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A MODERAÇÃO NA POLÍTICA: A SABEDORIA ESTÁ NO CAMINHO DO MEIO. Por : Professor Doutor EIITI SATO (INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNB)



1 - INTRODUÇÃO: O MITO DE ÍCARO E O CAMINHO DO MEIO.

Francis Bacon (1561-1626), em sua apreciação do mito de Ícaro, identifica essa figura mitológica como simbolizando a sabedoria do caminho do meio. O mito diz que Dédalo teria recomendado a seu filho Ícaro que não voasse alto demais para que as asas, fixadas com cera, não se desprendessem devido ao calor do Sol, e que também não voasse baixo demais para que os vapores do mar não comprometessem a consistência e a firmeza das delicadas asas por ele construídas. “Os antigos representaram o principio da moderação na esfera moral pelo caminho que Ícaro deveria tomar nos ares; na esfera intelectual, pela passagem entre Cila e Caríbdis, célebre pela dificuldade e perigo”, lembra Francis Bacon. Em uma época em que a ansiedade por respostas exatas e “científicas”, isto é, irrefutáveis, para os problemas humanos e sociais volta a povoar as mentes, parece ser esse um ensinamento notavelmente atual e merecedor de cuidadosa reflexão. De fato, buscar respostas exatas e irrefutáveis para todos os problemas humanos parece ter se tornado uma espécie de religião sem o sobrenatural que, em nosso tempo, serve de base para justificar manifestações de intolerância nas mais diferentes esferas do comportamento humano.

Em larga medida, essa atitude contrasta com a sabedoria vinda da Antiguidade que, sobre as coisas humanas, sempre se manifestou por meio de mitos, parábolas, e por meio de outras formas simbólicas de representação de atitudes e de comportamentos humanos considerados desejáveis ou indesejáveis. Mitos e parábolas, por seu conteúdo enigmático, sempre induzem à reflexão antes da ação, enquanto religiões – com ou sem divindades sobrenaturais – criam regras morais, que dispensam a reflexão. Especialmente na política, esse é um problema que se revela crucial já que cabe aos tomadores de decisão fazer as escolhas mais adequadas e sensatas, mesmo diante de uma opinião pública sujeita a influências e preferências cambiantes e tendentes a reações mais extremadas e imediatistas. Hobsbawm classifica o século XX como tendo sido uma era de extremos, no entanto, viver em extremos não parece ter sido um “privilégio” do século XX. Os conflitos religiosos dos séculos XVI e XVII, os excessos da Revolução Francesa e o terrorismo neste início do século XXI, mostram que tendências para comportamentos extremados não pertencem a uma época ou lugar em particular, mas parecem fazer parte da própria natureza humana que, de tempos em tempos, apenas revela nessas tendências uma de suas facetas problemáticas e por vezes obscura e dramática.

A moderação, por sua vez, é uma virtude sempre lembrada por analistas e filósofos, mas muito difícil de ser caracterizada e mais difícil ainda de ser praticada. A moderação é, por natureza, uma virtude discreta e assim, ao contrário dos extremismos, tem muito pouca visibilidade. Na realidade, a moderação não excita e não mobiliza mas, ao contrário, denota reflexão e sensatez. A própria história faz pouca referência às épocas e às regiões marcadas por paz e por estabilidade, dando muito mais destaque às regiões e aos momentos da história marcados por conflitos, turbulências e guerras. No livro Ética a Nicômaco, Aristóteles aponta o caminho do meio – a moderação – como virtude essencial na conduta das pessoas na busca da felicidade. Para Aristóteles, ser covarde é tão ruim quanto ser exageradamente arrojado e, do mesmo modo, ser mesquinho é tão condenável quanto ser perdulário. A sabedoria, a verdadeira coragem e a generosidade genuína, na visão de Aristóteles, estariam, portanto, em algum ponto no meio desses extremos.

2 - AS IDEOLOGIAS, OS EXTREMISMOS E OS CAMINHOS DA MODERAÇÃO.

As ideologias sempre foram pródigas em produzir comportamentos extremados. Para os propósitos deste ensaio, pode-se resumir o significado de ideologia como um conjunto lógico de padrões, teorias e crenças, que ligam visões de mundo à prática política. A lista de ações e de manifestações de intolerância e de extremismos baseadas em ideologias, sobretudo de base religiosa, é muito longa e não exclui qualquer uma das grandes religiões populares no Ocidente. Não porque essas religiões ensinassem o ódio e a intolerância, mas porque as doutrinas religiosas tendem a ser, por natureza, excludentes e não se necessita mais do que um pequeno passo para que seus seguidores concluam que todos aqueles que não seguem a sua ideologia religiosa deveriam ser considerados infiéis, inimigos e até traidores e que, por se contraporem à ordem com que sonham os ideólogos, deveriam ser segregados, presos e até eliminados. Na trajetória do cristianismo europeu – que melhor conhecemos – a luta entre católicos e reformistas nos séculos XVI e XVII deixou um rastro dramático de conflitos, perseguições, morte e destruição.

A construção das democracias modernas, baseadas na tolerância e na moderação, ocorreu na esteira desse período de intolerância e de radicalismos religiosos do cristianismo europeu e, nesse processo, os pensadores do iluminismo tiveram um papel central na construção de uma nova ideologia baseada na razão, no conhecimento e na tolerância, substituindo assim, o radicalismo pelo caminho do meio. Essa mudança de entendimento aparece de forma notavelmente clara nas obras de pensadores como John Locke, David Hume e Immanuel Kant.

O papel do iluminismo como elemento chave para a promoção do pensamento sem a tutela de autoridades religiosas ou seculares – um ingrediente essencial para a moderação diante dos extremismos – é visto no argumento de Kant em favor da razão, do conhecimento e da importância dos indivíduos pensarem por si próprios: “Iluminismo (Aufklärung) significa a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro”. Kant argumenta que pensar por si próprio não é um caminho fácil pois é preciso esforço de estudo, de reflexão, e sobretudo de coragem para, por vezes, se opor às opiniões e às crenças dominantes. Enquanto isso, ao contrário, manter-se na menoridade, sendo um seguidor de opiniões de doutrinadores e de autoridades influentes é sempre um caminho bem mais fácil e menos trabalhoso. Além disso, estar ao lado das opiniões dominantes também geralmente significa estar mais perto das vantagens e dos confortos proporcionados pelo poder.

Em outro escrito, Kant reforça e dá maior amplitude ao argumento afirmando que “os seres humanos desejam a harmonia, mas a natureza sabendo melhor o que é bom para a espécie, lhe dá a discórdia; os humanos gostariam de viver na paz e no lazer, mas a natureza os retira do sossego e da passividade e os atira ao trabalho e à labuta, apenas para encontrar os meios para escapar inteligentemente dessa condição”. É possível concluir que, filosoficamente, trata-se de uma poderosa argumentação contra a intolerância e os extremismos uma vez que, quando os indivíduos pensam por si mesmos, inevitavelmente, está retirando muito da força do doutrinador, dos meios de propaganda e, nos dias de hoje, do político populista que, para serem eficazes, precisam que as pessoas e as populações sigam suas orientações sem questionar, sem submeter as propostas e as ideias do partido político ao crivo de seu próprio entendimento. Para Kant, o trabalho e o esforço constituem parte inseparável da condição humana. Os que efetivamente desejam a paz, terão de construí-la com muito esforço, paciência e dedicação. Instituições como o Estado democrático e, mais modernamente, como a ONU, criadas para organizar a convivência entre indivíduos e entre povos, não são obras acabadas. Os avanços costumam ser lentos, e a simples existência de uma lei, de um tratado ou mesmo de uma organização formalmente estabelecida, não constituem garantia suficiente de sua eficácia. O homem é imperfeito e é preciso que as instituições sejam completadas e aperfeiçoadas por suas ações ajudando, dessa forma, a conter muitos de seus impulsos que – tal como a tendência aos extremismos – podem ser um impulso autodestrutivo tanto para os indivíduos quanto para as sociedades. Os legisladores podem produzir leis boas e justas, mas cabe às instituições judiciárias, aos juízes e aos governantes fazerem com que, no dia-a-dia, essas leis sejam efetivamente aplicadas. Salta aos olhos a atualidade dessas reflexões nestes tempos de fake news e de propaganda massificante.

Uma forma de interpretar a linha tênue que separa a ideia ou inclinação humana pela construção da ordem dos impulsos destrutivos das opiniões extremadas, é recorrendo ao que Sigmund Freud chamou de teoria das pulsões. Para Freud o homem está constantemente sujeito a dois impulsos antagônicos: a criação e a destruição. Eros representaria o impulso para a vida e para a criação, enquanto Tânatos, para a morte e para a destruição. A criação é naturalmente frágil, como um recém-nascido que demanda cuidados e proteção, enquanto a destruição e a morte normalmente são associadas ao que é senil e ultrapassado, muito embora possa ocorrer também ao que é jovem, ao que ainda não alcançou a plenitude de seu potencial. Trata-se de uma dualidade de impulsos que estaria no centro dos conflitos tanto psíquicos quanto sociais. De acordo com o mito no qual Freud se inspirou para formular e explicar esse antagonismo, Eros, o mais belo dos deuses do Olimpo, tinha um arco com o qual lançava flechas que inoculavam o amor em humanos e deuses. Certo dia, Eros teria adormecido numa caverna, embriagado por Hipno e, sem o saber, suas flechas do amor, espalhadas pelo chão, haviam se misturado com as flechas da morte de Tânatos. As flechas tinham a mesma aparência e, desde então, Eros passou a carregar em sua aljava tanto as flechas do amor quanto os dardos da morte. Esse mito parece ainda mais dramaticamente atual quando se observa os noticiários e as estatísticas envolvendo a violência contra a mulher que, na maior parte das vezes, é praticada justamente por aqueles que, supostamente, deveriam amar e proteger suas companheiras.

Embora o mito, ou sua interpretação freudiana, não tenham se referido às instituições e à ordem social, parece não ser inapropriado entender que o entendimento pode ser estendido às ações humanas na esfera social de uma forma mais ampla. Com efeito, até mesmo o iluminismo foi objeto de interpretações radicais que serviram de base para excessos trágicos como os ocorridos durante a Revolução Francesa, que teve seu início como uma luta contra a opressão, a tirania e o descaso pela ordem pública, mas que acabou presa nas malhas dos excessos revolucionários que atingiram seu ápice no período chamado de “Terror” e que, ao final, produziu uma figura controversa para os objetivos de liberté, egalité et fraternité como Napoleão Bonaparte. Voltaire, um iluminista com profunda preocupação com a tolerância e a moderação também acabou se notabilizando pela expressão “écrasez l’infâme” que serviu para mobilizar ações revolucionárias violentas.

A Revolução Francesa também serve para ilustrar o fato de que mesmo virtudes morais admiradas e desejadas podem transformar-se em excessos capazes de produzir resultados trágicos. Maximilien de Robespierre (1758-1794) foi um estadista conhecido por sua honestidade. Seus amigos o chamavam de “O Incorruptível” e, ironicamente, Robespierre era contra a pena de morte e participava de uma organização intitulada “Sociedade dos Amigos da Constituição”. Apesar de tudo, sua reputação na história da França ficou marcada por sua atuação como líder da Revolução Francesa no período mais sombrio e intolerante, que ficou conhecido como o “Terror”. Os historiadores contam que Robespierre usava a guilhotina para implantar o que ele chamava de “República da Virtude” na qual, “uma justiça rápida, severa e inflexível era, nada mais, do que um produto da virtude ...” Stefan Zweig resume em poucas palavras a figura e o sentido das ações de Robespierre: “Essa rigidez de Robespierre era, ao mesmo tempo, a beleza e a fraqueza de seu caráter. Inebriado por sua própria incorruptibilidade, hipnotizado por sua inflexibilidade dogmática, julga que toda opinião contrária à sua é, não somente de qualidade inferior, mas ainda uma traição e, eis por que com gesto glacial de um inquisidor, ele empurra, como heréticos, todos aqueles que não pensam como ele, para essa fogueira de um novo gênero, que é a guilhotina”. Na realidade, essa descrição é perfeitamente aplicável a todo tirano do passado ou do presente, os quais hoje costumamos chamar de ditador.

Talvez ninguém melhor do que Charles Dickens, com seu talento literário, tenha descrito com tanta maestria as contradições e as dificuldades para se compreender os tempos, as forças e os excessos que moviam as ações de muitas pessoas no ambiente revolucionário da França: “Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; era a idade da sabedoria, era a idade da tolice; era a época da fé, era a época da incredulidade; era a estação das luzes, era a estação das trevas; era a primavera da esperança, era o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós ...”

3 - TEORIA, DOUTRINA E MORAL NAS CIÊNCIAS E NAS RELIGIÕES.

 Em nosso tempo, quando as religiões já perderam muito de sua força para mobilizar as grandes massas, a inclinação para a “menoridade” apontada por Kant se revela na disposição quase irresistível de substituir religiões a serem seguidas por teorias denominadas científicas e transformadas em doutrinas à procura de seguidores. Com efeito, um dos fatos marcantes do século XIX foi o surgimento de ideologias seculares, geralmente associadas à crença de que são respaldadas pela ciência. O liberalismo que, originalmente, sob a inspiração do iluminismo do século XVIII, tinha por preocupação central a defesa da liberdade de agir e de pensar em oposição a tiranias que, de muitas maneiras, constrangiam as liberdades civis e individuais, teve que enfrentar primeiramente as restrições morais, uma vez que toda ideologia constrói sistemas morais para orientar e controlar o comportamento dos indivíduos. Geralmente a intolerância se manifesta na esteira da criação de códigos de conduta e a demanda pela observação estrita desses códigos, os quais vão desde formas de expressão até padrões de comportamento em sociedade tais como a restrição à ingestão de bebida alcoólica, o uso de certos tipos de roupas e a presença em locais considerados impuros ou inadequados. Nesse sentido, a publicação da Fábula das Abelhas – Vícios Privados e Virtudes Públicas em 1714 causou enorme polêmica tendo seu autor – Bernard de Mandeville – sido levado a julgamento por uma corte, acusado de apologia ao vício, ao propor a escandalosa tese de que certos vícios, em certa medida, poderiam ser benéficos às sociedades. Mais tarde, essa hipótese iria ganhar mais amplitude ao encontrar eco entre os pensadores fisiocratas como Quesnay, de Gourmay e Adam Smith, que estruturaram um forte argumento adicional em favor de uma ordem liberal: o fato de que as liberdades eram também fatores de progresso e de prosperidade e que, mesmo a busca bastante egoísta da riqueza pelo empreendedor, gera empregos e prosperidade para a sociedade.

Outras formulações notáveis vindas dos iluministas, que reforçaram o valor da moderação na política, foram as ideias da “paz democrática” e do que ficou conhecido como a “tese do suave comércio”. Em ambos os casos, os pensadores do iluminismo não chegaram a explicitar de forma articulada o que seriam esses conceitos, mas suas reflexões serviram de base para que, mais tarde, servissem de inspiração para que ganhassem uma forma mais estruturada em condições de contribuir para os debates correntes sobre guerra e paz, e sobre a liberdade individual e o progresso das sociedades. O conceito de “paz democrática” na literatura política corrente é atribuído a Michael Doyle que, na década de 1980, escreveu o trabalho Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs no qual retoma as reflexões de Condorcet e, principalmente, de Kant sobre a “paz perpétua” de onde extrai o argumento de que os Estados organizados de forma democrática (que Kant chamava de republicana) não desenvolvem políticas externas agressivas e não guerreiam entre si.

Também na década de 1980, Albert Hirschman em seu livro A Economia como Ciência Moral e Política recupera reflexões de pensadores como Montesquieu, Condorcet e Thomas Paine, e argumenta que o comércio ajuda a desenvolver o espírito de paz e de amizade entre os povos. Outros autores iluministas como David Hume e o próprio Kant também incluíram em seus escritos reflexões sobre a capacidade implícita ao comércio de quebrar barreiras étnicas e de aproximar culturas e povos, no entanto, escreve Hirschman, a exposição mais detalhada da tese do “suave comércio” está numa obra puramente técnica, cuja primeira edição data de 1704:

“O comércio (...) liga os homens entre si por uma utilidade recíproca e silencia neles todas as outras paixões morais e físicas, para dar lugar ao interesse (...). O comércio tem uma característica particular, que o distingue das outras profissões de que se ocupam os homens. Ademais, ele influi tão singularmente nos sentimentos e nas inclinações do homem que, de altivo e orgulhoso que este era, torna-o imediatamente, suave, atento e serviçal. Através do comércio, o homem aprende a refletir, a ter probidade e bons costumes, a ser prudente e reservado em seus propósitos e ações. Sentindo a necessidade de ser sábio e honesto para ter êxito, foge do vício ou, pelo menos, tem um aspecto cheio de decência e gravidade, a fim de não permitir que façam mal juízo de si, os que ele tem interesse em conhecer ...”

Apesar de tudo, como mencionado, o pensamento iluminista também serviu de base para muitos excessos como as que marcaram a Revolução Francesa. A mesma ideia de que os indivíduos deveriam pensar por si mesmos serviria para alimentar as manifestações de ódio aos representantes da ordem estabelecida, fossem eles nobres, prelados e a própria família real.

Um problema adicional é que, nas chamadas ciências humanas e sociais, a distinção entre “teóricos” e “doutrinadores” geralmente não é clara, na mesma medida em que a distinção entre “pesquisadores” e “ativistas” também geralmente é pouco clara. No próprio linguajar não é incomum o emprego dos termos “teoria” e “doutrina” como sinônimos. Na realidade, todo pensador tem como meta convencer seu leitor ou ouvinte de que suas hipóteses, seus pontos de vista, estão corretos ou, ao menos, são melhores e mais plausíveis do que os de seus concorrentes. No íntimo, por mais que declare o contrário, o acadêmico não sente prazer em ler ou ouvir opiniões diferentes das suas. O problema surge quando o pensador, o acadêmico, deliberadamente, quer que seus ouvintes e leitores se tornem seus seguidores e que aqueles que têm visões e opiniões diferentes das suas sejam transformados em incultos, desinformados e, finalmente, em inimigos a serem combatidos, o que é muito difícil de se evitar já que pensar de forma diferente nas ciências humanas, significa na maior parte das vezes, ter também uma visão diferente do que seria um mundo desejável.

No século XIX, a substituição de religiões baseadas em entes sobrenaturais por religiões seculares sem divindades é manifesta em dois casos notáveis: o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) e o materialismo dialético de Karl Marx (1818-1883). Comte levantou a hipótese da existência de uma verdadeira “teoria evolucionista” do conhecimento, na qual a humanidade teria evoluído de um mundo mítico para um mundo em que o conhecimento se tornava “positivo”, isto é, científico. Marx, por sua vez, insistia na natureza científica de sua visão sobre a ordem política e social. Diferentemente dos socialistas utópicos como Proudhon, Marx e Engels não se preocuparam em formular a ideia de uma sociedade idealizada, mas concentraram seus esforços em procurar compreender a dinâmica do capitalismo, estudando as origens e o processo de acumulação de capital e de consolidação do modo de produção capitalista tentando, dessa forma, oferecer uma explicação “científica” para o que entendiam como contradições do capitalismo e seu inevitável colapso.

A história mostra que processos de mudança que impliquem o abandono de padrões e hábitos consolidados não ocorrem de forma linear e raramente sem turbulências. Por exemplo, a construção da tolerância entre católicos e protestantes na Europa levou quase dois séculos de avanços e recuos. Henrique IV publicou o Édito de Nantes em 1598 dando liberdade de culto aos protestantes na França, mas esse édito foi revogado em 1685 por Louis XIV, abrindo espaço para novas perseguições religiosas. As perseguições resultaram em um grande êxodo de huguenotes e de judeus franceses causando grande impacto sobre a economia da nação, uma vez que parte significativa desses franceses, que buscaram refúgio na Inglaterra, na Suíça, nos Países Baixos, nos Estados Alemães, e até em outros continentes, eram comerciantes, empreendedores de manufaturas nascentes e pessoas instruídas e de boa condição social. Além disso, apesar de o Édito de Nantes ter sido um grande passo no sentido da tolerância religiosa, ainda continha restrições em especial aos calvinistas. A adoção da tolerância religiosa, na realidade, não significava abandonar a fé ou professar uma fé apenas pela metade. Significava reservar a fé para os domínios da alma e da consciência e, em consequência, a construção de leis civis que deveriam organizar e governar a convivência entre as pessoas em sociedade sem que tivessem de lutar pela supremacia de sua fé religiosa para conseguir trabalho, ter sua terra para cultivar ou desenvolver seus negócios.

A separação entre as esferas religiosa e civil abriu caminho para que, no século XIX, surgissem ideologias políticas, que podiam assumir características e contornos mais gerais e de base filosófica ampla como o marxismo, o liberalismo, o anarquismo ou os nacionalismos que, como quaisquer outras ideologias, também podiam ser entendidas e vividas de forma moderada ou de forma mais radical. Com efeito, tornou-se um truísmo afirmar que as grandes religiões (e ideologias sociais) ensinam a tolerância, mas fomentam a intolerância. Nos dias de hoje, esse tipo de afirmação tem sido feita com frequência em relação ao islamismo em razão de o terrorismo islâmico estar assolando não apenas as nações onde o islamismo é maioria, mas também as grandes democracias ocidentais que, em virtude da crescente integração internacional, são vistas pelos segmentos radicais como inimigas e como ameaça à própria fé islâmica. A história mostra que os seguidores de doutrinas tendem ao radicalismo e até à distorção, sejam essas doutrinas de base religiosa, política e até econômica. Em fins dos anos 1970, a economista Joan V. Robinson, notável não apenas por suas obras sobre a economia keynesiana, mas também por suas simpatias em relação ao marxismo, iniciara sua palestra proferida na Universidade de Brasília afirmando que o que atrapalhava o marxismo – como doutrina voltada para a ação reformista – eram os marxistas, referindo-se ao fato de que os seguidores do marxismo não apenas exageravam certos aspectos da doutrina, mas frequentemente as distorciam. Após a palestra na Universidade de Brasília a professora Joan Robinson deu uma longa entrevista ao Jornal do Brasil cujo título foi: “Joan Robinson acha que o marxismo é a solução para o capitalismo, só que os marxistas atrapalham”.

Em fins do século XIX e início do século XX vários atentados terroristas foram perpetrados por anarquistas, depois que seu principal líder Piotr Kropotkin passou a divulgar em discursos e em seus escritos a ideia da propaganda de uma causa por meio dos fatos. Entre as vítimas de atentados perpetrados por esses anarquistas estavam o presidente Sadi Carnot, da França (1894), o primeiro-ministro da Espanha, Antonio Cánovas Del Castillo (1897), a imperatriz Sissi, da Áustria (1898), e o presidente dos EUA William McKinley (1901). Além disso, pessoas comuns, classificadas como “efeitos colaterais”, também foram vítimas desses atentados, que eram bem semelhantes aos que hoje ocorrem com o terrorismo islâmico, que ataca lugares públicos sem visar altas autoridades, que hoje estão cercados por fortes sistemas de segurança e proteção pessoal. Entre os ataques com vítimas civis realizados pelo terrorismo anarquista podem ser destacados o atentado à Ópera de Barcelona, em 1893, que fez 72 vítimas, e o ataque às bodas do Rei Afonso XIII que, embora não tenha conseguido o intento de assassinar o monarca, deixou um saldo de 25 mortos.

 Nos fins do século XX, quando o mundo celebrava o fim da guerra fria na crença de que, finalmente, os grandes focos de tensão internacional desapareciam dando lugar a uma era de paz emergiu o terrorismo islâmico. O ataque ao World Trade Center de Nova York, em 11 de setembro de 2001, foi um marco no sentido de que o terrorismo islâmico passaria a ser levado às grandes nações do Ocidente. Seguiram-se depois, os atentados de Londres, Madrid, Paris, Berlin e dezenas de outros ataques a mesquitas e locais públicos em países muçulmanos na Ásia, no Oriente Médio e no norte a África. As ações terroristas jamais tiveram o apoio formal de Estados organizados, assim, não significaram qualquer conquista ou domínio de territórios ou de cidades, servindo apenas para manifestar a rejeição por antigos rivais (sunitas versus xiitas) e por costumes e modos de vida predominantes no Ocidente, considerados ofensivos ao islamismo.

4 - O DIFÍCIL CAMINHO DA MODERAÇÃO.

A interpretação do caminho do meio, da moderação, no entanto, frequentemente pode ser distorcida. Agir com moderação não pode ser entendido como praticar virtudes pela metade. Ou seja, a sabedoria do caminho do meio não consiste em ser apenas parcialmente honesto, justo apenas em certos momentos, ou corajoso somente na medida das conveniências. O entendimento mais apropriado e mais preciso do que falam pensadores como Aristóteles e Francis Bacon parece estar na melhor compreensão da condição humana, que precisa caminhar por sendas pouco claras, por vezes obscuras, e frequentemente povoadas por situações ambíguas e até contraditórias. O fato é que os vícios são muitos e as virtudes não menos numerosas e, na maioria das vezes, sobretudo nas situações mais dramáticas e decisivas, as tentações dos vícios e as demandas por virtudes não se apresentam de forma clara e, pior, não aparecem de forma individualizada. Provavelmente seria bem mais fácil fazer escolhas na vida se, em cada momento e em cada atividade humana, ficasse sempre claro o que seria um comportamento virtuoso e quais vícios deveriam ser evitados. Além disso, enquanto a prática da virtude geralmente implica custos e até sacrifícios no curto prazo, os vícios geralmente se associam a situações de conforto e de bem estar no curto prazo enquanto seus custos e prejuízos só aparecem depois de algum tempo.

No entanto, aparentemente, os próprios fatos da realidade parecem ser atraídos por esse caminho do meio, mas infelizmente, não de forma a restaurar e compensar as perdas sofridas durante os momentos de excessos. Por exemplo, no movimento revolucionário da França, o Terror (também chamado de Revolução Popular) teve início em setembro de 1792, com o massacre de centenas de monarquistas, caracterizou-se por extremo radicalismo político, sendo comandado pelos jacobinos, e sendo a maioria dos seguidores composta de pequenos comerciantes, de profissionais liberais, além de contar com grande participação das camadas mais pobres da população. Em 1794, Robespierre e seu grupo perderam o apoio de grande parte dos jacobinos em função dos atos de extrema violência que vinham adotando. Sem apoio, o grupo foi dominado pelos girondinos e Robespierre foi preso e condenado à execução na guilhotina em 28 de julho de 1794. Terminava assim a fase do Terror da Revolução Francesa. A grande ironia é que Robespierre e os extremistas acabaram derrotados por Joseph Fouché, um homem sem ideologia e, segundo seus biógrafos, sem caráter e de um notável individualismo bastante extremado que lhe permitiram trafegar incólume pelos sucessivos governos comandados por Barras, Collot, Talleyrand e pelo próprio Robespierre, que o manteve em seu posto como Ministro da Polícia. Zweig, que descreveu tão bem Robespierre também resume quem foi Fouché: “O Ministro da Polícia controla os outros ministros, o Diretório, os generais, toda a política. Talleyrand foi obrigado a definir, de novo e com despeito, a posição do ministro da Polícia: "o Ministro da Polícia é um homem que se ocupa de tudo que lhe diz respeito, e também de tudo que não lhe diz respeito’. Era de onde vinha seu poder e sua capacidade de manter-se no poder: o conhecimento e a habilidade de manejar as fraquezas humanas".

Ou seja, os excessos acabaram sendo contidos, de certa forma, pelos seus opostos, no entanto, as muitas vidas perdidas não foram devolvidas e nem a destruição restaurada. O escritor Alexandre Dumas escreveu um conto intitulado Les Tombeaux de Saint-Denis, que narra a destruição dos mausoléus dos grandes reis da França sepultados na Abadia de Saint-Denis por ordem do Comité de Salut Publique, que queria destruir todos os símbolos da monarquia que, por mil anos, havia governado a França. Os restos mortais de reis como São Louis, Henrique IV e Louis XIV foram retirados de seus túmulos e dissolvidos com cal. Não há como restaurar as perdas sofridas em termos de patrimônio histórico e cultural por essa destruição.

John Morrall em seu Ensaio sobre Aristóteles argumenta que, para se compreender o grande filósofo grego, é preciso compreender a Grécia daqueles tempos. De acordo com Morrall, depois de Homero emerge na Grécia o que costumamos chamar de era da razão em substituição à idade heroica. Os tempos heroicos eram marcados por semideuses e por heróis que protagonizavam a luta entre o bem e o mal, entre a luz e as sombras. Depois de Homero, emerge a era da razão e a dicotomia simplificadora das escolhas entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, foi substituída por padrões e por entendimentos muito mais complexos não apenas sobre regras morais, mas sobre a própria existência humana, mostrada simbolicamente nas tragédias dos grandes dramaturgos gregos. Para Morrall a trilogia Orestéia de Ésquilo, que narra o trágico destino de Agamenon e de sua família, ilustra bem essa transformação. De volta da guerra de Tróia, Agamenon é brutalmente assassinado por Clitemnestra, sua esposa, em conluio com o amante Egisto. A Orestes, na condição de filho de Agamenon, cumpre vingar a morte de seu pai, conforme recomendava a tradição e as leis inspiradas por Apolo, no entanto, escreve Morral, “as opiniões simplistas da punição, apresentadas por Hesíodo e Sólon já não se mostravam mais adequadas”. Na peça As Eumênides, a vingança de Orestes é realizada conforme os costumes e as leis, mas não traz a paz de consciência que deveria proporcionar o sentimento do dever cumprido. Ao contrário, as Fúrias passam a atormentar Orestes que, afinal, no cumprimento do dever da vingança, tivera que matar Clitemnestra, sua própria mãe. A incapacidade de uma solução, apenas na esfera humana, que pudesse afastar de Orestes o terrível sentimento de culpa que o atormentava noite e dia, só vai ser possível por meio da intervenção divina. Com efeito, no Tribunal do Areópago, Orestes, mesmo apoiado por Apolo, não consegue mostrar que a justiça está de seu lado e não do lado das Fúrias que o atormentavam impiedosamente. Diante do impasse, somente após a intervenção da deusa Atenas, o Tribunal do Areópago absolve Orestes. No entanto, os tormentos de Orestes somente têm um fim quando Atenas consegue persuadir as Fúrias a aceitar voluntariamente o veredito do Tribunal. A aquiescência é, então, recompensada por uma mudança na própria natureza das Fúrias, que são transformadas em Eumênides, isto é, em deusas bondosas, trazendo de volta a paz à consciência de Orestes e a harmonia à ordem das coisas. Nos mitos formadores da Grécia da razão, da democracia e dos grandes pensadores, os deuses da guerra, da fertilidade, da justiça e do amor viviam em constante conflito e a alma humana geralmente era o principal campo de batalha. Com o advento da Era da Razão, a luta deixa de ser entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. Emerge a consciência de que no mundo real dos homens as disputas mais complicadas ocorrem quando as escolhas devem ser feitas entre dois ou mais bens ou virtudes igualmente desejáveis e corretas. Nesses casos, apenas com a intervenção da sabedoria de uma deusa como Pallas Atenas é possível oferecer uma solução para os dilemas por meio da bondade, do perdão, ou da beleza.

A sabedoria acumulada pelas diferentes culturas ao longo dos séculos identifica fraquezas e vícios a que estão sujeitos os seres humanos. A Bíblia fala em “sete pecados capitais” mas, do mesmo modo e de muitas maneiras, menciona as muitas virtudes que os homens probos deveriam buscar e cultivar: a justiça, a coragem, a honestidade, a generosidade, a piedade, a benevolência, a abnegação, e muitas outras, que frequentemente aparecem como concorrentes. Na sabedoria confuciana, destaca-se, além das virtudes individuais, o respeito aos mais velhos, a prática dos ritos, e o respeito à tradição, pondo em destaque o valor da experiência de vida e o compromisso inevitável do homem sábio e virtuoso com a ordem social e política. O fato é que, em todas as grandes vertentes culturais, desde cedo, aprende-se que, como Salomão, a sabedoria deve presidir as virtudes, mas dificilmente a solução mais sábia aparece de forma cristalina, simples e individualizada.

Com efeito, a grande dificuldade é que nas situações da vida real os seres humanos se veem demandados não por uma determinada virtude, mas por várias virtudes simultaneamente. Da mesma forma, as tentações para cair em vícios podem ser muitas e geralmente se apresentam ocultas sob disfarces e movidas pela ira ou por linguagens melífluas e insidiosas. Especialmente nos momentos mais importantes e mais decisivos, esse fato se revela tragicamente verdadeiro. Para o guerreiro, nos momentos críticos de uma batalha, a coragem é uma virtude essencial, mas isto não impede que em determinados momentos, mesmo o guerreiro mais feroz se veja diante do dilema na escolha entre a coragem e a piedade. Do mesmo modo, na vida civil, um cidadão cumpridor das leis da cidade pode, movido por sentimentos de humanidade, ver-se diante do dilema de fazer escolhas difíceis entre seus deveres civis e a busca da paz e do bem comum, ou da piedade para com os desafortunados.

Além disso, o mundo é uma realidade em constante transformação. As oportunidades e ameaças emergem todo o tempo, na medida em que novas invenções surgem e que os fatos se sucedem introduzindo mudanças nos padrões sociais, econômicos e políticos. Nesse quadro, um dos grandes debates da atualidade refere-se à percepção das incongruências entre os padrões correntes de produção e de consumo e as condições ambientais. Desde que Thomas Malthus, no final do século XVIII, formulou a sombria hipótese de que a atividade econômica estava fadada a não conseguir suprir as necessidades de alimentação de uma população que crescia a um ritmo cada vez maior, o gênio humano pôs-se a trabalhar incansavelmente – consciente ou inconscientemente – para aumentar a produção e a produtividade. Ao longo de um século e meio os resultados revelaram que tais esforços foram extraordinariamente bem sucedidos.

A perspectiva de desequilíbrio entre crescimento da população e produção de alimentos foi completamente afastada, no entanto, o aumento volumétrico da produção, da produtividade, e também da variedade de produtos industriais consumidos pelas populações trouxe novos problemas, impensáveis à época de Malthus. Formaram-se grandes centros urbanos onde a qualidade do ar respirado, a produção de crescentes quantidades de lixo e as dificuldades de movimentação urbana emergiram como verdadeiras pragas para atormentar o modo de vida de milhões de pessoas nas áreas urbanas. Por outro lado, o consumo em massa, também referido como “democratização do consumo”, significou a produção agrícola e industrial em escala maciça que passou a demandar crescentes quantidades de matérias primas, de insumos energéticos, e de terras agricultáveis que levaram a um equilíbrio ambiental precário que, para muitos, já se tornou um verdadeiro desequilíbrio difícil de ser revertido. O fato é que esse trade off entre produção e consumo em relação às condições ambientais trouxe um notável dilema entre objetivos igualmente desejáveis mas concorrentes em muitos aspectos, que têm se constituído em um teste difícil à moderação. De um lado, o desejo de produção e produtividade crescentes, o acesso “democratizado” aos bens de consumo, o crescimento econômico, e a produção a custos decrescentes; de outro lado, a formulação de políticas de redução da poluição de todos os tipos, ações de preservação do patrimônio ambiental, produção de leis para eliminar desperdícios, tudo procurando combinar políticas de melhorias nas condições de trabalho e nos padrões de remuneração. Obviamente, essa lista de dilemas é apenas indicativa das dificuldades e das escolhas difíceis que as sociedades do mundo moderno precisam enfrentar, ou que têm tentado enfrentar da maneira mais equilibrada e sensata possível desde a realização da Primeira Conferência Mundial do Meio Ambiente em Estocolmo, em 1972.

5 - A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E O CONHECIMENTO.

Os problemas de moderação discutidos no presente ensaio apontam para uma dificuldade no sistema de representação política. Como lembrava Kant, sair da “menoridade” significa construir opiniões próprias, o que demanda boa dose de trabalho, que inclui leitura, estudo e reflexão. Em um mundo onde a ciência, por meio da tecnologia, condiciona parte substancial dos mercados de trabalho, das oportunidades de negócios e da própria vida no seu dia-a-dia, governantes, representantes políticos e autoridades em geral, para exercerem suas funções com alguma competência, precisam de uma base mínima de educação e de instrução formal. Ou seja, para o exercício da política a “representatividade” no sentido de serem votados em eleições livres, pode ser uma condição necessária para os políticos, mas está longe de ser uma condição suficiente. Com efeito, a capacidade de interpretar sensata e adequadamente as demandas sociais, econômicas e políticas requer, nos dias de hoje, uma base de formação intelectual que permita compreender minimamente os avanços científicos e tecnológicos em curso. Compreender a ciência não significa tornar-se também um cientista e, muito menos, adotar a ciência como uma “religião” sem o sobrenatural, mas significa ter meios para ver, ouvir e interpretar os desenvolvimentos científicos e os avanços do conhecimento em curso e suas potenciais aplicações na esfera econômica, social e também política.

Um caso notável a respeito desse aspecto da relação entre os avanços dos conhecimentos e sua relação com a sociedade e com o mundo da política, foi a decisão tomada, ainda em 1789, pelo governo dos EUA no sentido de formular políticas de industrialização. George Washington, ao se tornar o primeiro Presidente do país, nomeou Alexander Hamilton seu Secretário do Tesouro, estabelecendo que uma de suas missões deveria ser o de dar suporte à industrialização da nação. Em Dezembro de 1791 Alexander Hamilton entregou ao Presidente seu Report on the Subject of Manufactures no qual explicava a necessidade da industrialização e informava sobre o que havia sido feito sobre a questão, particularmente em termos tarifários para estimular a industrialização da jovem nação. Por sua importância e por suas consequências, esse Report de Hamilton tornou-se uma peça do acervo da história econômica. Trata-se de um fato notável ao menos por duas razões importantes: a primeira razão é que a decisão de estimular a industrialização ocorre em plena época em que vigorava o pensamento fisiocrata, que considerava que toda riqueza vem da terra. Com efeito, para os fisiocratas, a agricultura era a verdadeira e única fonte de riqueza pois, além do fato de que a atividade agrícola proporcionava grandes lucros com poucos investimentos, à época, as manufaturas derivavam basicamente da atividade agrícola pois, em fins do século XVIII, quando se falava em indústria falava-se das manufaturas baseadas na transformação da produção agrícola, tais como laticínios, bebidas, tecidos de fibras naturais, produtos de couro, mobiliário, etc. A segunda razão que torna absolutamente notável a decisão de fomentar a industrialização – mais notável sobretudo em termos políticos – foi o fato de que a maioria dos “Pais Fundadores” era composta por fazendeiros, proprietários de terras, como Thomas Jefferson, James Madison e o próprio George Washington. Diante desses fatos, como explicar a decisão do governo de fomentar a industrialização da jovem nação ao invés de simplesmente favorecer e reforçar a produção agrícola?

Uma explicação plausível parece ser a de que aquela elite política era instruída e culta, isto é, bem versada nos conhecimentos correntes de seu tempo e atenta para os avanços dos conhecimentos e de seus significados para a segurança e para o bem estar da nação. Com efeito, no final do século XVIII, instituições universitárias como Brown, Columbia, Harvard, Princeton e Yale já formavam a elite americana tanto nos negócios quanto na política, permitindo que ficassem atentas aos desenvolvimentos em curso nas sociedades, incluindo-se a crescente importância da atividade manufatureira. Tudo indica que aquela elite política percebia com bastante clareza que a indústria era uma atividade cada vez mais essencial para as questões de segurança e de bem estar das nações e que os EUA não deveriam contentar-se com o desenvolvimento da agricultura. De fato percebiam, por exemplo, que a tecnologia era fator de notável importância não apenas para o poder econômico, mas também para o prestígio da armada e dos exércitos britânicos. Entre os “Pais Fundadores” George Washington era um caso de alguém que não havia tido educação formal naquelas instituições de prestígio crescente, no entanto, teve uma sofisticada educação à moda antiga por meio de preceptores contratados como ainda era costume entre algumas famílias poderosas de seu tempo. Um fato curioso revela a atenção que a geração de políticos dos tempos da Independência dedicavam ao conhecimento. Após 221 anos, a Biblioteca de Nova York registrou a devolução, pelos descendentes de George Washington, de um exemplar da obra The Law of Nations, de autoria de Emer de Vattel, que o primeiro Presidente dos EUA havia tomado emprestado da Biblioteca da Sociedade de Nova York no dia 5 de Outubro de 1789. Na ficha de empréstimo do livro constavam outros nomes de notáveis políticos da época, entre eles John Jay, Aaron Burr, Alexander Hamilton, John Adams, entre outros. No mesmo sentido, pode-se falar também de Benjamin Franklin. Embora não tivesse tido educação formal, seu pai, embora comerciante, tinha em casa uma grande biblioteca revelando o ambiente de apreço pelo conhecimento em que Benjamin Franklin fora educado, o que teria sido de muita ajuda para que se tornasse impressor e editor e, em razão de sua intensa atividade intelectual típica de um “iluminista”, mantivesse correspondência com estudiosos e empreendedores britânicos a ponto de tornar-se membro da Royal Society. Era fluente em francês e seus biógrafos registram que recebeu três exemplares do Le Droit des Gens de Emer de Vattel logo após sua publicação em 1758.

No Brasil, de acordo com as manifestações por meio da imprensa, a percepção corrente, inclusive entre os analistas políticos, entende-se que governantes, parlamentares e demais autoridades devem ser entendidos como representantes de grupos de interesse e, assim, inclusive por terem sido eleitos com recursos desses grupos, entende-se que é bastante natural que usem suas posições para defender os interesses correspondentes às suas origens, isto é, se suas origens estão no sistema financeiro, é natural que favoreçam e usem as instituições e os recursos públicos para favorecer bancos e outros agentes financeiros, se forem fazendeiros, devem favorecer atividades agrícolas, se forem sindicalistas devem defender os interesses de suas corporações sindicais, e assim por diante. No caso dos EUA, a decisão de por em prática uma política de industrialização foi tomada por uma geração de políticos predominantemente composta por proprietários de terras mas, como eram bastante ilustrados e cientes de que, no futuro, a indústria iria ocupar posição chave na ordem econômica e estratégica mundial, o apoio à industrialização emergiu como desdobramento natural e necessário. Talvez esse fato ajude também a entender por que um país como o Brasil, embora generosamente dotado de energia solar pela natureza, não esteja entre as nações líderes na pesquisa, no desenvolvimento e na fabricação de produtos associados à exploração de energia solar. Também pode ajudar a explicar por que o Brasil, sendo um dos países que mais produzem e exportam produtos agrícolas, não seja também um dos maiores produtores e exportadores de fertilizantes, mas, ao contrário, esteja importando mais de 80% de suas necessidades de fertilizantes. Enfim, a ciência e o conhecimento não devem ser vistos como oráculos para dizer aos homens o que fazer, mas sem qualquer dúvida, são os principais referenciais – hoje mais imprescindíveis ainda do que no passado – para qualquer governo sensato e atento às condições de segurança e de bem estar da nação. Além disso, um fato que reforça essa percepção pode ser observado nas características que marcam as grandes universidades americanas que são claramente focadas na ciência e no conhecimento enquanto, no Brasil, o sistema universitário, ao longo do tempo, tem posto seu foco no papel de promovedor do “ensino do terceiro grau”, ou seja, notadamente um fornecedor de diplomas cuja função principal é o de ajudar os jovens a obter um bom emprego, bem seguro e bem remunerado. Pode-se dizer que a história e os fatos correntes mostram que para as nações que têm se destacado na modernidade, o conhecimento e a educação são as únicas atividades que devem ser buscadas e praticadas sem moderação.

Outra questão deste início do século XXI, que tem posto à prova a moderação na política – entendida como uso sensato da razão e do conhecimento científico – tem sido a rapidez crescente dos fluxos de informação que, via de regra, tem sido apresentada como vantagem, mas talvez esse entendimento devesse ser “moderado” com alguma reflexão. É possível que a rapidez da informação de fato represente muitas vantagens indiscutíveis em alguns domínios, como nos negócios ou no socorro que possa ou que deva ser prestado a indivíduos e a comunidades em dificuldades. Apesar de tudo, na política, que é o domínio das versões e das opiniões concorrentes e controvertidas, a sabedoria dos séculos parece apontar para outra direção, para a necessidade de moderação no uso dos recursos de comunicação instantânea. O fato é que, em política, o tempo faz parte do processo decisório. Nem sempre uma resposta imediata pode ser um fator positivo. Na realidade, no mundo da política, parece ser bem mais frequentes as circunstâncias em que “dar um tempo” seja necessário para se construir uma resposta sensata e adequada. Em tempos passados, a precariedade das comunicações, por si só, proporcionava o tempo necessário à reflexão no processo de manifestação pública e de tomada de decisão de governantes e de outras autoridades. Mesmo nessas circunstâncias, havia a figura do “Porta Voz” que, em nome do governo, preparava e emitia declarações, sempre cuidadosas, procurando proteger a autoridade de manifestações inapropriadas, permitindo, inclusive, espaço para que o próprio governante pudesse, em certos casos, reformular a postura ou a posição de seu governo sem grande desgaste. Em uma era de informação e de comunicação em tempo real e de fake news, muitos governos têm sido vítimas de manifestações precipitadas e, por vezes, até de decisões sem a devida cautela. O escritor Franz Kafka deixou algumas frases notáveis, uma delas diz que “Talvez haja apenas um pecado capital: a impaciência. Devido à impaciência, fomos expulsos do Paraíso; devido à impaciência, não podemos retornar.” Kafka se referia às questões humanas de uma forma geral mas, com certeza, a reflexão pode ser perfeitamente aplicada à necessidade de moderação e de sabedoria por parte de governantes. Talvez no caso de políticos, Kafka devesse considerar a combinação da impaciência com a arrogância de que muitos deles são tomados na ânsia de se comunicar com seus presumidos eleitores.

Brasília, Março/2022

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