
O Dinossauro – Uma pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas [São Paulo: Queiroz, 1988]
José Osvaldo de Meira Penna nasceu no Rio de Janeiro em 1917 e faleceu em Brasília, em 2017, após completar cem anos de idade. Concluiu o Curso de Direito na Universidade do Rio de Janeiro, em 1939. Ingressou por concurso na carreira diplomática em 1938, tendo permanecido nela durante mais de quarenta anos, até sua aposentadoria, ocorrida em 1981. Cursou estudos complementares na Universidade de Columbia (New York), no Instituto Jung de Psicologia (Zurich) e na Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro).
Os primeiros anos de sua vida diplomática foram vividos em Calcutá, Xangai, Ankara e Nandjing. Quando da sua primeira permanência na China foi surpreendido pela guerra (1942) e assistiu posteriormente ao colapso do regime nacionalista chinês. Desempenhou funções diplomáticas também em Costa Rica, no Canadá, na Missão Brasileira junto às Nações Unidas e na Nigéria. Foi Secretário-Geral Adjunto do Ministério das Relações Exteriores para a Europa Oriental e a Ásia, e embaixador em Israel, no período compreendido entre 1967 e 1970. Ocupou também o cargo de Assessor do Ministro da Educação e Cultura. Desempenhou as funções de embaixador na Noruega, no Equador e na Polônia, cargo com o qual encerrou a sua carreira diplomática. Depois de aposentado, Meira Penna ingressou no magistério, como professor vinculado ao Departamento de Relações Internacionais e Ciência Política da Universidade de Brasília. Presidiu, também, o Instituto Liberal de Brasília e foi membro ativo da Sociedade Mont Pélérin.
Meira Penna foi um dos mais importantes e polêmicos ensaístas brasileiros. Os seus livros, ensaios e artigos cobriram ampla gama de assuntos. A sua produção intelectual pode ser aglutinada ao redor de três grandes centros de interesse: a história, a filosofia (notadamente a dedicada à reflexão sobre a política e a ética pública) e a sociologia. No campo da história, sobressaem as seguintes obras: Shangai [1944], O sonho de Sarumoto [1948] e Quando mudam as capitais [1958]. No terreno da filosofia, pode-se mencionar vários títulos como, por exemplo, Elogio do burro [1963], O Evangelho segundo Marx [1982], Opção preferencial pela riqueza [1991], Decência já [1992], O espírito das Revoluções [1997] e A Ideologia do século XX [1985]. No campo sociológico, as suas obras mais representativas foram: Política externa: Segurança & Desenvolvimento [1967], Psicologia do subdesenvolvimento [1972], Em berço esplêndido [1974], O Brasil na idade da razão [1980], O Dinossauro [1988] e Utopia brasileira [1988].
O autor adotou a defesa do ponto de vista neoliberal, seguindo a tradição da Escola Austríaca de Friedrich Hayek (1899-1992) e Ludwig von Mises (1881-1973). Participou ativamente do debate acerca da problemática do estatismo, defendendo a tese do "estado mínimo" e da máxima liberdade para a iniciativa privada e o mercado. Com a finalidade de analisar criticamente a realidade do Estado patrimonial brasileiro do ângulo neoliberal, o autor escreveu vários artigos e ensaios em revistas especializadas, que foram compilados na sua obra intitulada: O Dinossauro – Uma pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas [São Paulo: Queiroz, 1988], que constitui uma das mais importantes contribuições à análise crítica das relações de poder na sociedade brasileira.
A análise de Meira Penna acerca do Estado patrimonial inspirou-se, basicamente, na crítica de Alexis de Tocqueville (1805-1859) ao centralismo francês. Não podia ser outra a fonte de inspiração do nosso autor na sua crítica ao patrimonialismo, levando em consideração que o seu livro O Dinossauro constituía, no sentir dele, "(...) a minha primeira contribuição para a Coleção do pensamento neoliberal ou liberal-conservador, que a Sociedade Tocqueville pretende editar". Lembremos que a mencionada Sociedade tinha sido criada em 1986, sob a inspiração de Meira Penna, por alguns intelectuais (entre os quais eu próprio me encontrava) do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, Florianópolis, Porto Alegre e Santa Maria, com o propósito, como frisava a Carta de Princípios e Programa de Atuação [1986], de "contribuir, pelo seu exemplo, no sentido de que as diversas correntes em que se divide a opinião nacional sejam levadas a explicitar corretamente os princípios em que se louvam”.
A crítica de Meira Penna ao Estado patrimonial inseriu-se, portanto, nessa finalidade mais ampla (encampada pela Sociedade Tocqueville), de contribuir para o ingresso do Brasil na idade da razão. Segundo o nosso pensador, a sua primeira crítica ao Estado patrimonial data de 1972. A sua convicção viu-se reforçada pela débacle do estatismo na Europa e nos Estados Unidos, ao longo dos anos 80. "Universalmente, - frisava a respeito Meira Penna - o público descobriu, como uma revelação súbita, que a culpa dos nossos males atuais cabe ao Estado forte e açambarcador, ao Estado burocrático repressivo" [O Dinossauro, São Paulo: Queiroz, 1988: p. 9].
Em que consiste a essência do Patrimonialismo? Meira Penna considerava que foi Max Weber (1864-1920) quem melhor a definiu. A respeito, nosso autor frisa: "Nesse sistema, poderes particulares e as vantagens econômicas correspondentes são apropriadas, isto é, tornam-se propriedade particular do Chefe”. Weber discute com certo pormenor a maneira como se processa essa apropriação. “Vemos, no caso do Brasil – escreve Meira Penna - que a descrição se enquadra com bastante exatidão no que ocorre em nosso regime clientelista (...)" [Meira Penna, O Dinossauro, 1988: p.142].
Analisarei a crítica do nosso autor ao Estado patrimonial, em seis itens: 1) Patrimonialismo, o mal latino. 2) Patrimonialismo e familismo clientelista. 3) Patrimonialismo e formalismo cartorial. 4) Patrimonialismo e estatismo burocrático. 5) Patrimonialismo e mercantilismo. 6) Patrimonialismo e corrupção.
1 - Patrimonialismo, o mal latino.
Para Meira Penna, o vício do Patrimonialismo não é apenas caraterística culturológica que acompanhou a formação do Estado no Brasil. É herança, também, dos povos latinos. Franceses, italianos, espanhóis, portugueses e latino-americanos em geral, consolidaram as suas instituições políticas de forma patrimonialista.
A figura centralizadora e omnipresente de Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), o todo-poderoso Ministro da Economia de Luís XIV (1638-1715) é, no contexto francês, o exemplo do superbarnabé que faria as delícias do cartorialismo lusitano rejuvenescido sob o Marquês de Pombal (1699-1782). A respeito desse arquétipo e dos nefastos efeitos da sua ação cartorial sobre a França, escreve Meira Penna: "(...) Colbert é uma espécie de primeiro modelo do superburocrata, (...) que tudo regulamentava, disciplinava, obstruía, ordenava, coibia com suas famosas Ordonnances. (...). A iniciativa privada era a priori suspeita” [Meira Penna, O Dinossauro, 1988: p. 229].
2 - Patrimonialismo e familismo clientelista.
Para Meira Penna, as sociedades estruturadas de forma patrimonialista são, antes de mais nada, organizações não puramente racionais, mas portadoras de uma racionalidade afetiva. O nosso autor alicerça em Max Weber e Carl Gustav Jung (1875-1961) essa sua apreciação, destacando, de um lado, o distanciamento das organizações patrimoniais em relação ao puro modelo racional-legal weberiano, mas identificando nelas, ao mesmo tempo, uma modalidade especial de legitimação, alicerçada no sentimento [Meira Penna, O Dinossauro, 1988: pp. 149-150]. O nosso autor define a sociedade legitimada pela racionalidade afetiva como Coisa Nossa ou Patota.
3 - Patrimonialismo e formalismo cartorial.
Alheia à racionalidade weberiana, a burocracia tupiniquim terminou se fossilizando num vácuo formalismo cartorial, que tudo paralisa e que inferniza a vida do cidadão comum. Se o monstro patrimonial é bonzinho com os seus, com o resto é autêntico ogre. O Estado Patrimonial, como aliás destacou acertadamente o Prêmio Nobel de Literatura, o mexicano Octavio Paz (1914-1998), é um ogre filantrópico [Paz, El Ogro Filantrópico, Barcelona: Seix Barral, 1983], ou como se diz nestes tempos de máfias burocráticas, um ogre pilantrópico. Para Meira Penna, "O Brasil é o país das certidões, dos documentos carimbados com firma reconhecida, dos processos tão pesados e lentamente elaborados quanto o Antigo Testamento, das filas intermináveis no suplício medieval dos guichets (...)” [Meira Penna, O Dinossauro, 1988: pp. 164-165].
4 - Patrimonialismo e estatismo burocrático.
Eis a fotografia de corpo inteiro do Leviatã brasileiro: "Monstro antediluviano, foi a burocracia brasileira erguida como instituição patrimonial com seus castelos, cercados de bastiões, fossos e pontes-levadiças. Neles habitam os grandes barões do Estado cartorial, a aristocracia soberba dos altos funcionários, duques e marqueses com sua enorme clientela de gordas escriturárias e magricelas serventes famintos, que suplementam o salário-mínimo com gorjetas e comissões" [Meira Penna, O Dinossauro, 1988: p. 188].
5 - Mercantilismo e patrimonialismo.
Como se financia o Dinossauro Patrimonialista? Certamente não mediante o empreendimento capitalista teorizado por Adam Smith (1723-1790) na sua clássica obra A Riqueza das Nações. O Patrimonialismo afina-se com uma concepção mercantilista das relações econômicas, que parte do pressuposto de que a riqueza já está feita e que o problema reside em como se apropriar dela, ou como realizar, segundo dizia Karl Marx (1818-1883), a "acumulação primitiva". A concepção macroeconômica de Adam Smith, segundo a qual a riqueza não precisa ser roubada de ninguém, porquanto pode ser produzida mediante o trabalho, arrepia o lombo do rebanho burocrático, que sente calafrios quando lhe mencionam a palavra tarefa ou produtividade.
6 - Patrimonialismo e corrupção.
A soma dos fatores mercantilismo mais familismo produz um resultado concreto: a corrupção. Esta não é outra coisa do que a apropriação, pelos particulares, dos bens públicos, como se se tratasse de bens privados. Ora, essa é a essência do Patrimonialismo que constitui, portanto, uma fonte inesgotável de corrupção. Mensalão, Petrolão, Furo do teto de gastos e quejandos, estão aí para dar testemunho da florescência do Patrimonialismo no Brasil e alhures.