, inclusive traduzidas e publicadas no Brasil].

Com efeito, ao se pensar no homem massa de Ortega y Gasset é impossível não pensar, também, no homem medíocre descrito de forma impiedosa por José Ingenieros em seu livro El Hombre Mediocre. Ingenieros argumenta que a mediocridade não é o oposto da virtude, mas do idealismo. Pessoas medíocres não têm um ideal, ou uma visão de mundo que as comova e as faça sonhar e crescer: preferem viver de ideais alheios, com pouca reflexão própria. São moldadas pelo meio, atraindo para si todos os preconceitos do seu tempo, vendo a vida como um fato simples, sem nuances e sem perspectivas de modificação. São fãs que se sentem satisfeitos ao conseguir um autógrafo de seus ídolos populares, que podem ser um cantor ou um esportista famoso. Para Ingenieros, as pessoas medíocres têm dificuldade de perceber sua existência como parte de uma coletividade orgânica como a cidade, a nação ou qualquer outra entidade coletiva que possa acrescentar sentido à sua existência individual. São muito pouco propensas a iniciativas ou à resistência, prevalecendo sua natureza domesticada, sempre sujeita a ceder a qualquer pressão “como um barco sem timão, não conseguem e nem tentam adivinhar a própria rota”, diz José Ingenieros.

Nesse quadro, pode-se dizer que as massas continuam sendo o que sempre foram – uma média e um retrato de seu tempo. As elites, no entanto, tiveram destinos variados. Nas artes plásticas, na engenharia e na arquitetura, certamente, os Michelangelos, os Da Vincis e os Rodins de hoje não estão pintando cenas religiosas ou construindo templos e mausoléus, mas devem estar atuando em grandes complexos empresariais e industriais, produzindo belezas plásticas como automóveis dos sonhos, aparelhos e anúncios comerciais que fazem as delícias sensoriais do consumidor, ou mesmo construindo edifícios para abrigar sedes de empresas e de bancos que fazem o deleite dos sentidos, tanto de ricos e poderosos quanto da grande massa de consumidores comuns, que se admiram com suas dimensões e seu brilho. Cientistas notáveis devem estar fazendo parte de equipes de pesquisadores, atuando em laboratórios cujos custos devem ultrapassar muitos milhões ou até bilhões de dólares, e cujos trabalhos resultam em imagens cheias de vida e de beleza plástica ou em medicamentos que permitem estender por mais tempo o vigor da juventude ou curar enfermidades que trazem sofrimento à vida humana. Nas últimas décadas, talentos em matemática e em cálculos ajudaram a produzir ou a aumentar grandes fortunas postas em bancos de investimentos. Executivos de talento e com notável capacidade de empreender e de inovar têm feito sua parte no comando das grandes e poderosas organizações empresariais. Ou seja, em termos profissionais, é possível concluir que o processo de “circulação das elites” seguiu seu curso natural e tem produzido as maravilhas sensoriais e também as grandes fortunas que marcam o nosso tempo. Aparentemente, em muitos países, a relação mais problemática destes tempos de grandes transformações e de oportunidades igualmente grandes, mas voláteis, está na relação das elites com o poder. Na realidade, uma observação atenta revela que, enquanto as massas ascenderam, as elites declinaram em prestígio e, principalmente, no reconhecimento social.

A historiadora Barbara Tuchman (1912-1989) em seu livro A Torre do Orgulho, logo na introdução do capítulo I, faz uma apreciação abrangente da aristocracia que governava a Inglaterra e o Império Britânico no auge da Era Vitoriana: ”... os seus membros representavam os maiores proprietários do país, que se haviam acostumado a governar de geração em geração. Como cidadãos superiores que se sentiam, acreditavam-se obrigados ao cumprimento de um dever para com o Estado, protegendo os interesses e cuidando dos assuntos do Estado. Governavam por dever, por herança e por hábito e, como costumavam dizer, por direito”. [BARBARA W. TUCHMAN, A Torre do Orgulho. Um Retrato do Mundo antes da Grande Guerra (1890-1914). Rio de Janeiro: Editora Paz & Terra, 1990. A primeira edição foi feita pela Macmillan Co., em 1962].

No livro, a autora faz uma descrição detalhada de como essa elite entendia seu papel moral, político e social, no exercício das muitas funções de Estado. É importante notar que essa elite vitoriana reunia vários aspectos que definiam a própria condição de elite. Além da tradição familiar acumulada e mantida por gerações, seus integrantes possuíam formação educacional e instrução intelectual que os destacavam do restante da população. Eram educados em instituições centenárias como Eton, Winchester, Oxford ou Cambridge. Lord Salisbury (1830-1903) pode ser considerado um verdadeiro símbolo ou representante típico dessa elite. Sua árvore genealógica podia ser traçada por cinco séculos e entendia que não deveria ser apenas representante do povo, mas que era seu dever cuidar desse povo. Reverenciava e tratava com muita cortesia a Rainha Vitória (1819-1901) tanto por ser um súdito leal, quanto por ser um cavalheiro dez anos mais moço do que a rainha. Como primeiro-ministro recusava-se a residir na “10 Downing Street” preferindo morar em Hatfield, situado a 30 km de Londres. Hatfield tinha servido de residência dos Salisbury desde que, em 1607, o rei James I (1566-1625) a dera a Robert Cecil, Primeiro Conde de Salisbury (1563-1612), seu ancestral. Além disso, Hatfield era onde tinha seus próprios serviçais enquanto na “10 Downing Street” seria obrigado a conviver com serviçais do Estado que pouco conhecia e, no peculiar juízo de Lord Salisbury, muitos deles com hábitos desprezíveis.

Obviamente que não seria possível reproduzir em outros lugares essa aristocracia Vitoriana, pelo simples fato de não ter uma aristocracia tão antiga e tão consolidada. Além disso, nos dias de hoje, em toda parte, inclusive na Inglaterra, há uma nova elite formada depois dos terremotos políticos e sociais do século XX, que incluíram duas guerras mundiais e a expansão dos horizontes econômicos e sociais para uma escala global, movidos por tecnologias inimagináveis nos tempos da Rainha Vitória. Nas grandes democracias a política perdeu sua importância relativa, pelo simples fato de que as instituições e as práticas sociais tornaram-se mais estruturadas e consolidadas e a ordem política menos instável e menos imprevisível. Nesse mundo transformado, nações não se tornam mais ricas e poderosas por meio de competições predatórias e o termo "inimigo" foi substituído pela expressão "concorrente" ou até mesmo pela "formação de parcerias". Em tal quadro, governantes não precisam ser lideranças capazes de, em batalhas e disputas épicas, derrotar inimigos que se opõem aos “interesses nacionais”, mas precisam ser capazes de atrair para seus quadros as inteligências com conhecimento, talento e sensibilidade suficientes e adequadas para perceber o ritmo e a direção das mudanças em curso. Governos, para serem eficazes, precisam saber conciliar estabilidade e confiança nas instituições com a capacidade de discernir, com clareza, em que papéis e em que funções o Estado é insubstituível e em que aspectos deve limitar seu zelo ao papel de legislador e de árbitro para a manutenção da ordem, apostando no mérito e nas energias criativas, presentes tanto nos indivíduos quanto nas organizações sociais e empresariais da nação que lidera.

Se pudéssemos repetir a experiência da geração vitoriana hoje, a elite não seria composta de “barões da terra” – de “latifundiários” no linguajar popular – mas de lideranças empresariais, culturais, científicas e sociais que têm construído as principais marcas deste início de milênio em todos os continentes. A vontade popular da grande massa, em seu sentido mais essencial, não se encontra no voto e muito menos na eleição de alguém parecido com ela, por suas origens humildes ou por presumidas identidades como raça ou religião. A vontade popular mais profunda e mais generalizada, geralmente não expressa, está no desejo de fugir da pobreza e de poder viver uma vida com a dignidade a que todos os seres humanos deveriam ter acesso. É nessa perspectiva que emerge o papel mais precioso das elites. Não se espera que as elites abandonem seus interesses e nem que transformem suas fortunas em ações de benemerência, ou menos ainda que se tornem verdadeiros “pastores de uma massa de ovelhas dóceis”, mas que saibam como produzir riqueza e bens úteis e demandados pelos milhões de consumidores, sem comprometerem o patrimônio social, cultural e humanitário da nação. Esta conclusão pode soar como um sonho ou como uma quimera quixotesca, mas provavelmente seja aí que reside um papel que somente uma elite verdadeira pode oferecer: um objetivo ou um propósito que valha a pena ser perseguido pela sociedade. Não seria bom para todos os brasileiros pensar que o Brasil pode ser uma nação próspera e respeitada, a ponto de ser invejada por outras nações? Mas uma empreitada como essa só se afigura possível, se os integrantes da verdadeira elite deixassem sua zona de conforto, que os identifica com idiotes ricos e orgulhosos, e dedicassem parte de seu tempo para trabalhar como junzi corajosos e competentes. Para isso, seria preciso que a sociedade e, especialmente, as instituições públicas substituíssem os valores do homem medíocre e passassem a reconhecer e a estimular o mérito e o talento.

O professor Eiiti Sato possui graduação em Economia pela Fundação Armando Álvares Penteado, mestrado em Relações Internacionais - University of Cambridge (U.K.), mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Associado da Universidade de Brasília onde exerceu o cargo de Diretor do Instituto de Relações Internacionais de 2006 a 2014. Foi o primeiro Presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) de setembro de 2005, até julho/2007, quando foi realizado o primeiro Encontro Nacional de professores e pesquisadores de Relações Internacionais. De agosto de 2014 a outubro de 2016 foi Chefe da Assessoria para Assuntos Internacionais da Universidade de Brasília. As áreas de interesse acadêmico são: política internacional (história e teoria), economia política internacional, política externa brasileira e organizações internacionais.

Abril/2021