Comentarei, neste ensaio, a obra do professor e amigo Antônio Paim (1927-), intitulada: A querela do estatismo [cf. Paim, 1978]. Fiz uma primeira apreciação da mesma em 1979, recém-chegado ao Brasil. Trabalhava, então, na Editora Convívio, de São Paulo e uma das minhas incumbências consistia em atender à redação da Revista Convivium. Em abril desse ano foi publicada a resenha, que hoje divulgo devidamente atualizada, depois de 42 anos [cf. Vélez, 1979: 161-179]. A obra mencionada do professor Paim já está na sua terceira edição (2018), pela Editorial Távola de Campinas, e foi preparada por Antônio Roberto Batista. A obra destaca os descaminhos estatizantes pelos quais enveredou o nosso processo de modernização, comprometendo o pleno desenvolvimento capitalista e democrático do país. Isso ocorreu tendo sido solidificado o mundo jurídico ao redor de uma proposta definidamente estatizante, na Constituição de 1988, que assinalava direitos aos cidadãos, sem indicar deveres e criando fortes dificuldades para o pleno funcionamento da liberdade econômica. Não é à toa que estudiosos identificaram a Carta de 1988 como “o avanço do retrocesso” [cf. Mercadante et alii, 1990].
A análise dicotômica da realidade social brasileira, em termos de luta de classes, tem empobrecido o debate acerca da formação e da peculiaridade do Estado, levando a posições esquemáticas que terminam ignorando a nossa história e as tradições nas quais se originaram as instituições sociais e políticas. Superando essa visão simplista, Antônio Paim tenta, no seu ensaio, caracterizar os elementos que colaboraram na formação do Estado brasileiro, analisando-o como uma realidade per se. Profundo conhecedor da história das ideias filosóficas, Paim tem sabido caracterizar o núcleo de ideias políticas ligadas ao patrimonialismo modernizador, que influenciou, decisivamente, na evolução do Estado brasileiro.
1 - Conceitos sociológicos básicos.
Faço, de entrada, um esclarecimento sociológico: o Estado Moderno, objeto dos estudos de Max Weber (1864-1920), concretizou-se ao redor de dois tipos: contratualista e patrimonial. O tipo contratualista vingou ali onde houve feudalismo, ou seja, uma sociedade diferenciada em diferentes ordens de interesses, de onde emergiu a ideia de contratualismo na formação do Estado. Este tipo vingou, frisa o sociólogo alemão, na Europa Ocidental, herdeira do “feudalismo de vassalagem”, alicerçado num contrato entre duas classes, que se diferenciaram rapidamente em decorrência da defesa de interesses materiais diversos: os da aristocracia e aqueles da nascente burguesia. François Guizot (1787-1874) identificou a “luta de classes” como a forma de relacionamento político entre essas classes de interesses opostos, na Europa Ocidental [cf. Weber, 1944, IV. Guizot, 1864].
O tipo patrimonialista vingou ali onde não houve feudalismo de vassalagem e terminou prevalecendo um poder patriarcal original, que alargou a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administrá-lo tudo como propriedade familiar do governante. Esse modelo vingou no Oriente, na China, na Rússia e nos Califados árabes, bem como no Antigo Egito e na Península Ibérica, após os oito séculos de ocupação sarracena, que terminaram fazendo esmaecer a inicial experiência feudal. Foi também o modelo que, consoante Karl Wittfogel (1896-1988), vingou na América indígena pré-colombiana, nas culturas inca e asteca [cf. Wittfogel, 1977]. Este autor aprofundou nas características hidráulicas da economia agrária, nas regiões acima mencionadas.
Paim descobriu o valor heurístico da tipologia weberiana do Estado moderno, desenvolvida entre nós por Simon Schwartzman (1939-), acerca do conceito de patrimonialismo modernizador, utilizando-a como elemento conceitual de pesquisa no campo da história das nossas formações sociais. Partindo da análise da obra política do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que dotou o patrimonialismo português de perdurável influência modernizadora, Paim analisa a continuidade que teve essa influência no Brasil graças ao Conde de Linhares, dom Rodrigo de Souza Coutinho (1745-1812), inspirador da Academia Militar, criada em 1810.
O patrimonialismo modernizador pombalino encontrou a adesão, também, na era republicana, da parte de Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891) na Academia Militar e de Aarão Reis (1856-1936) na Escola Politécnica. É original e bem fundamentada a hipótese sustentada por Paim em relação a Benjamin Constant, que teria aderido ao positivismo motivado pela herança modernizadora de Pombal. O patrimonialismo modernizador encontrou continuidade em Getúlio Vargas (1883-1954), que reivindicava, em 1929, nos seus discursos como candidato à Presidência da República pela Aliança Liberal, a necessidade de superar a etapa puramente ideológica da política nacional, a fim de vinculá-la aos “Conselhos Técnicos integrados à Administração”. Getúlio sintetizou duas importantes vertentes do pensamento político brasileiro: o patrimonialismo modernizador de inspiração pombalina e o Castilhismo, a filosofia política que animou as instituições republicanas gaúchas durante a República Velha e foi a filosofia inspiradora da Revolução de 30 e do Estado Novo (1937). Paim analisa o governo Goulart (1961-1964) como acerto de contas entre o patrimonialismo tradicional e o segmento modernizador, com prevalência do primeiro sobre o segundo. Termina a obra que estamos comentando com um esclarecido estudo acerca do desenvolvimento econômico ensejado pelo movimento militar de 1964, que conferiu feição nova, na contemporaneidade, à tradição do patrimonialismo modernizador.
A obra de Paim apresenta grande atualidade na visão crítica que tem acerca do processo político brasileiro. O patrimonialismo, segundo o autor, teria se afastado da possibilidade de integração ao modelo de governo representativo, a partir da interpretação radical esboçada por Frei Caneca (1774-1825) e da instauração da República Velha (1889). O ideal do governo representativo teria percorrido, assim, ao longo do Império, um caminho paralelo, e simplesmente teria sido esquecido durante a República. Na parte final da obra, Paim enfatiza os aspectos que devem ser levados em conta no esforço por revigorar as instituições do governo representativo, no arcabouço do patrimonialismo modernizador adotado pelo movimento militar de 64. É importante o papel assinalado pelo autor à modernização do Legislativo, na tentativa de reforçar o governo representativo na atual conjuntura. Importante é, também, o papel a ser cumprido pelas Forças Armadas que, na sua função constitucional, deverão se dar conta de que a simples adesão a certos princípios não é suficiente para atribuir-lhes caráter moral. Salientarei, a seguir, os aspectos mais marcantes da obra em apreço do professor Paim, em face ao momento político que vive o Brasil, destacando os aspectos mais marcantes.
2 – Capítulo Primeiro: “A herança patrimonialista modernizadora”.
Antônio Paim dá ênfase ao valor heurístico da doutrina weberiana desenvolvida por Simon Schwartzman (1939-). Após salientar a conveniente abrangência dos conceitos weberianos no estudo da sociedade do ponto de vista do Estado, o autor analisa a aplicação que Schwartzman faz do conceito de patrimonialismo ao caso do Brasil, segundo a qual constitui fenômeno típico do patrimonialismo brasileiro, o empenho racionalizador na esfera econômica. Diferentemente dos países que vieram configurar as democracias ocidentais (principalmente os anglo-saxônicos) que, por terem, nas suas origens, uma forte base feudal de cunho “desestatizante”, experimentaram no processo de modernização das instituições políticas uma revolução burguesa, os Estados que passaram de um Estado patrimonialista original ao moderno Estado centralizado, fizeram-no sem o concurso de uma revolução burguesa, conservando, no entanto, a capacidade de se modernizar e racionalizar a sua burocracia, com uma base de poder e sistemas políticos bem diferentes dos vigentes nas democracias ocidentais. É este, sem dúvida, segundo Schwartzman, o caso do patrimonialismo luso-brasileiro [cf. Paim, 1978: 1-40. Schwartzman, 1975; do mesmo autor, 1982].
O patrimonialismo do regime luso-brasileiro foi salientado, também, por Raimundo Faoro (1925-2003), que tipifica na sua obra: Os donos do poder, a feição amplamente patrimonialista e centralizadora da burocracia portuguesa, que fazia de todos, incluindo a nobreza, dependentes do rei [cf. Faoro, 1958]. Tal característica fez do Império Brasileiro uma burocracia estável, centralizada ao redor do poder inquestionável do monarca, alicerçado no Poder Moderador e fundamentado em teimosa tradição alheia às tendências modernizadoras. Neste ponto, aliás, radica a grande limitação da análise pioneira de Faoro, ao desconhecer o componente modernizador do patrimonialismo luso, originado na obra inovadora do Marquês de Pombal (1699-1782).
Coube a Pombal o grande mérito de ter dotado o patrimonialismo português de perdurável influxo modernizador. O autor analisa com muita clareza o papel desempenhado pelo ministro de Dom José I (1714-1777) nesse ponto. Pombal, o mais bem sucedido dos estrangeirados, materializou os esforços que, desde o início do século XVIII, vinham sendo feitos em Portugal por parte da Academia dos Ericieira e de alguns setores da intelectualidade (Luíz Antônio Verney, por exemplo), em prol da inserção de Portugal na modernidade, rompendo com os esquemas medievais impostos através das ordens religiosas. Paim caracteriza assim a obra de Pombal: “A peculiaridade da mensagem pombalina consiste, em primeiro lugar, em ter difundido a crença de que a ciência (entendida como sinônimo de ciência aplicada) é o meio hábil para a conquista da riqueza. E, além disto, em ter nutrido a suposição de que a ciência não corresponde apenas ao processo adequado de gerir e explorar os recursos disponíveis, mas igualmente de inspirar a ação do governo (política) e as relações entre os homens (moral)” [Paim, 1978: 24-25]. Esta mensagem materializou-se, aliás, no campo institucional, na organização, em 1761, do Colégio dos Nobres de Lisboa, com a finalidade de educar uma nova elite através de rigorosa formação científica e mediante a reforma da Universidade de Coimbra, centrada ao redor do estudo da Matemática e da Ciência aplicada.
Apesar da viradeira de Dona Maria I (a partir de 1777) que tentou acabar com a obra do Marquês, o seu influxo modernizador no seio do patrimonialismo luso-brasileiro será muito profundo, porquanto a nobreza formada na era pombalina estava impregnada da ciência aplicada. Tal é o caso de Dom Rodrigo de Souza Continho, Conde de Linhares (1745-1812), que chefiou o governo de Dom João VI (1767-1826) no Brasil até 1812 e sob cuja inspiração implantou-se o conjunto de estabelecimentos de ensino superior até então inexistente no país, sobressaindo nesse conjunto a Real Academia Militar, criada em 1810, como estabelecimento destinado à formação simultânea de oficiais do exército e engenheiros. A Academia inspirou-se nos Estatutos da Universidade pombalina, tendo preservado no seu currículo o ideário do ensino das ciências ao longo do Império.
A ascensão do Positivismo no período republicano, através da Academia Militar, deixa ver claramente a sobrevivência do patrimonialismo modernizador pombalino. Paim salienta, aliás, que a adoção do comtismo pela Academia Militar deveu-se, primordialmente, ao fato de esta filosofia acomodar-se ao patrimonialismo modernizador, no sentido de completar a crença da geração pombalina na possibilidade da moral e da política científicas, “o que dá enorme coerência ao modelo que atribui ao Estado a direção do processo de modernização” [Paim, 1978: 35].
A obra de Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1833-1891) na Academia Militar, assim como a de Aarão Reis (1856-1936) na Escola Politécnica, inscrevem-se neste contexto. A ascensão do Castilhismo como filosofia política de inspiração positivista, com a ênfase no acúmulo de poder no Estado (tendência contrária, aliás, aos ortodoxos ensinamentos comteanos que salientavam a separação entre os poderes espiritual e temporal), prevaleceria como a versão do positivismo mais difundida no Brasil, segundo Paim.
3 – Capítulo Segundo: “A experiência renegada: o Sistema Representativo do Império”.
Paim sintetiza, nesta parte da obra, os elementos introduzidos especialmente ao longo do Segundo Reinado para consolidar o sistema representativo [cf. Paim, 1978: 41-58]. O legado do patrimonialismo modernizador pombalino teria, durante este período, uma interpretação extrema por parte do radicalismo liberal, de inspiração rousseauniana, cujo principal arauto foi Frei Caneca (1774-1825). Segundo esta versão ideológica, a sociedade poderia organizar-se em bases puramente racionais, sem dar-se ao trabalho, porém, de consultar a história real do país, ao advogar a organização autônoma das províncias. Este fato conturbaria a primeira metade do século XIX, na qual se podem enxergar três tendências em permanente conflito, conforme Paulo Mercadante (1923-2013): 1 – os liberais extremados, inspirados na Revolução Francesa; 2 – os liberais que se pretendiam revolucionários, mas que, de fato, passaram a temer a revolução, face ao rumo dos acontecimentos; os moderados, “líderes realistas da política de transação”. Finalmente, terminaria por impor-se esta última tendência, graças à presença de múltiplos fatores, como foram: a adesão da elite à filosofia eclética de Victor Cousin (1792-1867), que fornecia bases doutrinárias às tendências conciliadoras espontâneas; o fato de a doutrina da monarquia constitucional ter encontrado elaboração plena e acabada na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1946); e, por último, a circunstância de ter sido formulada adequada concepção teórica das instituições imperiais, por obra de uma geração cujo representante foi Paulino Soares de Souza, visconde de Uruguai (1807-1866).
A elite moderada que instituiu o sistema de governo representativo no Brasil fez duplo esforço criativo: 1 – a organização e o aprimoramento dos mecanismos conducentes a uma verdadeira representação dos diversos interesses presentes na sociedade, mediante o estabelecimento de condições objetivas a serem atendidas pelos cidadãos e a fixação de uma base territorial que permitisse o conhecimento dos interesses que deveriam ser representados, bem como o controle do eleitor sobre o mandatário; 2 – a criação de mecanismos moderadores no interior do Estado, que garantissem a estabilidade e a permanência do sistema de convivência entre os diversos interesses representados na sociedade. O inspirador desses mecanismos moderadores foi Silvestre Pinheiro Ferreira, que falava em Poder Conservador, que garantisse a manutenção dos direitos civis e a harmonia e independência dos poderes públicos. A Constituição de 1824 e a prática política posterior, segundo Paim, inspiraram-se no espírito do Poder Conservador de Pinheiro Ferreira, ao instituir o Poder Moderador, que consistia nos mecanismos moderadores baseados nas prerrogativas do monarca, na vitaliciedade do Senado e no funcionamento do Conselho de Estado. Estes mecanismos moderadores, no sentido de Paulino José Soares, permitiram implantar uma sociedade onde coexistissem os vários pontos de vista, assegurada a sua adequada modernização. Infelizmente, a nova elite que ascendeu ao poder com a queda do Império, interpretou de forma maniqueísta o rico processo anterior, opondo às instituições imperiais uma República que não soube aproveitar o que havia de verdadeiramente preservável no regime imperial: o sistema representativo. Assim, durante o novo período republicano, conforme Paim, “passou a vigorar a ilusão de que o simples direito de voto e a organização de uma eficiente Justiça Eleitoral seriam suficientes para implantar um sistema de base representativa” [Paim, 1978: 57].
4 - Capítulo Terceiro: “Abandono da Representação e Ascendência do Castilhismo”.
O autor analisa, nesta parte da obra, [Paim, 1978: 59 a 83], a ascensão da vertente autoritária ao longo da República Velha e a culminação do processo, em nível nacional, na obra política de Getúlio Vargas, que integrou, admiravelmente, a filosofia política inspiradora da mencionada vertente, ao patrimonialismo modernizador herdado de Pombal. O processo realizado durante o Império de fazer repousar o regime no sistema representativo, seria abandonado gradativamente durante a República. No primeiro decênio da vida republicana brasileira, frisa Paim, há sério conflito pela hegemonia entre o Poder Legislativo e o Executivo. O resultado desenhou-se a favor deste último.
No terceiro e quarto governos republicanos, sob Prudente de Morais (1841-1902) e Campos Salles (1841-1913) a representação passa a constituir um simulacro, cuja materialização se dá na “política dos governadores” iniciada por Campos Salles, e cuja peça-chave consistia em delegar à Mesa Diretora da Câmara, composta pela Chefia do Executivo, a atribuição de fazer o reconhecimento dos diplomas parlamentares. As eleições concretas foram substituídas pela Ata de Apuração, confeccionada na Capital da República com a única finalidade de garantir a estabilidade do governo, mediante uma sólida maioria. O progressivo afastamento da mecânica política com relação ao evento real é evidente. Toda esta arbitrariedade aprimorou-se mediante simples arranjo no Regimento da Câmara dos Deputados, intocada a Constituição. Paim escreve a respeito: “O desfecho desse processo, isto é, o abandono da representação, corresponde à ascensão do castilhismo ao plano federal, ocorrida após a Revolução de 1930” [Paim, 1978: 62].
Júlio de Castilhos (1860-1903) assumiu a liderança política no Rio Grande do Sul, após a Proclamação da República. Autor da Constituição estadual de 1891, foi presidente do Estado até 1898. Substituído no governo por Borges de Medeiros (1864-1961), sua obra política teve continuidade no interior do Rio Grande do Sul até 1930, quando Getúlio Vargas (1883-1954), que tinha substituído Borges de Medeiros na presidência do governo do Estado, assumiu o poder em nível nacional. Eis a caracterização que os próprios positivistas gaúchos fizeram do regime instaurado por Castilhos: “(...) Não há parlamento: o governo reúne à função administrativa a chamada legislativa, decretando as leis (...). A Assembléia é simplesmente orçamentária, para a votação dos créditos financeiros e exame da aplicação das rendas públicas. O governo acha-se, em virtude de tais disposições, investido de uma grande soma de poderes, de acordo com o regime republicano (...)”. O Grande sucesso dos Castilhistas, salienta Paim, consistia em evitar qualquer discussão da ideia mesma da representação. O ponto central a ser discutido seria para eles a essência do regime, com duas alternativas para o debate: ou a eleição dos mandatários, ou a elaboração das leis pelo Parlamento. Ora, os Castilhistas e o próprio Campos Salles entendiam que a essência do regime republicano consistia no sufrágio popular.
Para completar o ataque frontal ao sistema de governo representativo, Castilhos supunha que o Governo não devia constituir-se a partir de interesses materiais, e considerava que estava, agora, a serviço do aprimoramento moral da sociedade, numa concepção unanimista ao redor do Líder, que tinha sido formulada por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) na sua obra Do Contrato Social (1762). Assim, o governo, para os Castilhistas, correspondia ao regime da virtude. Vê-se a total oposição desta concepção à teoria liberal da representação, que é de interesses, segundo os grandes teóricos do liberalismo imperial, notadamente Silvestre Pinheiro Ferreira. A doutrina castilhista inspira-se na filosofia positivista de Augusto Comte, que sustenta na sua obra Sistema de política positiva (1851-1854) que o poder não provém da representação de interesses, mas do saber. A respeito, Paim escreve: “Essa suposição de que a eliminação do interesse material não era apenas desejável mas, sobretudo, possível, informa em seus mínimos detalhes a atuação política de Júlio de Castilhos” [Paim, 1978: 66].
Consequentes com a negação da representatividade, os Castilhistas consideravam o bem-comum não como resultante de uma barganha entre interesses privados, mas como efeito da aplicação da ciência e, portanto, como objeto do saber. Conforme afirmei em ensaio sobre o Castilhismo, “o bem público confundia-se, para Castilhos, com a imposição por parte do governante esclarecido, de um governo moralizante, que fortalecesse o Estado em detrimento dos egoístas interesses individuais e que velasse pela educação cívica dos cidadãos, origem de toda moral social” [Vélez, 1977, apud Paim, 1978: 67].
Getúlio Vargas formou-se politicamente no seio do Castilhismo. Desde muito jovem aderiu, fervorosamente, a essa doutrina. Ficou famoso o seu discurso diante do túmulo de Castilhos, pronunciado em 3 de outubro de 1903, quando o jovem gaúcho afirmou que Castilhos era, para o Rio Grande do Sul, “um santo”. Vargas ingressou na equipe de Borges de Medeiros aos vinte e seis anos, tendo ocupado diversas e importantes posições na administração gaúcha até 1930, quando ascendeu à Presidência da República. A contribuição de Vargas ao Castilhismo, indica Paim, “consistiu no empenho de transformar as questões políticas em problemas técnicos” [Paim, 1978: 73. Cf. Vélez, 1980].
Neste sentido, é indiscutível a posição de Getúlio, que em discurso de 4 de maio de 1931 afirmava: “A época é das assembleias especializadas, dos conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente político, no sentido antigo do termo, podemos considerá-lo, atualmente, entidade amorfa, que, aos poucos, vai perdendo o valor e a significação” [Paim, 1978: 59]. O princípio do encaminhamento técnico dos problemas materializou-se nos seguintes campos: 1 – em matéria educacional, ponto no qual Vargas procurou expressamente o consenso dos técnicos, através da Associação Brasileira de Educação; 2 – no campo salarial, mediante a adoção, por parte do governo, de mecanismos técnicos, primeiro concebendo uma legislação abrangente e, depois, organizando a Justiça do Trabalho, tendo-se constituído os sindicatos em peças dessa engrenagem. A respeito, salienta Paim: “Vargas criaria o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e iria promover, no que respeita ao trabalho, a exemplo do que fizera na educação, o entendimento eminentemente técnico do tema” [Paim, 1978: 78]; 3 - no campo da legislação: depois de fechado o Congresso em 1937, realiza-se no país uma ampla experiência de legislação atendendo a critérios técnicos, mediante a criação de comissões especiais para elaborar leis e decretos, no âmbito do Ministério da Justiça e dos Estados; 4 – no campo da economia: atribuição ao Estado, como missão precípua, da promoção da racionalidade nessa esfera. Os itens mais importantes desse processo eram: a – operações de intervenção direta do Estado na economia, das quais a mais significativa foi a decisão de implantar uma usina siderúrgica em Volta Redonda; b – ingerência do Poder Público na negociação da moeda estrangeira; c – a consolidação da centralização das emissões pelo Banco do Brasil; d – a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito, precursora do Banco Central; e – a criação do Conselho Federal de Comércio Exterior, a fim de tratar diretamente, com especialistas e representantes classistas, na conciliação de interesses em jogo, mediante o equacionamento de soluções técnicas; f – constituição, no interior desse Conselho, de uma Comissão Especial para estudar o problema do aço.
Para Paim, foi o empenho de equacionar os problemas políticos em termos técnicos, que levou Vargas a atribuir ao Estado a função de promover a racionalidade econômica. A intervenção direta na economia é uma decorrência dessa diretriz. Neste sentido, podemos frisar que a valoração da ciência e da técnica, típica do Castilhismo e do patrimonialismo modernizador de inspiração pombalina, inspirou Vargas para efetivar a intervenção do Estado na criação da racionalidade econômica, ponto do qual, aliás, os Castilhistas anteriores tinham-se aproximado e que constitui elemento fundamental do patrimonialismo modernizador.
Quanto à forma em que Getúlio teria entrado em contato com os postulados do patrimonialismo modernizador que inspirou a solução intervencionista para o problema do aço, Paim considera possível a influência das ideias difundidas na Escola Politécnica por Aarão Reis (1853-1936), através dos engenheiros militares que assessoraram Vargas. Contudo, o autor salienta: “Vargas terá fundido numa só as duas vertentes de inspiração positivista, a castilhista e a intervencionista no domínio econômico. Podemos, portanto, concluir que o Castilhismo corresponde à filosofia política que inspirou o Estado Novo (...). Plenamente identificado com os ensinamentos castilhistas, acreditava que o governo, contemporaneamente, tornava-se uma questão de competência. Seu exercício, contudo, não mais se faria em vista do aprimoramento moral da sociedade, mas objetivando a conquista do bem-estar material. Tal é a contribuição de Vargas ao Castilhismo” [Paim, 1978: 82-83].
5 - Capítulo Quarto: “Representação e Contrafação: a Experiência dos anos trinta e do Pós-Guerra”.
O autor analisa, nesta altura do seu ensaio [cf. Paim, 1978: 85-99], a incapacidade do liberalismo brasileiro no período para evoluir de acordo com as necessidades do País, sendo definitivamente defasado no processo político. No começo dos anos trinta há no país um clima de ampla liberdade. Contudo, tal conjuntura não foi aproveitada para um aprimoramento da doutrina e das instituições liberais. O radicalismo vigente cunhava slogans, reduzindo a isto todo o debate; segundo Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-2019), a estratificação do paradigma dicotômico se dá nesse decênio.
Correspondentes aos slogans de moda, duas crenças adquirem, neste período, grande vitalidade, incorporando-se ao conjunto de plataformas políticas de todos os ciclos subsequentes: 1 – O liberalismo não resolve o problema social. “Esta ideia, afirma Paim, não resultou de uma avaliação amadurecida do sistema liberal. Saiu pronta e acabada de nossa tradição republicana, no momento em que, pareceria, devêssemos encontrar as causas de sua incapacidade para assegurar estabilidade política equivalente à alcançada no Segundo Reinado” [Paim, 1978: 87]. 2 – Os partidos políticos são “simples instrumentos para preservar o poder em mãos de determinadas facções das elites estaduais” [Paim, 1978: ibid.].Esta caracterização negativa dos partidos políticos é decorrente do fato de ter-se distanciado o processo republicano da evolução do liberalismo europeu, sem que houvesse no Império Brasileiro experiência real e suficiente na matéria.
A situação acima expressa levou os liberais a concentrarem os esforços, no período compreendido entre a Revolução de 30 e a proclamação do Estado Novo em 1937, na luta por assegurar que os pleitos eleitorais fossem cercados de garantias quanto ao seu desfecho legítimo, numa tentativa por evitar que se repetisse a política dos governadores da República Velha. O Código Eleitoral de 1932 constituiu legítima expressão do pensamento liberal, embora não tivesse levado em conta a experiência europeia e ensejado a criação de uma estrutura partidária extremamente frágil. Ao impor poucas exigências para a obtenção de registro, ao assegurar a representação proporcional, adotar a apuração por cada Estado do respectivo quociente eleitoral, admitir a constituição das legendas num único partido, etc., o documento terminou obedecendo cegamente à preocupação fracionista. Esta limitação, aliada à radicalização crescente dos grupos totalitários em choque e ao empenho oficial em dar tratamento técnico às reivindicações e aspirações dos diversos setores, acabaria desembocando no predomínio do Executivo com o fechamento do Congresso em novembro de 1937.
A situação não melhorou, do ponto de vista liberal, com a queda do Estado Novo, que coincidiu com a derrota do fascismo na Europa. O liberalismo brasileiro do período carecia de elementos criativos para ter forjado uma alternativa política favorável à representação. Em que pese o fato de o pensamento liberal ter logrado consolidar a grande conquista do Código de 1932 que era a Justiça Eleitoral, consagrada como parte do Poder Judiciário na Constituição de 1946, a manutenção do princípio da eleição proporcional iria, entretanto, conduzir ao extremo fracionamento partidário. A isso se acresce o fato da deformação do sentido das eleições feita pelo Partido Comunista que, ao carecer de direito à existência legal, popularizou a falsa convicção de que “os pleitos servem para conscientizar”. Desta forma, uma parte da Nação – a intelectualidade universitária principalmente - iria acostumar-se à ideia de que as eleições devem ser utilizadas para outros fins diferentes do estabelecimento da representação. A praxe das alianças de legenda, que teve marcada generalização no pleito de 1962, contribuiu para esvaziar o processo eleitoral de qualquer sentido de representatividade.
A situação do liberalismo nas décadas de 40 e 50 é assim caracterizada pelo autor: “A liderança liberal brasileira perdeu de vista o desenvolvimento da doutrina e acabaria virtualmente capitulando diante da crítica totalitária (...)” [Paim, 1978: 98]. Exemplo vivo desta capitulação é a figura de Milton Campos (1900-1972), que ainda em 1966 supunha que o liberalismo estivesse comprometido com o laissez-faire, ignorando a obra de John Maynard Keynes (1883-1946), de 30 anos atrás.
6 - Capítulo Quinto: “O encontro com a Herança Patrimonialista-Modernizadora”.
O autor estuda, a seguir, a emergência do planejamento, bem como as instituições que surgiram na materialização desta ideia [cf. Paim, 1978: 101-123]. Analisa, também, o Governo de João Goulart (1919-1979) como acerto de contas entre o patrimonialismo tradicional e o segmento modernizador, e a viabilização do desenvolvimento econômico pela Revolução de 1974.
Nos três lustros posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial, ao lado da crise do liberalismo e das instituições representativas, aparece na administração pública brasileira um novo grupo de elementos institucionais anteriormente inexistentes, que são os legítimos herdeiros da tradição patrimonialista modernizadora. Estes elementos vão acompanhados de novo estilo de trabalho baseado em técnicas neutras e impessoais que, pela sua natureza, estarão chamadas a ter uma longa duração. O novo grupo de elementos institucionais mencionado estará identificado, salienta Paim, com o que passou a chamar-se de “planejamento”, entendido “não como instância administrativa, mas como um conjunto de técnicas destinadas a assegurar a consecução de determinadas metas” [Paim, 1978: 104], e que será efeito da ação estatal de cunho modernizador e positivo. A configuração dessa nova esfera foi obra da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, que iniciou os seus trabalhos em meados de 1951 e funcionou ininterruptamente até dezembro de 1953. A Comissão contou com a colaboração de cerca de 50 técnicos sênior do Brasil, recrutados entre a elite acadêmica e na administração.
A Comissão Mista fez amplo balanço e diagnóstico da economia brasileira, salientando os aspectos positivos e negativos face à tentativa de dinamizar o desenvolvimento econômico. Os aspectos positivos mais importantes, no sentir da Comissão, foram estes: o aparecimento de um grupo de homens de empresa criativos e abertos a projetos de longo prazo; a modernização de métodos agrícolas; melhoramentos em tecnologia, educação e saúde; sensibilidade e adaptabilidade da economia a variações de preços e mercados e mobilidade do capital e da mão-de-obra. O empenho modernizador posterior tentaria dinamizar estes fatores. Entre os aspectos negativos, a Comissão salientou o predomínio das unidades familiares fechadas. A Comissão Mista estudou, também, sem pretender uma hierarquização, os fatores naturais que impediam o desenvolvimento. “As ideias popularizadas pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, conclui Paim, seriam posteriormente incorporadas aos propósitos modernizadores do Estado. Em primeiro lugar, o entendimento de que, na ação planejada, deve-se ter presente que, sendo limitados os recursos disponíveis, o essencial é estabelecer a necessária escala de prioridades. Outro elemento igualmente valorizado corresponde à clara definição das fontes de financiamento e na adequada mobilização das agências estrangeiras” [Paim, 1978: 108]. Os procedimentos indicados pela Comissão Mista permaneceriam restritos ao domínio de reduzido número de técnicos brasileiros, que participou dessa experiência. A criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, recomendada pela própria Comissão, permitiria a irradiação de tais procedimentos modernizadores a uma comunidade mais ampla.
O BNDE, criado em 1952, conquistou em pouco tempo posição de liderança, ao inserir na administração tradicional uma série de normas de atuação inteiramente novas. “O essencial, frisa Paim, corresponde ao empenho de submeter certos órgãos públicos ao regime de projeto, isto é, ao imperativo de consubstanciar seus propósitos e planos num documento que leve em conta as exigências do mercado, componha adequadamente as fontes de recursos a mobilizar e assegure o retorno do investimento. A aplicação consequente desse conjunto de princípios iria levar a que se desse preferência à gestão empresarial” [Paim, 1978: ibid.]. O novo estilo ganharia mais uma componente através do Programa de Metas do governo Juscelino Kubitscheck (1902-1976).
Com a emergência de Goulart ao poder, não houve dúvida acerca da tendência do governo a favor do patrimonialismo tradicional, com todas as suas características: empreguismo, burocratização e ineficiência. Comprometer-se-ia o sucesso alcançado em poucos anos pelo BNDE, que seria sistematicamente esvaziado de recursos. O caminho percorrido passou a ser interpretado não como um elemento novo na administração, mas como um agregado aos componentes tradicionais, passível de ser assimilado e neutralizado pelo patrimonialismo. A vertente modernizadora retomada por Getúlio Vargas na sua última administração, no início da década de 50, foi sumariamente esquecida.
Durante a década de 50, além do grande impacto da Comissão Mista, o autor salienta um sensível esforço teorizador, de caráter modernizador, feito pelo IBESP-ISEB e pela Escola Superior de Guerra. O primeiro (cujas origens datam de 1952 e a sua definitiva consolidação de 1955) ocupou-se, preferentemente, das questões políticas vinculadas ao desenvolvimento. Embora fosse dissolvido em 64 por ter-se engajado na luta política, conseguiu popularizar a ideia de um projeto nacional de desenvolvimento, retirada qualquer conotação político-partidária.
A ESG estruturou-se em 1950 e desenvolveu estudos sistemáticos sobre Política e Estratégia, Segurança e Desenvolvimento Nacionais, admitindo a possibilidade de uma Ciência Política que contribua para o bem comum. “O propósito essencial da Escola, salienta Paim, tornou-se a promoção da racionalidade na atuação do Estado. Semelhante objetivo é entendido como correspondendo à velha aspiração da intelectualidade e da elite militar e consiste no empenho decidido em prol da superação das deformações do Estado Liberal” [Paim, 1978: 117]. Considerando que ao Estado Moderno cabe a realização do ordenamento econômico e social, a Escola considera necessário eliminar-se toda atuação improvisada, empírica e emocional, a fim de substituí-la pelo máximo de racionalidade. Embora a ESG tivesse desenvolvido uma significativa elaboração teórica, notadamente no que respeita à área de atuação do poder que não pode ser objeto de barganha por configurar as bases do pacto político, (esfera denominada de objetivos nacionais permanentes), o empenho de atribuir fundamentos morais à ideia de segurança nacional, dissociando-a de qualquer conotação ideológica, não teve resultado bem-sucedido.
Analisando a Revolução de 64, o autor considera que um dos seus desfechos, por muitos considerado imprevisível, está na “circunstância de que haja encampado o projeto modernizador e logrado assegurar-se da colaboração da imensa maioria da elite técnica formada a partir dos anos cinquenta” [Paim, 1978: 120], tendo conseguido, graças a isto, êxitos incontestes no campo econômico, que levaram o Brasil a ocupar o oitavo lugar entre os países detentores de maior PIB no Ocidente.
Indagando sobre qual seria a relação entre o projeto moralizador de combate à corrupção e a subversão, que constituía o programa original da Revolução, e a opção do movimento de 64 pelo projeto modernizador que vinha sendo formulado a partir da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, o autor faz referências ao ensaio intitulado: “Tecnocracia e Nacionalismo” de Nelson Mello e Souza (1926-). Segundo este autor, a tecnocracia possui diretrizes de valor bem definidas e relacionadas com o lado progressista do momento histórico em que aparece o seu influxo. Entre essas diretrizes de valor figuram os compromissos subjetivos com a transformação institucional e a modernização social. Assim, “a tecnocracia aparece como representante indispensável das aspirações populares porque é o cadinho técnico dentro do qual se processa a síntese química entre aspirações nacionais, vocação histórica, desejos de progresso económico-social, de um lado, e viabilidade econômica, opções financeiras e projetos de inversão e reforma, de outro” [Souza, apud Paim, 1978: 121].
Estes elementos aparecem, segundo Mello e Souza, no processo desencadeado pela Revolução de 64. Nos países subdesenvolvidos o projeto modernizador requer uma elite estratégica que o acione, sendo essa posição assumida pela tecnocracia. O desfecho da Revolução de 64 comprovaria, eficazmente, a constituição no país de semelhante elite. A falta de mediação da tecnocracia nos países subdesenvolvidos, segundo Mello e Souza, permite a aparição de um relacionamento direto entre elites políticas e massa, ganhando contornos de inviabilidade política ao deformar-se no “populismo”, em formas similares de demagogia política e distributivismo econômico. Com base na anterior análise, Paim conclui que “a hipótese aceita é a de existirem evidências históricas de que a intelligentsia, nos países subdesenvolvidos, assume sempre uma postura não conformista” [Souza, apud Paim, 1978: 122].
7 - Capítulo Sexto: ”Por uma visão abrangente do Estado brasileiro”.
Este capítulo [cf. Paim, 1978: pp; 125-137] serve como conclusão do ensaio. Nele são analisadas as relações, no seio da história brasileira do século XX, entre estamento tecnocrático e máquina tradicional do Estado, bem como o papel que cabe à classe política e às Forças Armadas face ao processo modernizador no seio do patrimonialismo. Paim salienta a complexidade do Estado brasileiro que “abrange pelo menos quatro segmentos que assumem posturas abertamente conflitantes: a máquina patrimonialista tradicional, a classe política e as elites técnica e militar” [Paim, 1978: 127]. O fato dessa complexidade torna inviáveis as interpretações maniqueístas, porquanto simplificatórias, do Estado brasileiro.
Quanto ao papel a ser assumido pela classe política, o autor insiste na necessidade de estabelecer uma relação produtiva entre esta e a elite técnica. Segundo Mello e Souza, no ensaio atrás citado, “o regime político deve adaptar-se para manter os princípios da representatividade e (...) o fato democrático deve ser interpretado com realismo e espírito científico” [Paim, 1978: 128]. Em face dos desajustes históricos sofridos com a desvinculação da política republicana da preocupação modernizadora do Legislativo, concomitante ao hiperdesenvolvimento do Executivo, a classe política brasileira passou, progressivamente, a ser menosprezada e sumida nas trevas do tradicionalismo patrimonialista.
Longe de considerar pejorativamente a função do político tradicional, o seu papel deve aprimorar-se, no Estado contemporâneo, assinalando as responsabilidades que cabem à classe política como engrenagem necessária na consolidação da autêntica representação. Eis os aspectos mais importantes a serem levados em conta na modernização da classe política brasileira: 1 – reconhecer o processo adaptativo experimentado pelo Parlamento, em especial nos Estados Unidos; 2 – dominar a experiência de superação das crises entre Legislativo e Executivo, como a que viveu a França, e as soluções superadoras adotadas; 3 – estar ciente do papel que o Legislativo foi capaz de desempenhar no sentido de que o fenômeno da dissociação entre gestão empresarial e propriedade, como na Alemanha, se fizesse em favor da disseminação do poder econômico; 4 – a instituição do voto distrital; 5 – a criação de assessorias especializadas e a realização de debates sistemáticos dos grandes temas virtualmente monopolizados pelo estamento tecnocrático. (Aqui cabe insistir na necessidade de ampliação do círculo do debate, com vistas à obtenção de um consenso, notadamente no que se refere à problemática da representação); 6 – a quebra do menosprezo que devota à classe política parcela significativa da intelectualidade, incorporando, assim, as novas vocações políticas que são desviadas, sistematicamente, dos quadros institucionais pelo projeto utópico da sociedade racional. Deste modo, frisa Paim, são múltiplas as possibilidades tanto de aprimoramento da representatividade da elite política, como de sua modernização, isto é, das vinculações do parlamento ao projeto modernizador da Nação brasileira” [Paim, 1978: 133].
Em relação ao papel moderador desempenhado na sociedade brasileira pelas Forças Armadas, o autor lembra, em primeiro lugar, o sentido que tinha a moderação no Estado liberal clássico, correspondendo ao reconhecimento, de parte da sociedade, da existência de uma esfera que transcende os interesses de grupo: por exemplo, a defesa da integridade do território ou da independência dos poderes. O campo no qual opera a moderação não pertence ao âmbito da política, na qual é típica a negociação e a barganha de interesses. A moderação efetiva-se, portanto, no terreno moral.
Consoante a sua formação no culto dos valores absolutos da moral, conforme salientou Paulo Mercadante na sua obra intitulada: Militares e civis: a ética e o compromisso [Mercadante, 1978], a elite militar brasileira tem desempenhado o papel de poder moderador sempre que os problemas em jogo transcendiam os interesses meramente políticos. Daí a importância, salienta Paim, de distinguir as esferas moral e política na atuação das Forças Armadas. A sua atuação como poder moderador tem sido clara na adoção da ideia de desenvolvimento, pelo fato de que se tornou adequada materialização dos ideais nacionais. Contudo, tal não tem acontecido com a defesa da segurança que, depois da Guerra Fria, deixou de ter conotação política para passar a abarcar a exigência de sobrevivência dos valores básicos da nossa cultura, assumindo assim forte conteúdo moral. É necessário um esforço, frisa Paim, na determinação do conteúdo da exigência da segurança, como valor a ser preservado pelas Forças Armadas. Infelizmente, na sua defesa tem havido confusão no sentido de identificar segurança com um componente autoritário no plano político. A experiência histórica tem comprovado que o autoritarismo dá alicerces provisórios à segurança. Não pode ser aceita apriori a ideia de que a defesa da segurança comporte a impossibilidade do sistema representativo. Em síntese, conclui Paim, o Estado brasileiro, que é sem dúvida patrimonialista, é uma realidade complexa que impede esgotar-se em análises dicotômicas ou simplistas.
Eis resumidos os principais aspectos que integram essa complexa realidade, na sua tensão dinâmica à procura da modernização: “A elite técnica, constituída no seio do Estado, corresponde a uma aspiração secular da nossa civilização. Tudo leva a crer, por isto mesmo, que não se trate de uma discriminação transitória. É provável que seu conflito com a máquina patrimonialista tradicional não possa ser solucionado antes de que sejam eliminados os múltiplos focos de pobreza ainda subsistente em nossa realidade social (...). A modernização da classe política, por seu turno, não corresponde igualmente a uma conquista que possa ser simplesmente decretada. Requer a experimentação e os riscos daí decorrentes (...). Também a elite militar, mais cedo ou mais tarde, terá que se dar conta de que a sua simples adesão a certos princípios não é suficiente para atribuir-lhes cunho moral. E parece inelutável que as questões revistam esse caráter, a fim de que se torne legítimo o exercício de suas funções de árbitro” [Paim, 1978: 136-137].
8 – Conclusão: Os descaminhos do Patrimonialismo Modernizador Brasileiro.
Embora o nosso modelo de Patrimonialismo Modernizador, inspirado em Pombal, tenha conseguido efetivar grande processo de industrialização que colocou o nosso país entre as oito principais economias do mundo, no entanto, o arcabouço jurídico e político em que se alicerçou esse surto desenvolvimentista não foi plenamente moderno: permaneceu atrelado ao velho estatismo herdado de Portugal. Paim registra esse indubitável desenvolvimento da seguinte forma: “Caberia basicamente aos governos militares do período 1964-1984 implantar uma infraestrutura econômica e urbana que colocou o país entre as maiores economias do mundo. (...) Embora em algumas (...) grandes cidades se hajam formado periferias pobres e sem condições de habitação e existam, em diversos Estados, unidades pequenas sem qualquer dinamismo e onde as pessoas se sentem estimuladas a emigrar, o núcleo básico das cidades brasileiras registra nível de civilização material equiparável à parcela desenvolvida do mundo. Abrangendo o interior de São Paulo, o Norte do Paraná, o Oeste de Santa Catarina, diversas regiões do Rio Grande do Sul, o Estado de Mato Grosso do Sul, Sul de Goiás, Triângulo e Sul de Minas, formou-se um imenso bolsão de moderna agricultura, pujantes agroindústrias e núcleos urbanos bem-sucedidos, onde não há pedintes nas ruas e nem miséria gritante. Esse bolsão compreende cerca de 30 milhões de pessoas (20% da população recenseada em 1991, equivalente a 146,2 milhões). Afora esses núcleos, há pólos de progresso espalhados por todo o país aptos a servir de base para a eliminação das grandes disparidades regionais” [Paim, 2018: 178-180].
Os governos militares partiram para ousado processo de integração nacional, unindo as várias regiões por modernas vias de comunicação e desenvolvendo grande projeto de telecomunicações. Era o denominado ponto da “circulação”, apontado por Oliveira Vianna (1883-1951), que rasgou o pais com modernas autoestradas e dotou as cidades de eficiente sistema de telecomunicações via satélite. O nosso autor sintetiza essa realidade da seguinte forma:
“No início dos anos 80, consolida-se a sexta fase do modelo, iniciada ao final da década de 70, pelo governo Geisel e tenuemente mantida pelo governo Figueiredo, apesar dos problemas climáticos e da forte crise econômica por que passou o País, até 1985. Essa fase corresponde à estruturação dos corredores de exportação, ao asfaltamento de eixos troncais importantes e à interiorização, cada vez maior, de novas áreas de produção vinculadas à agricultura de produtos de exportação (...). Completa-se a infra-estrutura econômica pela presença de uma rede interligada de centrais hidrelétricas, destacando-se os sistemas de Furnas, que abrange os Estados da região Sudeste e mais o Distrito Federal e Goiás, tendo em seu interior as áreas da Cemig (Minas Gerais), da Light (Rio de Janeiro) e da Eletropaulo (São Paulo; a Eletro Sul, abrangendo Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul); o Sistema Nordeste, capitaneado pela CHESF (Centrais Elétricas do São Francisco) e o da Região Norte. A Usina Hidrelétrica de Itaipu, com capacidade para gerar 12,6 milhões de kw, inclui-se entre as maiores do mundo. Finalmente, a infraestrutura econômica compreende ainda o serviço de telecomunicações, que hoje mantém praticamente todo o país ligado pelo sistema DDD” [Paim, 2018: 182].
Nesse contexto de realizações alvissareiras, estava, no entanto, germinando o atraso. O estranho fenômeno é assim descrito pelo nosso autor: “O fenômeno da industrialização e da modernização econômica se fez acompanhar de uma brutal estatização da economia. Em pesquisa realizada no ano de 1973, Gilberto Paim (1919-2014) evidencia o fenômeno porquanto o Estado detinha 45,8% do patrimônio líquido do mundo empresarial brasileiro (5.275 maiores empresas não-agrícolas). (...). No período subsequente a estatização seguiu seu curso. No setor de aço, por exemplo, o patrimônio líquido das empresas governamentais somava US$ 7,6 bilhões contra US$ 3,3 bilhões de grupos privados. Nos anos posteriores criaram-se duas novas usinas siderúrgicas sob hegemonia estatal (Cia. Siderúrgica Tubarão e Açominas) [Paim, 2018: 184].
Destacando a doença do estatismo que afeta à economia brasileira, escreve o nosso autor: “Não se dispõe de nenhuma avaliação conclusiva acerca dos níveis alcançados pela estatização da economia brasileira. Contudo, o professor Mário Henrique Simonsen (1935-1997) calculou a participação do Estado no conjunto dos investimentos, ao longo dos anos setenta e em parte da década seguinte, em 64%. Tenha-se presente que este resultado superpunha-se à estatização de quase 50% da economia, observada por Gilberto Paim nos começos do decênio de setenta. De sorte que não se deve considerar nenhum exagero a suposição de que os níveis de estatização da economia brasileira tenham chegado a 70%” [Paim, 2018: 186].
Do ângulo político, os governos militares criaram uma verdadeira máquina de destruição da representação política: o general Geisel, em que pese o impulso dado à economia mediante a industrialização e as obras de infraestrutura, terminou atrelando o Congresso ao que de mais atrasado há em matéria de mentalidade, deformando deliberadamente a representação, de forma que esta fosse maior na parte mais atrasada do país (que, para sobreviver, precisava dos favores da União), ao passo que foi deformada na parte mais modernizada do país (Sul, Sudeste e Centro Oeste). Esse foi o grande feito do famoso “Pacote de Abril de 1977”. O Congresso brasileiro, assim, tem maior representação das áreas atrasadas (Nordeste e Norte), que terminam gerando maiorias que apoiam o atraso e atrapalham o desenvolvimento. Paralelemente, surgiu, sob a inspiração do citado general Geisel, frondosa burocracia federal que passou a controlar, de olho na manutenção dos seus privilégios, todos os órgãos públicos, notadamente os ligados à educação superior e ao controle sobre o meio ambiente.
O sistema produtivo passou a ser atravancado pelos sindicatos ligados ao Partido dos Trabalhadores, que desenvolveu paciente e eficaz política de ocupação da máquina pública, logo após o final dos governos militares. No terreno do Ensino Fundamental, essencial para a formação dos adolescentes e jovens inserindo-os no mercado de trabalho, a dupla marxista Paulo Freire (1921-1997) e Moacir Gadotti (1941-) criaram intrincada rede socialista de sindicatos de docentes que tomaram de assalto as Secretarias Estaduais e Municipais de educação pelo país afora. No sistema de Ensino Público Superior, as reitorias das Universidades Federais terminaram sendo controladas pelos sindicatos de docentes e funcionários ligados à Central única dos Trabalhadores, dominada pelo PT. Assim, após quinze anos de desgovernos petistas, o panorama do sistema educacional brasileiro é dos mais atrasados do Mundo, com as nossas crianças e adolescentes sendo a lanterna vermelha da avaliação, nas provas internacionais como o sistema Pisa e com as nossas Universidades Federais mergulhadas na militância de esquerda e na absoluta falta de criatividade intelectual.
Terminando este quadro, convém destacar os passos que a sociedade civil deve dar, no sentir de Antônio Paim, para superar o Patrimonialismo. Seis pontos cabe destacar: 1 - Não deve ser incumbência do Estado liderar o processo de desestatização. 2 - É função do empresariado, como frisava o saudoso Amaury Temporal (1938-2015), "agregar forças". 3 - Ao Estado cabe estimular o desenvolvimento econômico, sob a égide da iniciativa privada, como recomendava Roberto Campos (1917-2001). 4 - É recomendada a aproximação do empresariado em face dos quadros intelectuais interessados no combate ao patrimonialismo, no seio dos Partidos Políticos. 5 - É recomendado o estímulo à criação de Thing-Tanks de inspiração liberal nas Universidades. 6 - É necessário fixar uma pauta mínima para o empresariado, que abarcaria os seguintes pontos: colaborar com a sociedade civil no esforço em prol da eliminação das burocracias oficias de combate à pobreza; contribuir para levar a bom termo o programa de privatizações das empresas estatais; efetivar o reexame da estrutura administrativa dos vários órgãos integrantes da União; prestar atenção às forças que, dentro do Estado se disponham a abdicar das tradições patrimonialistas [cf. Paim, 2018: 219-227].
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