Estas anotações, cuja primeira versão foi elaborada quando cursei a disciplina “Exegese bíblica”, no Curso de Teologia oferecido no Seminário Conciliar de Bogotá, entre 1965 e 1968, têm como finalidade destacar os aspectos fundamentais da Bíblia, do ângulo literário. As anotações foram ampliadas, posteriormente, nas Notas de Aula que elaborei ao ensejo da disciplina “Literatura Grega, Latina e Hebraica”, que lecionei na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellín, no segundo semestre de 1968.
Considero que essas anotações servem, também, como marco para o estudo dos Santos Padres, cujos escritos referem-se, integralmente, ao recebimento do texto bíblico no seio das primeiras comunidades cristãs, ao longo dos séculos I a IV.
Treze pontos serão desenvolvidos: I – Divisão da literatura hebraica. II – As línguas da Bíblia. III – O país da Bíblia. Marco histórico. IV– Pensamento e linguagem do Antigo Oriente. V – A natureza do homem no pensamento semítico. VI – Interpretação literária da Bíblia e os Gêneros Literários. VII – A Literatura Egípcia. VIII – Literaturas Síria, Fenícia e Palestina. IX – Os Gêneros Literários do Antigo Testamento. X – A evolução dos Gêneros Literários no Antigo Testamento. XI – A Poesia Bíblica. XII – A Música Bíblica. XIII – A evolução dos Gêneros Literários no Novo Testamento.
I – Divisão da Literatura Hebraica.
A Literatura Hebraica (que também é chamada de Literatura Judaica) compreende a produção literária de três épocas diferentes:
A – O tempo compreendido entre a colonização da Palestina pelos hebreus (a partir do ano 1850 AC, que marca a data da chegada de Abrahão) e a ocupação romana pelo general Cneu Pompeu Magno, no ano 80 AC. Essa produção literária foi recolhida pelos judeus na Bíblia, na parte correspondente ao Antigo Testamento.
B – A produção literária do texto bíblico no tempo dos Apóstolos, elaborada por alguns deles e por outros membros destacados da primitiva Igreja (como Marcos e Lucas). Essa produção foi recolhida no Novo Testamento. Os textos que integram esses dois Testamentos recebem o nome genérico de Literatura Bíblica.
C - As manifestações literárias dos descendentes do povo hebreu, na chamada diáspora, após a destruição de Jerusalém pelos Romanos, no ano 70. Essas manifestações literárias são conhecidas com o nome de Literatura Pós-bíblica e compreendem três etapas:
- Desde a dispersão do povo hebreu até o século X, período durante o qual a Literatura Hebraica localizou-se na Espanha.
- Desde o século X até finais do século XV (1492), quando os judeus foram expulsos da Espanha. Essa etapa conhece-se com o nome de Literatura Hispano-Hebraica.
- Desde o século XVI até os nossos dias, ou Etapa Europeia Moderna. Dentro dessa etapa ocupa um posto especial a Literatura Hebraica dos últimos 75 anos, quer dizer, desde que os judeus conseguiram ter um novo território próprio na antiga Palestina, ao ensejo da constituição do Estado de Israel (1948).
II - As línguas da Bíblia.
Essas línguas são constituídas pelas seguintes manifestações:
2.1 – O hebraico. Pertence ao ramo das línguas denominadas de “semíticas”. Constituía um dialeto antigo de origem cananeia, proveniente da região de Ur, na Caldeia. Abrahão e os seus descendentes adotaram esse dialeto, que continuou sendo falado durante a permanência dos hebreus no Egito, entre 1750 e 1225 AC. Essa língua foi sendo aperfeiçoada durante o período em que os hebreus iniciaram a ocupação de Canaã, após a saída do Egito e durante o chamado “período dos Juízes”, ao ensejo da constituição dos Reinos de Judá e Israel (entre 1200 e 931 AC).
A língua hebraica obteve o seu apogeu durante o período do exílio do povo hebreu na Babilônia (séculos 8º e 7º AC). Ao ensejo desse exílio (entre 597 e 528 AC) começou a decadência da língua hebraica, quando os hebreus adotaram o aramaico. A partir de então, o hebraico foi considerado como língua santa da Liturgia.
No período contemporâneo, com a implantação do Estado de Israel, ressurgiu a língua hebraica no seio de uma versão modernizada. Acerca da palavra hebreu, alguns opinam que procede da origem geográfica de Abrahão, identificada pelos cananeus como sendo “do outro lado do rio Eufrates” (=heber, em cananeu).
Foi escrita em hebraico a maior parte dos livros do Antigo Testamento, com exceção de alguns escritos em aramaico ou em grego, que serão assinalados mais adiante. A Bíblia hebraica conservou-se íntegra graças à veneração e ao cuidado dos escribas e dos mestres judeus. Assim, entre os séculos 7º e 9º da nossa era, alguns autores judeus, conhecidos com o nome de Masoretas, fixaram o texto da Bíblia hebraica escrita, ao qual adicionaram uma série de notas marginais ou masoras. O texto dos Masoretas, unido a outros textos antigos, permitiram-nos conhecer a Bíblia hebraica sem nenhuma corrupção. Nos anos cinquenta do século passado, foram encontrados alguns manuscritos ainda muito mais antigos da Bíblia hebraica. Esses manuscritos foram encontrados em Qûmram, perto do Mar Morto e parece que pertenceram a uma curiosa comunidade judaica que ali viveu nos séculos II e I antes da era cristã (os chamados Essênios de Qûmram). Esses escritos foram úteis na pesquisa dos textos hebreus antigos realizada por renomados institutos de estudos bíblicos, principalmente o Pontifício Instituto Bíblico de Roma e a Escola Bíblica de Jerusalém.
2.2 – O aramaico. É outra língua de origem semítica falada pelas tribos do deserto da Síria e da Mesopotâmia. Ao longo do século 8º antes de Cristo, essa língua se estendeu por toda a Ásia, chegando a ser a língua oficial dos diplomatas e comerciantes da época. Os hebreus aprenderam o aramaico na Babilônia, o que foi facilitado pelo fato da sua semelhança com o hebraico. A semelhança entre ambas as línguas era grande, algo assim como a existente hoje entre o espanhol e o italiano. Desde essa época, os judeus usaram o aramaico como língua ordinária e conservaram o hebraico para as funções litúrgicas. Do Antigo Testamento foram escritos em aramaico alguns capítulos do Livro do Profeta Daniel e parte do Livro de Esdras. Do Novo Testamento, parece que foi escrito em aramaico o texto do primitivo Evangelho de São Mateus que não foi conservado.
2.3 – O grego. A partir das conquistas de Alexandre o Grande (336-323 AC), o grego popular, não o clássico, converteu-se na língua comum de grande parte do mundo conhecido. Por se tratar de uma língua comum foi conhecido com o nome de koiné. Essa língua chegou naturalmente à Palestina, apesar da resistência dos judeus mais ortodoxos e nessa língua foram escritas originariamente obras do Antigo Testamento como os Livros da Sabedoria e o II Volume dos Macabeus.
Quando Alexandria, no Egito, fundada em 331 AC, chegou a se converter no grande centro cultural do Mundo Antigo, muitos judeus vieram viver nessa urbe (constando a comunidade judaica de aproximadamente 200 mil pessoas, dentre os 500 mil habitantes da cidade). Tais judeus, como muitos outros que viviam fora da Palestina, começaram a esquecer completamente o hebraico e o aramaico. Alarmados com esse fato, os chefes do judaísmo decidiram fazer uma tradução grega da Bíblia, que constituía o único laço de união na liturgia e no culto judaico. Com essa finalidade, chegaram de Jerusalém e fixaram residência em Alexandria, durante o reinado de Ptolomeu II Filadelfo (no ano de 250 AC), 70 sábios judeus que iniciaram a grande obra de tradução dos textos bíblicos, tarefa que terminou por volta do ano 130 AC. Essa é a famosa Tradução dos 70, muito importante pela sua antiguidade e pela sua fidedignidade. Graças a essa tradução, os judeus de todas as regiões e países puderam ler os Livros Sagrados. Todos os livros do Novo Testamento foram escritos também em grego. O mais antigo, o Evangelho de São Mateus, foi escrito originariamente em aramaico, como já foi salientado, mas logo recebeu uma versão grega, que é a conhecida hodiernamente.
III – O País da Bíblia. Marco histórico.
Esse País é constituído pela Palestina, cuja delimitação obedeceu à ocupação, pelos descendentes de Abrahão e Moisés, do território que antes era ocupado pelos cananeus. O corredor sírio-palestiniano situa-se na parte central da grande área geográfica denominada de “Crescente Fértil”, que se estendia, em forma de lua crescente, entre o Egito e a Mesopotâmia. A bacia do Rio Nilo, no Egito, e a grande planície irrigada, ao leste, pelos rios Tigre e Eufrates, constituíam os acidentes geográficos determinantes dessa vasta e fértil região. Os rios Tigre e Eufrates originavam-se no maciço montanhoso situado, ao norte, no que hoje é a Turquia e a Armênia.
O rio Nilo, a partir da sua fonte mais remota, situada no "Nyungwe National Park" do Ruanda, tem um comprimento de 7.088 km, constituindo o mais longo curso fluvial do Mundo. É formado pela confluência de três outros rios, o Nilo Branco (Bahr-el-Abiad), o Nilo Azul (Bahr-el-Azrak) e o rio Atbara. O Nilo Azul (Bahr-el-Azrak) nasce no lago Tana (Etiópia), confluindo com o Nilo Branco em Cartum, capital do Sudão.
Irrigados por esses três grandes rios, o Tigre, o Eufrates e o Nilo, surgiram os três Impérios que são citados na Bíblia: o Assírio, cuja capital era Nínive (à beira do rio Tigre), o Babilônio, irrigado pelo lendário Eufrates, às cujas margens estava a capital, Babilônia, e o Egípcio, banhado pelo Nilo, que passava em sua longa caminhada rumo ao Mediterrâneo, pelas cidades que foram capitais egípcias ao longo da história milenar: Tebas, Menfis, El Cairo e Alexandria. Sem temor de exagerar, podemos afirmar que as raízes econômicas, militares, políticas, espirituais e culturais desses três poderosos Impérios, alimentaram-se dos mitos inspirados pelos seus três grandes cursos d´água, tornando indelével a influência destes na História humana.
Particularmente significativo é o fato de na Mesopotâmia, por influência fenícia, ter surgido a escrita cuneiforme, cuja característica fundamental consiste em que, em tabuletas de barro cozido, são inscritos traços em forma de cunha, que deram ensejo à escrita cuneiforme, que registrava os sons das palavras e não as imagens dos objetos por elas significados. Esse fato possibilitou o surgimento, na Mesopotâmia, das linguagens alfabéticas, que possibilitaram a comunicação direta do significado das palavras, através das grafias que traduziam os sons dos caracteres. Tal é a remota origem da nossa Civilização Ocidental, originária do universo mesopotâmio, egípcio e grego. A civilização romana surgiria à sombra do latim e da influência perene do grego na consolidação da língua do Lácio, na grande literatura de Hesíodo e de Homero. E a Literatura Bíblica, vertida no hebraico, no aramaico e no grego, tornou-se possível com a preservação das grandes obras de que é portadora, sobre as bases das línguas Súmero Babilônicas com a sua novidade da tradução direta de sons e não de imagens, na escrita cuneiforme.
O milagre da Bíblia foi possível graças, de um lado, à fé do povo hebreu na Palavra de Deus, registrada pelos profetas e religiosamente mantida em textos escritos milênios atrás. Sem a possibilidade de línguas como o hebraico e o grego, que transmitiram os sons registrados em letras, não teria sido possível manter viva a Tradição Bíblica. As origens da nossa civilização cristã ocidental simplesmente desapareceriam no nevoeiro dos séculos, se carecêssemos desses textos escritos que configuraram as chamadas Sagradas Escrituras e as obras de pregadores e teólogos, como os Santos Padres, que as mantiveram vivas ao longo dos séculos.
Consideram os estudiosos que foram os fenícios os primeiros a elaborar um alfabeto que representasse os sons das palavras, tendo sofrido eles influências do longínquo oriente hindu, bem como dos dialetos mesopotâmicos. A representação nas línguas do antigo Egito eram hierográficas, centrando a atenção nas imagens evocadas pelas palavras, mas sem identificar os elementos silábicos constitutivos dos fonemas. Os hieróglifos eram as unidades de significação da língua egípcia, de difícil aprendizado pelo fato de ter de evocar milhares de imagens representativas do mundo superior. Sabemos que a tradução dos hieróglifos obedeceu ao trabalho de pesquisa de um experto em línguas antigas, que foi para o Egito acompanhando Napoleão Bonaparte (1769-1821) nas suas aventuras no Oriente, nos primeiros anos do século XIX, Jean-François Champollion (1790-1832), que literalmente traduziu a Pedra de Roseta, uma estela de granodiorito (pedra muito resistente) cujas inscrições, em grego, se referiam às conquistas de um dos faraós, identificando as imagens sagradas que descreviam as conquistas do soberano egípcio.
Com essa chave, tornou-se possível desvendar o enorme universo das linguagens mesopotâmicas que tinham desaguado na escrita cuneiforme. As descobertas arqueológicas do século XX, especialmente as efetivadas nos anos vinte por arqueólogos ingleses na Biblioteca de Nínive, vieram enriquecer sobremaneira o acesso aos textos das mitologias mesopotâmicas e súmero babilônicas, contribuindo, assim, a uma melhor compreensão do universo mítico babilônio e assírio.
IV – Pensamento e linguagem do Antigo Oriente.
4.1- Maneira de pensar concreta ou plástica. O pensamento não se apresenta, habitualmente em “ideias” nem se formula em conceitos. Embora existam palavras que expressam realidades abstratas como “pureza” ou “santidade”, elas são raras em relação com a grande quantidade de palavras usadas pelas línguas orientais e não possuem o conteúdo exato que lhes é atribuído au traduzi-las. O “conhecer” semítico é uma experiência concreta da existência e poder do ser conhecido. Mais do que um “pensador”, o semita é um ator que se preocupa com os seres com os quais deve agir. A sua mente apreende as coisas por modo de comparação com os dados já adquiridos a partir da observação experimental. Utiliza-se muito a metáfora e todas as formas de comparação.
4.2 – Pensamentos e expressão míticos. Distamos muito de compreender todos os mitos. O mito, ao longo dos séculos, pode ter sido interpretado de diversas maneiras, pode ser vivido em circunstâncias históricas diferentes e se carregar com vários significados. Os mitos são narração de histórias cujos personagens não são unicamente homens, mas também deuses, gênios, monstros, seres supra-humanos. Os mitos se desenvolvem num mundo visível e material, mas abrangem, também, condutas extraordinárias, sobrenaturais. As histórias referidas são terrestres e pertencem, por sua vez, a um universo desconhecido. São histórias que ficam fora do tempo. O mito sai do tempo da história. Está situado além desse tempo, no início, no começo, num princípio antes do qual nada se pode imaginar, porque não existe mais do que a confusão primordial.
Os fatos míticos são, ao mesmo tempo, atuais. Não são fatos históricos fechados e únicos. As histórias míticas intemporais voltam a serem vividas na reaparição dos fenômenos da natureza e do homem: ciclos das estações, cataclismas, guerras, etc. Os mitos determinam a marcha do mundo e a vida dos homens. Não são, primordialmente, explicações ou respostas destinadas a satisfazer o espírito. São, antes de tudo, soluções para viver: dizem aquilo que se deve crer e praticar, com que esperanças se deve contar, a qual necessidade devemo-nos submeter, quais são as obrigações que devemos cumprir.
Os temas que dessa maneira se vivenciam nos mitos são os mais elementares e os mais profundos: mistério do governo do mundo, insegurança face às suas energias latentes, poder assombroso da sexualidade, mistério permanente da fecundidade, comportamentos ou qualidades excepcionais ou enigmáticos de alguns animais, fascinação em face de uma felicidade ideal, enigma terrível da morte, grandeza e força de algumas pessoas, caráter maravilhoso da civilização. Enfrenta-se nos seus aspectos mais assombrosos, o problema das relações entre o homem e o universo, o problema das contradições que o homem experimenta entre o desenvolvimento da sua própria vida e os ritmos cósmicos.
Os mitos seriam incompreensíveis sem o instinto humano de um mistério terrível: dentro de um universo que o contém e o faz viver, mas também o transtorna e ameaça com esmagá-lo, o homem experimenta um sentimento muito vivo de falta de medida da realidade e de perigo contínuo de rompimento. Esse sentimento, composto de estupor e atrativo, de admiração e de pavor, é o sentimento de “o sagrado”, profundamente estudado por Mircea Eliade (1907-1986) nas suas obras intituladas: O Sagrado e o Profano e O Mito do Eterno Retorno.
Os mitos pertencem, essencialmente, à esfera do religioso, são traduzidos com magnificência em ritos litúrgicos nos quais o povo inteiro participa, submergem ao mesmo tempo o homem no mistério e o fazem reviver atualmente o drama eterno. Os mitos possuem um fundo trágico e angustiante. Os mitos não são a história do homem, mas histórias de deuses. Tratava-se de saber como essas divindades rivais, submetidas às piores paixões, ao sofrimento e à morte, davam um jeito para viver num mundo desordenado e que somente era a imagem da desordem superior.
Encontramos, ao longo do Antigo Testamento, inúmeras referências à mentalidade mítica, do ponto de vista, por exemplo, da linguagem concreta que faz referência a figuras arquetípicas. Assim, por exemplo, aparece a definição do que seria Marduk para um babilônio: “Ele tem uma estatura esplêndida. Um olhar cintilante, é varão, organizador desde o princípio. Tem olhos em número de quatro e quatro são as suas orelhas” [Nahum 1, 1-4].
A proteção divina é prometida ao guerreiro nestes termos: “Eu sou Ishtar! Eu caminharei à tua frente e estarei, também, às tuas costas. Não temas nada!” [cf. Isaias, 41, 4; 44, 6; 52, 12; 58, 8].
Achamos no texto bíblico, de outro lado, alusões a mitos súmero-babilônicos. Os textos sagrados fazem referência, por exemplo, ao velho mito de Damuzi ou Tammuz, que morria e voltava à vida anualmente, acompanhando o ritmo das estações nas plantas [cf. Ezequiel, 8,14]. Gilgamesh, de outro lado, é célebre pela busca incessante da “planta da vida” [cf. Génesis 2, 9; 3, 22].
Encontramos, de outro lado, referências a figuras primordiais como Marduk e Tiamat. Esta última divindade é uma espécie de monstro ancestral que representa o “abismo das águas amargas”, ou seja o Oceano hostil. É o Tehon bíblico, que perdeu o seu caráter divino para ser criatura de Deus, temível, no entanto, e somente dominado por Ele [cf. Génesis 1, 2].
Outra alusão recorrente a figuras míticas é, por exemplo, o Leviatã, dragão ou monstro das águas no imaginário popular cujo despertar causará grandes males acompanhados por fenômenos celestes como eclipses de sol [cf. Job 3, 1-9; Salmos 73, 13-14; Isaias, 27, 1; 51, 9].
O Universo é imaginado de acordo ao que o homem apreende dele, dentro do limite das suas observações e em relação com ele próprio, daquele que julga acerca da medida da proporção das coisas (diz-se, por exemplo, que elas são grandes ou pequenas, longínquas ou próximas, duradouras ou caducas, segundo a importância que o homem lhes confere ou em relação às consequências que delas apreende). Os confins do universo são simplesmente o limite das suas descobertas. Tudo é relativo: o senhor de um pequeno reino pode considerar-se a si próprio, e fazer-se passar, como o soberano “de toda a terra” [por exemplo, “toda a terra vem comprar trigo de José”, Génesis 41, 57; Vêm “todos os povos” com “todos os reis da terra” para escutar a sabedoria de Salomão [Reis 5, 14]. Encontramos, aqui, a linguagem hiperbólica tão frequente no Oriente, linguagem cuja relatividade se compreende facilmente.
Não existe curso natural das coisas; existem somente vontades superiores que tudo governam neste mundo e das quais são sinal todas as coisas feitas. Nós falamos de causas segundas: isto não teria sentido para os antigos orientais. Trata-se de uma mentalidade pouco científica. A chuva, a seca, os filhos, as colheitas, os rebanhos foram enviados pela divindade. Os cataclismas, os fenômenos naturais devem-se a ações divinas. A tormenta vem dos deuses, sendo, incluso uma guerra contra os homens. Ela é, pelo menos, uma voz divina, uma teofania frequentemente terrível.
Os deuses dirigem a atividade dos homens. As suas grandes obras, principalmente, são consideradas como devidas a uma especial inspiração do Alto, dirigidas por vontades divinas e socorridas por energias superiores. Assim, as guerras são empreendidas e levadas a feliz término por força de um deus. As cidades e edifícios religiosos não puderam ser construídos sem as ordens explícitas de tal ou qual divindade. De acordo com esta convicção, será narrado como o fundador – rei, herói ou grande personagem – recebeu do Céu o plano completo e a descrição de tal ou qual cidade, de tal ou qual templo, até nos seus mínimos detalhes [cf. Génesis 6, 14-16; Êxodo, 25, 8-9].
A estrutura social se mantém por meio de leis, mediante a legislação oral ou escrita, principalmente, a qual adquire uma nova forma hierática. Não pode proceder de outra fonte que não sejam os deuses, os quais ditaram o seu texto, se não o entregaram já pronto. A literatura, pelo menos a religiosa (e a literatura antiga é religiosa quase integralmente) reconhece a sua procedência de fontes que não são puramente humanas.
V – A natureza do homem no pensamento semítico.
É concebida de acordo às suas manifestações e também de acordo à experiência. O pensamento semítico não conheceu mais do que o homem vivente na unidade do seu ser. A “alma”, aquilo que o “anima”, é a sua vitalidade. Esta se encontra no “sopro” ou no “sangue”, ou bem é o sopro e o sangue mesmo [cf. Gênesis, 7, 22; Salmos, 104, 29-30; Job, 27, 3-5; 34, 14-15; Levítico 17, 11-14; Deuteronômio, 12, 2-3]. Daí surge toda a doutrina religiosa do sangue, o valor das imolações e das aspersões sangrentas.
A morte, corrupção do corpo, aparece como um horror, um castigo, um mistério. Mas não por isso se pensa que a morte é um fim absoluto, mas todo o contrário: o Antigo Oriente tem fé na supervivência, num contexto de realismo que não faz separação entre corpo e espírito, não os separando no que tange ao destino do homem.
Entre o mundo visível e o invisível há uma estreita correspondência. O mundo invisível é pensado à imagem do visível. A religião é entendida dentro dessa correspondência. É necessário render culto externo aos deuses. A correlação entre os dois mundos tem outras consequências práticas: os deuses são poderosos e intervém no mundo visível. As suas iniciativas e ações são imprevisíveis, embora existam alguns sinais delas, que devem ser interpretados. Podemos apreender revelações sobre-humanas e utilizá-las. Esse é o fundamento da adivinhação em todas as suas formas.
Entre as práticas dessa ciência dos presságios podemos mencionar a observação dos astros e o exame das entranhas dos animais, bem como o voo dos pássaros, as figuras desenhadas pelo líquido nas taças [cf. Gênesis 44, 2-6], a utilização da varinha mágica [cf. Êxodo 25, 7; 28, 4-30; Levítico 8, 8], a interpretação dos sonhos, que têm uma importância preponderante e são interpretados como prenúncio da realidade (cf. a história dos sonhos de José e os dos funcionários egípcios e do Faraó [cf. Gênesis 37, 40-41]. Outra consequência da correlação entre os dois mundos é a magia; a adivinhação procura saber, enquanto a magia pretende agir. Baseia-se na convicção de que os deuses são influenciáveis, de alguma forma, pelos homens, de que podem se ver atados por meio de certos procedimentos conhecidos pelos iniciados: determinadas palavras, certos vocábulos que são considerados como eficazes e incluso como infalíveis.
Existe, outrossim, todo um mimetismo da ação: por exemplo, para que chova, verte-se ritualmente água sobre a terra. Para que o terreno seja fecundo, pratica-se sobre esse terreno uma união sexual de caráter sacral (prostituição ritual); para exercer poder sobre uma pessoa, deve-se pronunciar o seu nome, ou escrever num vaso de barro o nome dos inimigos; para fazer mal a uma pessoa, ata-se, bate-se, fere-se a sua efígie em forma de pequena estátua. Essa maneira de “arrastar” os deuses, a natureza ou as forças ocultas – tudo é, afinal, uma “coisa” – esses feitiços e toda essa magia “simpática” não são próprios unicamente do antigo oriente, mas formam parte integrante da sua religião, do seu culto oficial e da sua vida corrente. A Torah proibirá aos israelitas as práticas de adivinhação e de magia [cf. Êxodo 22, 17; Levítico 22, 27; Números 23, 23; Deuteronômio 18, 10-14].
VI – Interpretação literária da Bíblia e os Gêneros Literários.
Não basta, na interpretação de um texto bíblico, atender apenas para o vocabulário das palavras, para a sua morfologia, as suas desinências, a sintaxe (que indique a ordem das palavras), etc. Deve-se atender para uma variável fundamental: toda proposição está inserida numa estrutura mais geral, que permite ao leitor discernir em que esfera se movimenta o pensamento do autor. Ora, essa estrutura de conjunto em que tudo vem se encaixar para adotar um sentido, é o que se denomina de gênero literário. No nosso dia a dia estamos inconscientemente reconhecendo géneros literários, presentes na linguagem daqueles com os que nos comunicamos, seja verbalmente, seja por escrito. É diferente a nossa atitude interpretativa quando lemos um romance ou quando lemos o noticiário de um jornal.
Cada um dos gêneros literários que encontramos num jornal, por exemplo, caso sejam respeitadas as suas estruturas linguísticas, comunica ao leitor uma determinada verdade mas em planos diferentes, um na ordem psicológica, outro na vida social, outro no patamar intelectual.
Os gêneros literários estão na linha da evolução mesma da linguagem. O gênero literário utilizado por um autor tem a sua significação condicionada pelo significado das condições de vida de tal meio e de tal época, pelos problemas que neles se colocam e pelos cânones culturais vigentes. Os gêneros literários não são criações arbitrárias dos autores, mas fenômenos sociais. A sua variedade responde, como um eco, às variedades da vida social e a sua evolução corre paralela aos condicionamentos impostos pela sociedade. Mil contingências históricas intervêm para introduzir matizes na expressão do pensamento humano e para modificar as suas próprias modalidades.
6.1 - Os Gêneros Literários no oriente antigo.
Para estudar a literatura hebraica, ao longo de muitos anos não se dispunha de mais término de comparação do que a literatura grega. Tratava-se, certamente, de um término de comparação bastante deficiente, pois só muito tardiamente, na sua história, Israel teve contato com o mundo grego, quando as suas formas de pensamento estavam já constituídas.
Desde há mais de um século e meio, a descoberta das grandes literaturas do oriente antigo: mesopotâmica, hitita, egípcia e cananeia situou a Bíblia no seu verdadeiro contexto cultural. Efetivamente, ao longo da sua história, Israel entrou em contato com essas diversas correntes de civilização que se entrecruzavam precisamente sobre o território em que se tinha instalado.
Durante toda a primeira metade do segundo milênio, Canaã estava ainda sob a dependência cultural da Mesopotâmia. Escreviam-se cartas em cuneiforme ou se copiavam certos textos épicos como a Epopeia de Gilgamesh. Logo, a partir de 1580 AC, firma-se a preponderância política do Egito; a sua influência cultural vá crescendo e persiste ainda depois do seu retrocesso político (século XII AC). Assim, a literatura de Ugarit (difundida no norte da costa síria), escrita por volta do século XV AC mas produzida muito tempo antes, manifesta uma influência mesopotâmica que não prejudica a sua própria originalidade. Assim, para situar a literatura de Israel é útil saber quais os gêneros literários que foram utilizados na Mesopotâmia, no Egito e em Canaã, sendo este último meio ambiente o mais importante para nós e o menos conhecido.
6.2 – Os Gêneros Literários na Mesopotâmia.
As literaturas suméria e acádia diferem pela língua, mas estão estreitamente interconectadas, devendo a acádia muitos elementos à suméria. Nas literaturas suméria e acádia encontramos os seguintes gêneros literários:
- Documentos da vida corrente: listas, recibos, documentos econômicos e administrativos muito numerosos (censos, etiquetas, etc.).
- Documentos jurídicos: contratos (aluguel, venda, adoção), processos verbais de juízos, coleções de leis.
- Cartas de todo tipo, oficiais e privadas.
- Coleções para uso dos escribas como listas de signos e listas de palavras.
- Textos astrológicos, astronômicos e matemáticos.
- Coleções divinatórias e médicas.
- Rituais para as diferentes categorias de sacerdotes ou magos.
- Lamentações e hinos de caráter lírico, distribuídos em diversas categorias acompanhadas de nomes técnicos.
- Mitos relativos à condição do homem e às suas relações com a divindade. Assim, aparecem o poema da criação (Enuma Elish) estreitamente ligado com um ritual da Epopeia de Gilgamesh, os Mitos de Adapa e Stana.
- Inscrições comemorativas de tal fundação ou de tal gesta do rei. Este gênero, ao se desenvolver, ensejou os Anais, nos quais o rei conta as suas campanhas.
- Listas reais e, às vezes, Crônicas Sincrônicas de Asur e de Babilônia.
- Diálogos ou Reflexões sobre a condição humana, que entram na categoria geral da Literatura de Sabedoria, que está também representada por Fábulas e Provérbios.
De fato, todos esses gêneros não se distinguem tão claramente. Embora vários deles sejam relativos à história, no entanto, não encontramos entre eles a historiografia desinteressada.
VII – A Literatura Egípcia.
Essa Literatura tem os seus quadros próprios que não se identificam com os precedentes, mesmo quando nos vemos obrigados a designá-los com nomes semelhantes. Eis como estão classificados os gêneros egípcios, à luz das pesquisas realizadas por Hermann Kees (1886-1964) e outros egiptólogos alemães.
7.1 – Literatura dos mortos, que se subdivide em:
1. Textos das pirâmides.
2. Textos dos sarcófagos (Império Médio).
3. Livro dos Mortos (Império Novo).
4. Guias para o Além (como, por exemplo, os Livros de Amduat, o Livro das portas, o Livro para passar à eternidade).
7.2 - Ensino Teológico, que consta de:
1. Documentos da Teologia Menfita.
2. Hinos, rituais, mitos e um conjunto de peças religiosas gravadas nos muros dos templos e, finalmente,
3. Textos mágicos.
4. Textos de Sabedoria, constituídos por ensinamentos atribuídos a determinado rei ou vizir; escritos de tendência política; histórias divinas, contos e fábulas.
7.3 - Escritos históricos, que são variados, como por exemplo os Anais que celebram as conquistas dos faraós, as Notícias relativas a determinado acontecimento de um Reinado, como a sagração de um templo, ou as Biografias ou Autobiografias, que obedecem a determinados procedimentos ou convenções.
7.4 Textos de poesia amorosa.
7.5 Sátiras (que têm por objeto atacar um escriba indouto ou determinados ofícios).
7.6 Géneros científicos (textos astronômicos e matemáticos, literatura médica, repertórios e listas de palavras mágicas).
VIII - Literaturas Síria, Fenícia e Palestina.
A documentação relativa a estas literaturas é muito menos abundante e apresenta afinidades notáveis com as literaturas anteriormente mencionadas. Fora de Ras Samra (Ugarit) conhecem-se quase exclusivamente inscrições (em línguas fenícia e aramaica), inscrições sepulcrais, dedicatórias ou triunfais; estas últimas tendem ao gênero histórico quando contam em detalhe as façanhas do rei (Mesa de Moab, Zakir de Hamat, Kilamuva, Paamu de Sam’al, Azzitavadda rei dos danunianos). Temos, no entanto, o texto (mutilado) de um tratado (Mati’ilu de Appad com certo Gar-ga-ya) e duas cartas políticas (o óstrakon de Asur e o papiro de Saqqara).
Ugarit forneceu, no entanto, maior número de documentos:
- Uma grande epopeia mitológica, provavelmente dividida em vários ciclos: Baal e Anat.
- O Livreto de um ritual (ainda muito obscuro), relativo a um mito cosmogónico (o nascimento dos “deuses graciosos”) e outro documento religioso semelhante intitulado: “Para o matrimônio de Nikkal e o Deus-Luna”, provavelmente traduzido do hurrita.
- Duas epopeias legendárias, a primeira mais próxima da mitologia (Aq hat) e a segunda, contendo algumas tradições históricas (Keret).
- Listas de divindades e de sacrifícios que devem ser oferecidos.
- Cartas, documentos diplomáticos e administrativos, inventário e inclusive o fragmento de um tratado hipiátrico.
Tudo isso é suficiente para se formar uma ideia dos cânones literários em uso nos pequenos reinos vizinhos de Israel, embora esse conjunto de documentos seja pequeno em face da literatura mesopotâmica, egípcia e hitita (descoberta na chamada Asia Menor, hoje Turquia).
IX – Os Gêneros Literários do Antigo Testamento.
Segundo o exegeta norueguês Aage Bentzen (1894-1953) na sua obra intitulada: Introduction to the Old Testament – The Forms of Old Testament Litterature [Cambridge Rare Books UK, 1958] é necessário distinguir na Bíblia, primeiro, entre tradição oral e literatura escrita. Este problema de transição entre ambos os tipos de literatura é discutível, pois se ignora a partir de que momento da sua história os textos bíblicos (sobretudo os mais antigos) foram consignados por escrito. Sabe-se, efetivamente, que em muitas civilizações antigas as epopeias e os textos religiosos (hinos, rituais) transmitiram-se durante muito tempo de forma oral. O caso clássico é o dos Vedas da India, cujas partes mais antigas podem remontar até aos finais do segundo milênio AC, enquanto a sua fixação por escrito não se acusa parcialmente senão no século XI da era cristã.
Da mesma forma, estima-se que as epopeias míticas de Ugarit, transcritas por volta do século XV AC, podem se remontar aos começos do II milênio. O sul de Canaã, invadido por Israel, conhecia a escrita desde muito tempo atrás e pode-se admitir que a história se desenvolveu ali num clima de civilização escrita, mas só até certo ponto. Durante longos séculos prevaleceu, no entanto, a tradição oral.
Seria um erro separar completamente formas orais e formas escritas; as segundas nascem das primeiras por uma transição insensível. Numa palavra, uma narração completamente estereotipada na tradição oral não difere, em nada, no concernente à forma, de um documento escrito. Mas é justo distinguir, por outra parte, as formas elementares muito simples das obras compostas que recolhem materiais de formas diversas, tanto em poesia como em prosa.
9.1- As formas poéticas elementares. Bentzen cita como pertencentes a esta categoria os seguintes escritos bíblicos:
9.1.1 Os cantos dos trabalhadores que com frequência propendem ao encantamento, com a finalidade de fazer avançar e prosperar o trabalho [Nehemias 4,4; Números 21, 17].
9.1.2 As sátiras e as coplas exaltando a bebida [Isaias 47; Isaias 22, 13].
9.1.3- Os cantos de amor, tão populares no Egito [Isaias 23, 16].
9.1.4 Os cantos de funerais [2Samuel 1,17; 3, 33]. Cfr. As imitações irônicas de Isaías [cf. Isaias 14, e seguintes] e de Ezequiel [cf. Ezequiel 27, 32].
9.1.5 Os cantos de guerra [1Samuel 17,7] que podem propender à encantação [2Reis 13,17].
9.1.6 Os dizeres maternos [Génesis 4,1; 21, 7; 33, 31].
9.1.7 As “bênçãos paternas” [Génesis 9, 26-27; 27, 28-29; 39-40; 49], misturadas com maldições paralelas [Génesis 9, 25]. Em relação a essas formas poéticas elementares é necessário levar em consideração os seguintes pontos: De um lado, a Bíblia só conservou raríssimos vestígios dos gêneros que se podem denominar de profanos; é necessário observar que a guerra pertencia à esfera do sagrado, assim como as cerimônias nupciais, cuja forma, se não o próprio fundo, deve-se relacionar com o Cântico dos Cânticos.
9.1.8 De outro lado, as peças que pertencem a esses gêneros são amiúde muito curtas; quando se desenvolvem (sobretudo nos cantos de bodas e de cerimônias fúnebres), fazem pensar já nos Salmos. Primitivamente, estes últimos pertencem, essencialmente, ao lirismo cultural: hinos para glorificar a divindade, ações de graças depois de um triunfo, lamentações a raíz de uma derrota ou de uma catástrofe. Praticamente, no entanto, acontece mais de uma vez, nesses casos, que os gêneros se misturam (como convém, por exemplo, nas liturgias complexas) e, sobretudo, que o gênero sálmico se imita fora do marco litúrgico. Deixadas de lado essas limitações, observa-se, geralmente, uma relação constante entre os gêneros e o seu marco: toda uma fraseologia convencional impõe-se numa circunstância dada e vai se reproduzindo, sem grandes mudanças, de um século para outro.
9.2 - A Literatura de Sabedoria compreende gêneros populares e gêneros doutos que conservam um profundo parentesco. O seu núcleo inicial é o Provérbio Popular, que nasce da observação de uma situação ou de um caráter [1Samuel 10,12]. Logo se elabora em forma de sentencia; mas essa é uma forma de arte cuidadosamente burilada, cujo selo distintivo é o paralelismo em que palavras e frases se correspondem de dois em dois [Provérbios 10, 5]. Esse gênero fundamental conhece amplificações mais complexas: o enigma [Juízes 14, 12] a parábola [2Samuel 12, 1-4; Isaias 28, 23-29], a fábula [Juízes 9, 7-15] o diálogo que trata de um problema da vida [Job], a alegoria [Provérbios, 9].
9.3 - No que tange aos Géneros Sacerdotais e Proféticos, é difícil distinguir formalmente entre estes gêneros, pois embora gozem em Israel de uma floração abundante e variada, teriam se desenvolvido, segundo S. Mowinckell, partindo de formas fixadas no profetismo cultual. Desde a sua origem, eles adotam uma estrutura rítmica [cf. Gênesis 25, 23, Juízes 13, 3-5] e adquirem certa amplitude nas promessas feitas aos patriarcas.
Do lado sacerdotal, aparecem mais os oráculos proferidos nos santuários, as “torot” (Leis), assim como os juramentos de purificação, as bênçãos e até as soluções jurídicas. De outro lado, os oráculos proféticos se desenvolvem em forma de promessas, ameaças e admoestações, mas então abandonam o ritmo da poesia para assumir a forma de prosa. A mesma coisa se pode dizer dos sermões sacerdotais. Os oráculos de ameaças e de promessas subdividem-se, também, em categorias diversas, menos segundo a sua forma do que de acordo ao seu objeto, mas aos seus diferentes objetos correspondem com frequência convenções literárias bastante fixas. Podemos mencionar principalmente os “oráculos contra as nações” e os oráculos escatológicos.
Naturalmente, os profetas podem recorrer a todos os outros gêneros não especificamente proféticos (lamentações, hinos, parábolas, etc.), assim como os gêneros proféticos podem-se imitar em contextos muito diferentes. Numa palavra, não é rara a mistura dos gêneros.
Já no que tange à prosa, podem-se destacar os seguintes pontos:
9.4 – Formas pouco elaboradas literariamente, mas que vão se estabilizando cada vez mais, de idade em idade. Assim, encontramos as seguintes manifestações: contratos [Jeremias 32], convênios e tratados [1 Macabeus 8, 22-32], listas genealógicas, listas de funcionários [1 Reis 4], cartas [Números 20, 24-19; Jeremias 29], inventários e planos arquitetônicos [1 Reis, 6-7], orações em prosa [1Reis 8] que são mais estruturadas e ainda próximas ao ritmo poético, discursos que podem ser políticos, religiosos [especialmente nos Profetas e no Deuteronômio] e sapienciais [Provérbios 5; Tobias 4].–
9.5 - Leis, que devem ser repartidas em diversos gêneros, em razão da diferente redação dos seus artigos, como a Torah (à qual os críticos se inclinam para lhe atribuir origem religiosa), a Mispat (o costume) que é o princípio fundamental dos juízos, a mishwah (consistente no mandamento que pressupõe um ato de autoridade), a hôq (em que alguns críticos vêm uma ideia de determinação e figuração, e que nas suas origens poderia ter sido algo como um ordenamento gravado, os dabâr (ou palavras que compreendem sentenças divinas, casos jurídicos ou exortações sapienciais).
9.6- As narrativas. Bentzen estima que é difícil a classificação dos diversos tipos de relatos. De entrada, seria um erro fazer a classificação segundo a credibilidade. Falar em lendas, contos ou histórias, equivaleria a adotar uma terminologia muito afastada do ponto de vista dos autores antigos, sem compreender nem as suas condições de vida e de pensamento, nem os fins que perseguiam. Nesse sentido, a designação exata dos gêneros narrativos é uma das empresas mais árduas da crítica moderna.
De outro lado, os etnólogos vão atribuindo conteúdos novos a palavras antigas que em outro tempo eram pejorativas. Entre os primitivos, a lenda é praticamente a principal forma do que entre nós se chama de história (o reservatório das recordações). O mito não é tanto uma condição fictícia da imaginação humana, quanto uma expressão em imagens, frequentemente dramatizada, de ideias ricas e profundas sobre a condição humana. Seria, ao mesmo tempo, “Sabedoria” e “Metafísica”. Num sentido um tanto diferente, Mircea Eliade escreveu páginas interessantes sobre a “verdade do mito”. Nesse sentido, mito e lenda constituem, frequentemente, nas antigas civilizações, “o relato sagrado” recitado no santuário, ao ensejo de uma festa religiosa .
No entanto, na linguagem corrente, as palavras mito, lenda e conto possuem um matiz pejorativo, porquanto parecem negar toda relação entre os fatos narrados e a realidade histórica e religiosa. Assim, vale mais evitar o seu emprego a propósito da Bíblia, para não introduzir nenhum equívoco na crítica literária. No entanto, deve-se levar em consideração o sentido técnico que tendem a adotar atualmente, quando se encontram na pena de alguns exegetas. Trata-se de uma terminologia que está a caminho da fixação. Enquanto não se define de maneira firme, podemos nos ater a designações mais gerais: relatos, narrativas, tendo presente que os mesmos traços formais podem se encontrar em composições de ordem muito diferente, como episódios históricos, relatos didáticos ou narrativas de tipo misto.
No terreno das narrativas, devemos ter em conta duas classes: os relatos de milagres e as narrativas etiológicas. Quanto aos relatos de milagres, é necessário evitar a inclusão de todos esses relatos num único gênero literário.
Quanto aos relatos de milagres, Deve-se evitar incluir todos esses relatos num único gênero literário. O crítico não deve ter nenhum juízo preconcebido acerca da realidade histórica ou o caráter fictício de uma narrativa que contenha um relato dessa índole. Pode pertencer a esferas muito diversas. A finalidade perseguida pelo autor pode consistir em sublinhar, com um episódio maravilhoso, o caráter sobrenatural de um ensino ou de uma lei, no decorrer de um relato essencialmente didático (como no caso do episódio de Jonas). Em outros casos, pode se tratar de um episódio histórico relatado como tal. Ainda nesse caso, resulta difícil o exercício da crítica literária. De um lado, o aspecto sobrenatural do fato não exclui os seus outros componentes naturais, físicos ou sociológicos; de outro lado, o narrador pode recorrer à ênfase, à hipérbole, ou ao maravilhoso poético, para fazer sentir aos leitores o caráter prestigioso do acontecimento, como acontece nos relatos épicos. Numa palavra, o estudo dos textos exige uma atenção constante face a todos os elementos que nele entram em jogo.
As narrativas etiológicas possuem, sempre, alguma conexão com a geografia, a história ou a sociologia. Referem-se a lugares, costumes, a modos de vida, cuja origem, valor ou caráter somente tratam de explicar. Assim o fazem em relação aos santuários antigos dos que lembram, por exemplo, a fundação [Gênesis 12, 8] ou explicam o nome [Gênesis 28, 11-19]. Outros têm por objeto um personagem antigo (com frequência, o antepassado de uma tribo) ou o herói cuja lembrança se conserva. A sua relação com a história não é sempre a que nos imaginaríamos na primeira leitura: Gênesis 18, 3, por exemplo estabelece uma relação entre Abrahão e o lugar santo de Mambré, mas isso não implica que todos os detalhes da ceia religiosa oferecida aos misteriosos visitantes acontecesse dessa forma, pois alguns dos seus traços se encontram na “lenda” ugarítica de Danel; o elemento histórico do relato não é necessariamente o traço mais importante. Outros relatos têm ainda por objeto recordar as relações de direito existentes entre as tribos e os povos, por exemplo, o tratado entre Laban e Jacó [Gênesis 31, 45] fixa os limites dos direitos de pastoreio reconhecidos na Transjordânia aos “filhos de Jacó” e aos arameus, enquanto a “genealogia dos povos” [Gênesis 10] ensaia uma síntese historiográfica que não deve se considerar exatamente como um certificado oficial. Os relatos etiológicos são uma mina de informações, mas a sua interpretação é, geralmente, delineada e devem ser calculados todos os elementos para apreender exatamente o seu alcance.
9.7 – Pequenos quadros narrativos. Compreendem introdução, apresentação dos personagens, diálogo ou drama e conclusão. Cada cena deste gênero tem a sua natureza e o seu ritmo. Ainda quando se reúnem várias cenas para formar um conjunto, pode-se reconhecer em cada uma delas uma unidade literária distinta que se pode tratar aparte. Assim, na história de José, o episódio da mulher de Putifar [cf. Gênesis 39, 1-23].
Os quadros são de quatro tipos: moral (por exemplo, a cena anterior); épico (a passagem do Mar Vermelho, culminância do combate entre Yahvé contra Egito); histórico (campanha de Gedeão contra Sebá e Salmunná); novelle – de influência egípcia, relativa a tal acontecimento importante da vida de um herói (José, Ruth), ou de um rei (Salomão no lugar do alto de Gabão [I Reis, 3].
9.8 - Obras complexas. Estas, mediante um trabalho de síntese, reuniram composições elementares. As características delas são duas: em primeiro lugar, associam-se umas com outras mediante um fio condutor e ensejam um relato seguido; é o que acontece em algumas sequências do Pentateuco na história da sucessão de Davi [2 Samuel, 9; I Reis, 2]. Em segundo lugar, cada síntese desse tipo possui o seu próprio gênero literário, os seus procedimentos de composição, a sua maneira de utilizar os documentos ou as tradições (que individualmente conservam a sua natureza original) e, finalmente, os seus problemas.
X- A evolução dos Gêneros Literários no Antigo Testamento.
10.1 – Época do Classicismo Israelita. As obras tendem a se agrupar em correntes bastante diferenciadas: a legislativa, as obras históricas, as coleções proféticas, o lirismo religioso, os livros de sabedoria. Mas, na prática, essas correntes se misturam: por exemplo, tal relato, incorporado a um livro histórico, tem por objeto justificar um costume ou um rito [cf. Êxodo 12, 21-28]; tal outro dá uma interpretação teológica dos fatos, que o coloca como formando parte da literatura profética [cf. Jueces 2]; tal outro se aproxima do ensino dos sábios [cf. livro de José]. Com o correr do tempo, vai-se modificando a interpretação respectiva dos gêneros e surgem novas modalidades de escrita.
É necessário anotar, em particular, a aparição do midrash, ou seja, da reflexão religiosa sobre as tradições antigas e sobre as Escrituras já constituídas. Este midrash tem por objeto, umas vezes, deduzir da Escritura um testemunho das vontades divinas, regras de conduta (o qual no judaísmo receberá o nome de halaka). Outras vezes, o midrash busca edificar os sentimentos do leitor; a finalidade dessa variante chama-se de haggada. Pode-se, também dar apoio a uma interpretação teológica (com essa finalidade o cronista, por exemplo, reproduz alguns relatos dos Reis. Pode-se buscar, também, interpretar oráculos proféticos ou explicar o sentido dos acontecimentos contemporâneos, ou mencionar o desenlace futuro (peser): [assim, por exemplo, Daniel 9 é uma reinterpretação de Jeremias 25, 11-12]. Na sua expressão literária, o midrash oferece a maior variedade: desde a história temática [Crônicas] até o relato didático [Tobias]. O essencial em cada caso é, pois, esclarecer qual é o tipo de ensino que o escritor quer inculcar, em decorrência do fato de que, em formas exteriores idênticas, podem estar presentes pontos de vista bem diversos.
10.2 – Épocas persa e grega. A história evolui em direção a formas mais afins com as concepções helenísticas [como, por exemplo, na historiografia clássica de I Macabeus, ou na história patética de II Macabeus]. O ensino da sabedoria expressa-se, cada vez mais, no marco da haggada [cf. Tobias; Daniel 1-6] e absorbe o que em outro tempo era o discurso profético. O oráculo escatológico dá origem ao apocalipse, onde a revelação dos segredos divinos toma essencialmente a forma de sonhos e visões enigmáticas, cuja explicação aflora no texto [assim, por exemplo, em Daniel 2 e Daniel 7-9]. Esse novo gênero tem as suas próprias convenções, o seu material simbólico é amiúde repetido e o seu clima característico é tenso, misterioso e às vezes estranho.
10.3 – No judaísmo da baixa época. Nessa variante recorre-se, frequentemente, ao procedimento da pseudoepígrafe, colocando obras recentes ao abrigo de autores antigos mortos há muito tempo. É o que acontece em mais de uma obra sapiencial, colocada de maneira fictícia sob o patrocínio de Salomão, iniciador da Literatura Sapiencial; [tal é o caso dos Provérbios, do Eclesiastes, do Cântico dos Cânticos e da Sabedoria]. No gênero apocalíptico deste período, o epígrafe é corrente nos numerosos apócrifos que gravitam em torno a Henoc, Moisés, Esdras, Baruch, Daniel e o Baruch canónico. Vê-se florescer o gênero dos testamentos apócrifos em haggadas de tipo sapiencial, nos testamentos dos XII Patriarcas e, na Bíblia mesma, (na versão do códice Sinaíticus, na primeira pessoa do singular). Numa palavra: a história dos gêneros literários, no Antigo Testamento, é ainda mais complexa do que nas nossas literaturas modernas.
XI – A Poesia Bíblica.
Para evitar equívocos é necessário distinguir entre poesia propriamente dita, procedimentos poéticos e prosódia.
A poesia propriamente dita não se pode reduzir a fórmulas, porque transcende as línguas e as civilizações. É uma questão de estética acerca da qual só podemos nos remeter aos tratados gerais. Tudo quanto se pode dizer é que tem por objeto criar uma espécie de música verbal composta, ao mesmo tempo, pelas sonoridades auditivas e as evocações afetivas.
11.1 - No que tange aos procedimentos poéticos, eles são fáceis de analisar. Entre os orientais, reduzem-se, principalmente, ao uso do paralelismo.
Distinguem-se três casos de paralelismo: em primeiro lugar, o sinônimo, que é a simples repetição da mesma ideia de forma diferente, como no seguinte versículo “coloca-me a prova, ô Yahvé, e examina-me / Purifica as minhas entranhas e o meu coração” [Salmo 26, 2].
A repetição, às vezes, ocorre de forma negativa, como no seguinte versículo: “Deste-lhe quanto o seu coração desejava / Não negaste os desejos dos seus lábios” [Salmo 21, 3].
Em segundo lugar, o paralelismo antitético abarca a correspondência parcial entre dois termos para sublinhar uma oposição ou um contraste, como nos seguintes versículos: “Yahvé conhece o caminho dos justos / Mas a senda dos malvados acaba mal” [Salmos 1, 6].
Em terceiro lugar, ocorre o paralelismo sintético, que é mais difícil de caracterizar. Revela-se tanto no fundo quanto na forma. É o efeito produzido por um período de dois ou três membros, todos paralelos e que não estão compreendidos nas outras duas formas: “A Lei de Yahvé é perfeita, restaura a alma; o testemunho de Yahvé é verídico, torna sábio ao rude; os preceitos de Yahvé são retos, alegram o coração; os mandatos de Yahvé são limpos, iluminam os olhos” [cf. Salmo 18, 8-9] o primeiro dos quais anuncia e espera o seguinte.
Como se pode observar, ao paralelismo sintético (por hemistíquios), superpõe-se um paralelismo sinônimo (por versos). Como também se pode observar no último exemplo, o paralelismo pode ser de três termos, de quatro ou de mais.
Além do paralelismo são conhecidos outros procedimentos, que às vezes têm por objeto sublinhar aliterações, rimas, etc. Mas o seu uso não parece estar submetido a regras precisas.
Finalmente, observa-se o procedimento alfabético, utilizado sobretudo, embora não exclusivamente, nas peças didáticas, onde parece ter uma finalidade mnemotécnica [cf. Salmo 9, 10; 119. Cf. Provérbios 31, 10 e seguintes].
11.2 - A Prosódia hebraica. Hoje ninguém pretende reduzir a prosódia hebraica ao uso de pés (combinação de sílabas longas e breves), à maneira dos gregos e latinos, nem descobrir nela versos compostos de um número fixo de sílabas, como em castelhano. Segundo o parecer quase unânime dos estudiosos, na poesia hebraica só se leva em consideração o número de sílabas acentuadas, sendo indeterminado o número das sílabas átonas.
Levando em consideração a lei do paralelismo, o verso compõe-se geralmente de dois hemistíquios (às vezes de três esticos) que se correspondem e que, em princípio comportam o mesmo número de acentos. Assim resultam versos de 2 + 2, 3 + 3 ou de 4 + 4 acentos. Mas, com frequência, observa-se certa fantasia na disposição e sucessão dos acentos. Há também de se notar o ritmo (muito preciso) da qînâ (elegia ou lamento) dissimétrica, ou seja, de versos compostos de dois esticos desiguais, ou seja, 3 = 2 ou 4 = 3 acentos [cf. Salmos 25, 27]. Com bastante frequência observam-se estrofes, ou seja, agrupações de versos que se repetem com certa regularidade, como em Salmos 5 (estrofes de dois versos). Essas estrofes vão marcadas às vezes pela utilização de um estribilho [como em Salmos 42, 6-12; 43, 5) ou do procedimento alfabético (Salmos 9, 10; 119]. Entre as estrofes observam-se, às vezes, paralelismos (daí a noção de antístrofe). Mas no uso de todos esses procedimentos há alguma vacilação que não se deve, sempre, à má conservação dos textos. A fantasia é a lei de todas as poesias vivas e o primeiro dever do crítico no estudo dos textos é submeter-se aos fatos [cf. Dhorme, La poésie biblique].
XII - A Música Bíblica.
Os Salmos se cantavam geralmente com acompanhamento musical. Estamos bastante mal informados sobre a música israelita, como também acerca dela em quase todos os povos antigos. No entanto, as coincidências da arqueologia e da etnologia vão, aos poucos, nos ajudando a descobrir as condições de execução da música nas suas diversas formas. E. Gerson-Kiwi, em Musique dans la Bible, faz uma classificação dos instrumentos musicais dos israelitas:
- Instrumentos “sacerdotais”: o corno e as trombetas.
- Instrumentos “levíticos”: a lira, o nebel (harpa o alaúde), o ashor (harpa de dez cordas).
- Instrumentos profanos: diversas variedades de flautas (ugab, halil, abub).
Quanto às melodias utilizadas, é difícil afirmar algo consistente, no estado atual das pesquisas.
XIII – A evolução dos Gêneros Literários no Novo Testamento.
O Novo Testamento expressa-se também em gêneros literários diversos. Pode-se fazer a distinção entre gêneros literários elementares (palavras de Cristo e dos Apóstolos, resumos de catequese, hinos, por exemplo) e sínteses (como os Fatos dos Apóstolos).
Os problemas são novos no que tange aos gêneros elementares, que estão profundamente enraizados na tradição oral cristã, e em relação também às sínteses (que supõem uma reflexão de conjunto e que finalmente são obras pensadas e compostas por autores que obedecem às leis das composições escritas).
Encontramos, também, as Epístolas (que se caracterizam pelo seu conteúdo doutrinário, com variações, quanto à forma, que mudam de um autor para outro. (Santiago, por exemplo, aproxima-se mais dos gêneros judeus de sabedoria, enquanto Paulo recorre a elementos da diatribe helenística).
13.1 – Formas que se referem aos diversos elementos da Tradição Sinóptica. Os exegetas partidários da Teoria das Formas (Formgeschithtemethode) trataram de relacioná-los, mais do que com a vida de Jesus, com as necessidades da comunidade cristã primitiva (como a pregação missionária, a instrução catequética, a apologética, a problemática da disciplina interna da comunidade). Embora a classificação dos materiais dos Sinópticos segundo os diferentes gêneros literários resulte frequentemente muito difícil, deve-se preservar algo do ensinado por exegetas como Albertz, Dibelius e Bultmann [cf. Rudolf Bultmann, Die Geschichte der Synoptischen Tradition, Gottingen, 1931].
Em relação à interpretação das palavras de Jesus, a tarefa é relativamente fácil, pois se trata de formas literárias que já eram comuns no mundo judeu como as sentenças sapienciais, os discursos proféticos, as leis, as parábolas misturadas frequentemente com traços alegorizantes. As classificações de Bultmann e de Albertz podem sem dúvida serem aceitas nos seus traços gerais.
É interessante observar que as diversas tradições literárias do Antigo Testamento prolongam-se na pregação de Jesús, quando por exemplo fala na qualidade de legislador que corrige e enriquece a Torah, ou quando se expressa como sábio que coroa os ensinamentos da sabedoria judaica, ou ainda quando se manifesta como profeta que critica os pecados do seu tempo, retomando os antigos anúncios do juízo e do Reino, interpretando-os dentro de uma perspectiva nova e sem ter de recorrer, quando se apresenta a oportunidade, ao estilo dos apocalipses. Certamente serão praticados esses gêneros literários na Igreja primitiva. Mas não há a menor razão para negar a Jesus o uso de algum deles. As suas Leis e os seus Ensinamentos se esclarecem quando são colocados no marco do judaísmo da Palestina daquela época. Igualmente, as parábolas possuem os seus elementos correlatos, não nas regras formuladas no mundo helenístico, mas nos cânones do Mashal rabínico.
Não obstante o afirmado anteriormente, mais árdua resulta, no entanto, a interpretação dos relatos evangélicos. Pode-se dar por sentado, de início, que os diferentes modos de pregação e as necessidades da liturgia jogaram um papel importante na elaboração das lembranças apostólicas, que ensejaram as narrativas evangélicas. Assim, muitos relatos breves puderam servir para ilustrar a pregação, a apologética ou a polêmica.
Uma vez admitido esse princípio, no entanto pode-se esclarecer o problema da sua redação literária, determinando quais eram as formas que estavam em uso no meio no qual tomaram corpo. Sem pretender negar toda a influência do meio greco romano na formação das perícopas nascidas nas comunidades cristãs de língua grega, é mais indicado, contudo, buscar correspondências no interior do judaísmo. Basta, por exemplo, pensar nas formas narrativas que se desenvolveram no comentário sinagogal das Escrituras. Por si mesmas se apresentavam ao Cristianismo nascente para verter nelas o seu anúncio do Evangelho, assim como a liturgia judaica fornecia padrões acabados, fácilmente adaptáveis à oração cristã. No entanto, não se deve levar longe demais as analogias, pois, definitivamente, o que a Igreja Apostólica devia fixar assim era, principalmente, um testemunho sobre fatos essenciais à fé, e não simplesmente um material de importância relativamente secundária, destinado a ilustrar as Escrituras. A originalidade do conteúdo não podia menos que influir inclusive nas formas em que se comunicava ao público.
13.2 – As sínteses dos Evangelhos. Em relação aos Sinópticos, as sínteses que os traduzem pertencem a um gênero literário muito especial. Não se parecem apenas com as biografias no sentido moderno da palavra. Não estão destinadas essas sínteses a satisfazer a curiosidade dos fiéis, ao mesmo tempo que os edificam espiritualmente (esse é, geralmente, o caso dos Evangelhos Apócrifos), mas são dirigidas a alimentar a sua fé. Por essa razão, se servindo de materiais tomados da tradição apostólica, concretizam os diversos aspectos da predicação evangélica: anúncio da salvação, instrução aos fiéis, oferecimento de bases da liturgia cristã. Isso explica a sua pobreza não só de dados cronológicos, topográficos e geográficos (fala-se, com frequência, da montanha, do deserto, do mar, sem nenhuma precisão), mas também se faz referência a dados psicológicos, seja que se trate de Jesús, dos seus adversários, dos seus discípulos e do círculo estreito dos doze (somente Pedro constitui, até certo ponto, uma exceção).
Em resumo, trata-se de catequese com um mínimo de elaboração literária em Marcos, algumas intenções historiográficas em Lucas ( que em alguns capítulos da infância imita conscientemente o estilo de certas páginas bíblicas), uma intenção apologética bastante visível em Mateus (cujos capítulos paralelos parecem brotar de um comentário sinagogal das Escrituras, efetivado numa perspectiva cristã).
13.3 - O Quarto Evangelho. Assim como os Sinópticos, depende em certa medida da predicação cristã primitiva; mas, apesar da sua maior riqueza de dados cronológicos e topográficos, é ainda menos que os três primeiros uma biografia de Jesús. Vale a pena destacar dois pontos que caracterizam o Evangelho de São João.
Em primeiro lugar, os relatos se apresentam amiúde numa forma literária mais elaborada que em outros Evangelistas. Não são já simples croquis populares, mas outros tantos pequenos dramas construídos por um autor muito consciente dos seus fins didáticos. Por isso estão construídos com uma arte consumada e o significado que lhes dá o Evangelista se depreende pouco a pouco dos traços particulares que escolheu para este objeto.
Em segundo lugar, quanto ao estilo dos discursos, é essencialmente um estilo de revelação que responde muito bem ao seu intento. Jesús manifesta neles a essência da sua pessoa e da sua missão. Esta linguagem especial ensejou muitos estudos. Buscou-se o seu protótipo no helenismo ou nas religiões orientais. Não há por que excluir toda influência deste tipo: havendo querido mostrar que Jesús dá o verdadeiro conhecimento do mistério divino, o Evangelista pôde recorrer a um estilo emparentado com o estilo “mistérico” conhecido pelos destinatários da obra. No entanto, a maneira joanina tem antecedentes em algumas passagens dos Sinópticos, especialmente o lógon joânico [Mateus 11, 25-30] e, finalmente, apesar da sua profunda originalidade, não carece de relações com várias correntes literárias próprias do Antigo Testamento e do Judaísmo: o gênero apocalíptico, enquanto revelação de segredos divinos e, sobretudo, as grandes explanações relativas à Sabedoria divina [Provérbios 8 e Eclesiástico 24].
13.4 - Os Atos dos Apóstolos.
Este livro tem mais afinidade com o gênero histórico clássico. Contudo, deve-se reconhecer que apresenta ainda grande variedade de modalidades segundo as suas diversas partes. Os 15 primeiros capítulos lembram a maneira da composição dos Sinópticos. Neles apresenta Lucas um mosaico de episódios de todas classes destinados a pôr de relevo uma ideia fundamental: a progressão do Evangelho.
As formas mesmas desses episódios lembram amiúde as formas das narrações evangélicas (por exemplo, os relatos de milagres); mas neles se encontram também materiais que mostram a variedade dos gêneros em uso na Igreja apostólica: croquis de discursos, fragmentos de hinos, de orações litúrgicas, de confissões da fé. O estilo semítico de vários dos relatos sugeriu a alguns exegetas que os quinze primeiros capítulos poderiam ter explorado uma fonte aramaica notavelmente antiga.
Na segunda parte do livro [Atos, capítulos 16-28] o relato toma uma feição muito diferente. Nela, a mentalidade helenística deixa adivinhar a influência dos seus cânones literários, principalmente nas passagens tomadas do “diário de viagem” do narrador (por exemplo, no relato do naufrágio). Precedido de um prólogo de forma clássica, o conjunto do livro faz pensar também em obras dos historiadores gregos; mas não se deve exagerar esta comparação, que deixa intacta a questão das fontes utilizadas pelo autor.
13.5 – A Literatura Epistolar.
Vejamos, primeiro, o gênero epistolar no meio helenístico. As cartas privadas, como as que preservaram numerosos papiros, eram, na maioria dos casos, redigidas pelo autor mesmo da carta. Isso acontecia com a correspondência secreta de grandes personagens (Pompeu, César). Mas não era sempre fácil, a uma pessoa muito ocupada, entreter-se em escrever cartas. Assim, na maioria das vezes recorria-se a um secretário ao qual era ditada a missiva. Isso significava, para o secretário, um trabalho avassalador. Para evitar as falhas, ditava-se habitualmente não frase por frase e nem sequer palavra por palavra, mas sílaba por sílaba. O ditado assim praticado teria sido impraticável, se aquele que o ditava não se tivesse entregado, ao mesmo tempo a outras ocupações, como, por exemplo, ditava enquanto comia, ou caminhando.
Mas as personagens importantes que tinham muito o que escrever, recorriam ainda a outra solução: contentavam-se com comunicar oralmente ou por escrito as grandes linhas do seu pensamento, deixando ao secretário o cuidado de desenvolver o texto. Com isso, corriam o risco de ver reproduzido infielmente o seu pensamento. No entanto, é um fato que se utilizava esse método, sobretudo pelos personagens de certo rango. Naturalmente, coloca-se a questão de se certas cartas do Novo Testamento não se comporiam conforme a este método. Entre as numerosas cartas presentes no Antigo Testamento – têm se conservado ao redor de 4.500 – elas têm um preâmbulo completo, de estrutura constante, composto por três elementos: a intitulatio que menciona o nome do remetente; a adscriptio ou direção interior que designa o nome do destinatário; a salutatio ou fórmula de saudação.
Em relação às cartas presentes no Novo Testamento, duas podem ser consideradas como anteriores às Epístolas de São Paulo e contêm o preâmbulo clássico e os três elementos: “intitulatio”, “adscriptio” e “salutatio”: a Carta da Assembleia de Jerusalém [Atos dos Apóstolos 15, 23-30] e a Carta de Santiago [Santiago 1-5]. São Paulo também conservou o “preâmbulo”, mas modificando-o profundamente. Desenvolve consideravelmente a “intitulatio”, pois tem o propósito de inculcar a autoridade que lhe confere a sua condição apostólica. Paulo, efetivamente, escreve às comunidades, não como um homem ordinário, mas como Apóstolo delegado por Deus. Da mesma forma, Paulo transforma a “adscriptio”, dirigindo-se não a homens ordinários, mas a cristãos que formam parte do mundo novo inaugurado por Cristo. Destaca os verdadeiros títulos de nobreza dos seus destinatários, centrados no seu caráter cristão.
De outro lado, há uma análoga transformação no que tange à saudação: não aparece já o trivial “alegra-te” dos gregos (Xaire), que corresponde ao nosso “bom dia”, mas “graça” (xáris”) y “paz” seguida imediatamente da indicação da fonte desses bens messiânicos: “graça e paz de parte de Deus e do Senhor Jesus-Cristo”. Assim, o simples estudo do preâmbulo das cartas paulinas manifesta a novidade prodigiosa introduzida no mundo pelo cristianismo. Deissmann opõe a carta, escrito ocasional sem caracteres literários e não destinada à publicidade, de um lado, e, de outro, a Epístola que trata de temas gerais com pretensões literárias e destinada a um grupo mais ou menos numeroso de particulares.
Mas, de fato, não há oposição absoluta entre carta e epístola e, com frequência, ocorre o caso de que uma carta se assemelhe a uma epístola. No entanto, é exato afirmar que retomando às vezes um mesmo tema em forma mais elaborada, Paulo buscou transformar em epístola quilo que, em princípio, tinha mais a espontaneidade de uma carta. Isso acontece, assim, na Carta aos Romanos, que desenvolve a Carta aos Gálatas. Da mesma forma devia proceder com certos temas de pregação, confiados à palavra viva antes de ficarem fixados pela escrita.
As outras Cartas do Novo Testamento têm formas variadas. A Carta aos Hebreus constitui um verdadeiro tratado de teologia, intimamente ligado com uma exortação de tipo homilético. As duas Cartas de Pedro e a Carta de Judas fazem pensar, ao mesmo tempo, em homilias e encíclicas. A Carta de Santiago privada de toda referência pessoal e de qualquer detalhe circunstanciado e feita por um autor cristão, enche o texto de reminiscências do Antigo Testamento, mais do que qualquer outro trecho do Novo Testamento, sobretudo de reminiscências sapienciais e poderia ser uma amostra homilética judaica das sinagogas. Começando sem nome de autor e sem saudação pessoal, mas não desprovida de traços pessoais ao longo do desenvolvimento dos temas, a primeira carta de João parece representar um gênero misto, sendo, ao mesmo tempo, carta e tratado doutrinário. Quanto às outras duas cartas joaninas, são verdadeiras cartas, bem curtas. Finalmente, as “Cartas às sete Igrejas” reúnem o gênero epistolar e o gênero apocalíptico.
13.6 – O Gênero Apocalíptico.
Este gênero apresenta, no Novo Testamento, três manifestações: em primeiro lugar, fragmentos inseridos nos contextos mais diversos: palavras apocalípticas dos Sinópticos (sobretudo a grande coleção reunida no “discurso escatológico”, independentemente de que se admita ou não a sua unidade original); em segundo lugar, fragmentos recolhidos nos Atos dos Apóstolos (visão de Estêvão, visão de Pedro antes da visita a Cornélio); em terceiro lugar, passagens ocasionais das Cartas Paulinas (principalmente I Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses e I Coríntios).
O Apocalipse de São João é o escrito neotestamentário em que o gênero apocalíptico se apresenta em estado quase puro. Utiliza todos os procedimentos literários desenvolvidos na literatura não canônica judaica e cristã: símbolos fantásticos, constante intervenção dos anjos, exposição do pensamento doutrinário sob a forma de visões simbólicas, intercomunicação diuturna das coisas do céu e da terra.
Além do mais, o Apocalipse se inspira abundantemente na antiga profecia do final dos tempos, numa concepção muito particular da história, onde os acontecimentos de cá embaixo aparecem, até certo ponto, como predeterminados por Deus no Céu. No entanto, o livro está assinado e se dirige aos contemporâneos do autor, sem que nele se invoque nenhum herói da mais remota antiguidade (Henoc, Esdras, etc.). No Apocalipse, os oráculos escatológicos do Antigo Testamento adquirem um sentido definitivo, no qual a perspectiva histórica da Igreja tende à “consumação das coisas”. Nada de especulações cosmológicas, como as que se encontram em Henoc. Nada de pesquisas fantásticas acerca da data em que “acontecerão estas coisas”. Destaca-se, ante tudo, uma mensagem de ânimo e de esperança: Cristo imolado, entronizado no Céu pela sua ressurreição, garante à sua Igreja o triunfo no tempo, em que pese as perseguições que a assaltam. De uma forma estranha, desconcertante para nós, mas não para os seus contemporâneos, a obra ergue-se como um tratado teológico de escatologia cristã, esboçado nesse livro misterioso.
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