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A GUERRA RUSSIA - UCRÂNIA NA CORDA BAMBA DA GLOBALIZAÇÃO

A GUERRA RUSSIA - UCRÂNIA NA CORDA BAMBA DA GLOBALIZAÇÃO

IMAGEM DA GUERRA: A PROFESSORA JÚLIA E AS SUAS COLEGAS SE ARMAM PARA DEFENDER A UCRÂNIA DA INVASÃO RUSSA (Foto: Lynsey Addario - The New York Times).

No final da tarde da terça-feira 8 de março, teve lugar a Live "Altos Papos" sob a coordenação do Dr.  Antônio Roberto Batista. O tema foi: "A guerra da Rússia contra a Ucrânia". A seguir, divulgo o texto da minha intervenção. Intervieram, também, outros membros do grupo, entre os quais o Professor e Pesquisador em Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Eiiti Sato.

A guerra de Vladimir Putin contra a Ucrânia deve ser compreendida sobre o pano de fundo milenar do Estado patrimonial russo, cuja característica sempre foi a de ser uma máquina de guerra mais forte do que a sociedade. Deve ser levado em consideração também o ângulo da globalização, que é o clima em que tudo se movimenta neste complicado mundo das redes via net, com a memória artificial que gera algoritmos novos e os seus universos paralelos.

O Império Czarista, ao longo dos três séculos de duração da Dinastia Románov, se revelou como uma grande força expansionista. O jornalista e historiador britânico Simon Sebag Montefiore (1965-), no seu livro intitulado: Os Románov - 1613-1918, escreve: "Era difícil ser Czar. A Rússia não é um país fácil de governar. Vinte soberanos da dinastia dos Románov reinaram por 304 anos, de 1613 até a derrubada do regime czarista pela Revolução de 1917. Sua ascensão começou no reinado de Ivan, o Terrível (1530-1584), e terminou na época de Raspútin (1869-1916). (...). Estima-se que o Império Russo aumentou cerca de 140 quilômetros por dia depois que os Románov chegaram ao trono, em 1613, ou mais de 520 mil quilômetros quadrados por ano. No final do século XIX, eles governavam um sexto da superfície da Terra - e continuavam em expansão. A construção de impérios estava no sangue dos Románov" [ob. cit., p. 19].

A Rússia, segundo Antônio Paim (1927-2021), que estudou na Universidade Lomonósov de Moscou, recebeu uma dupla herança do denominado "despotismo asiático": a proveniente de Bizâncio e a decorrente da dominação mongólica. Disso resulta uma circunstância que, em geral, se perde de vista: a concentração do poder total em mãos da burocracia czarista. Paralelamente a isto, os processos modernizadores que foram iluminando o universo político a partir do século XVIII, receberam impulso dos Czares, os quais, à maneira em se processou a modernização de Portugal na segunda metade do século XVIII sob o Marquês de Pombal (1699-1782), conceberam um Estado despótico e modernizador à luz da ciência.

Esse foi o modelo pensado por Pedro o Grande (1682-1725) e realizado pelos seus sucessores, notadamente a Imperatriz Anna Ivanovna (1693-1740), que se louvou da colaboração de um médico judeu português que morava em Paris, Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), para concretizar o processo modernizador com a criação do Colégio dos Nobres de São Petersburgo, a fim de educar a antiga nobreza no culto à ciência aplicada, conferindo títulos nobiliárquicos a uma nova geração desligada da aristocracia feudal, mediante a concessão de cargos “tschin” aos servidores fiéis do Czar. Nascia a nova nobreza nomeada pelos soberanos de Moscou, de forma semelhante a como Dom José I de Portugal (1714-1777) e o seu primeiro-ministro Marquês de Pombal formataram a nobreza de funcionários públicos em substituição à antiga aristocracia.

Em três obras da sua lavra, Antônio Paim registrou esse processo, que ele e Simon Schwartzman (1939-) denominaram de “neo patrimonialismo” ou “patrimonialismo modernizador”: A querela do estatismo (1978), Marxismo e descendência (2009) e O Patrimonialismo brasileiro em foco (2015). O termo “neo Patrimonialismo” foi sugerido por Schwartzman na sua obra: Bases do autoritarismo brasileiro (1982).

Os bolcheviques derrubaram o czarismo e o substituíram por um regime totalitário. Implantaram a "ditadura do proletariado", a fim de estabelecer o regime que redimiria todos das injustiças: o comunismo. Mas, o que de fato ocorreu foi a implantação, pelos revolucionários, sob a liderança de Lenin (1870-1924) e Trotski (1879-1940), da ditadura do aparelho revolucionário sobre os proletários russos e sobre o resto da antiga sociedade czarista. Esse primeiro passo foi reforçado pela longa e sanguinolenta ditadura stalinista.

Karl Marx (1818-1883), inspirador dos bolcheviques, não acreditava na implantação do socialismo pela via democrática das eleições e dos partidos ligados aos sindicatos. Enquanto nos países da Europa Ocidental apareciam formas variadas de social-democracia e a maior contribuição, nesse terreno, era dada, na Alemanha, por Eduard Bernstein (1850-1932), firmava-se, na União Soviética, uma forma de totalitarismo e se consolidava, como frisou o ativista iugoslavo Milovan Djilas (1911-1995), o domínio totalitário de uma "nova classe", a dos burocratas do partido comunista, ao redor dos seus líderes.

Com a queda do Império Soviético em 1991, os líderes comunistas, donos do poder, foram substituídos por outros dirigentes mais esclarecidos, da têmpera de Michail Gorbatchov (1931-), de tendência social-democrática, embora nos seus começos fosse um dedicado funcionário comunista. A Rússia pós Gorbatchov, depois da queda do Muro de Berlim em 1989, contou com funcionários influenciados por ideias liberais no terreno econômico como Yegor Timurovich Gaidar (1956-2009), autor da famosa “terapia de choque”, de inspiração liberal, posta em marcha no governo de Boris Yeltsin (1931-2007). Recordemos que Gaidar foi primeiro-ministro russo entre junho e dezembro de 1992.

Putin é, hoje, o representante da oligarquia modernizadora que ocupou o lugar da velha e inoperante burocracia soviética. Ele conhece em profundidade a máquina do Estado russo, a partir da sua vida como agente da KGB e líder da mesma. Coube-lhe o mérito de tentar reconstruir a economia russa, retomando a racionalização do processo econômico mediante a abertura ao mundo do capital, mas sem instaurar um sistema social-democrático, permitindo somente partidos de fachada que agrupassem os novos ricos e as classes médias, sem ter no horizonte um claro processo liberalizante que se focasse na construção de uma representação política duradoura. As reformas liberalizantes no terreno político simplesmente foram esquecidas, com o fortalecimento de Putin como novo Czar que encarna um poder absoluto e inquestionável.

Deve-se reconhecer, no entanto, que sob Putin a economia russa cresceu aceleradamente com um aumento de 72% no PIB em oito anos, graças à boa gestão macroeconômica, bem como a importantes reformas fiscais, ao crescimento do fluxo de capitais, ao acesso às finanças internacionais e ao aumento quintuplicado do preço do petróleo e gás, que passaram a constituir os principais produtos de exportação da Rússia. Putin, do ângulo administrativo, aumentou em 13% a taxa proporcional da receita, reduziu os impostos e promulgou novos códigos legais territoriais. Fez, de outro lado, importantes reformas militares e policiais aumentando a dependência direta dessas forças do seu poder. Em matéria energética, firmou a posição da Rússia como superpotência. De outro lado, apoiou indústrias de alta tecnologia no terreno do poder nuclear e de defesa. Aumentou expressivamente o investimento de capital estrangeiro, o que se traduziu numa dinâmica grande do setor automotivo. O desenvolvimento sob Putin incluiu a construção de oleodutos e gasodutos, a restauração do sistema de navegação por satélite (“GLONASS”), bem como a modernização da infraestrutura para eventos internacionais.

O novo Czar retomou, portanto, a índole modernizadora dos seus antecessores. Mas fê-lo sem abandonar a característica despótica no exercício do poder. Reeleito Presidente, reformou a legislação a fim de se perpetuar na cúpula do poder russo até 2030, o que o tornou um ditador. Aparece aí a cara perversa do governo de Putin, que o tem levado a perseguir até a morte oposicionistas, a invadir brutalmente Repúblicas submetidas a Moscou, que porventura se oponham de forma radical ao seu poder (como a Tchetchênia) e partir para uma colaboração explícita com regimes autocráticos como o da Síria, a fim de ver garantidos interesses geopolíticos, com a saída para os “mares quentes”, a qual sempre foi uma preocupação estratégica do Império russo. O caso ucraniano deve-se colocar nesse contexto, a fim de garantir o controle da Criméia, que é uma região tradicionalmente estratégica para os russos pela sua situação defronte ao Mar Negro.

Quer dizer que as Nações do Ocidente, notadamente os Estados Unidos e a Comunidade Européia devem se render, sem mais, às propostas beligerantes de Putin? De forma alguma. Mas, como frisava o velho cientista político Henry Kissinger (1923-), que foi Secretário de Estado do governo americano entre 1973 e 1977 e que é profundo conhecedor das tendências macro da diplomacia mundial, é necessário conhecer de perto o que Putin pensa em relação à Ucrânia, do ângulo estratégico, a fim de saber negociar com ele, no contexto da perspectiva russa, uma saída realista para a guerra com a Ucrânia. Quando do conflito entre a Rússia e a Ucrânia com motivo da ocupação da Crimeia em 2014, Henry Kissinger escreveu o artigo intitulado: “How the Ukraine Crisis Ends” (The Washington Post, 06-03-2014), há exatamente 8 anos. Nesse texto, Kissinger frisava:

“O Ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser apenas um país estrangeiro. A história russa começou no que foi chamado de Kievan-Rus. A religião russa se espalhou a partir daí. A Ucrânia faz parte da Rússia há séculos, e suas histórias estavam entrelaçadas antes disso. Algumas das batalhas mais importantes pela liberdade russa, começando com a Batalha de Poltava em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A Frota do Mar Negro – o meio da Rússia de projetar poder no Mediterrâneo – é baseada em arrendamento de longo prazo em Sebastopol, na Crimeia. Até mesmo dissidentes famosos como Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008) e Joseph Brodsky (1940-1996) insistiam que a Ucrânia era parte integrante da história russa e, de fato, da Rússia”.

A Ucrânia em face da Rússia, do ângulo estratégico, historicamente ocupou um lugar que se assemelharia ao que era, para o Império brasileiro, no início do século XIX, a Província Cisplatina, em face das pretensões geopolíticas das Províncias Unidas da Argentina. Não poderiam ser apagados, de vez, os nexos que uniam essa Província ao Sul do Brasil, como parte do “Reino de Portugal, Brasil e Algarve”. Uma saída honrosa para o Império foi aceitar a criação de um Estado-tampão, o Uruguai. A pretensão argentina de anexação direta da Cisplatina era de todo intolerável para os estrategistas brasileiros. Foi assim como ocorreu a independência da Província Cisplatina com a assinatura do Tratado do Rio de Janeiro, entre o Império do Brasil, as Províncias Unidas da Argentina e o negociador inglês que exerceu a mediação entre as partes e que falou, no ato da assinatura do Tratado, as seguintes palavras: “colocamos algodão entre cristais”.

Quando do conflito de 2014 ao ensejo da ocupação da Criméia pelas tropas russas (em 23 de fevereiro de 2014), escrevia Kissinger no seu citado artigo: “A União Europeia deve reconhecer que a sua lentidão burocrática e a subordinação do elemento estratégico à política interna na negociação da relação da Ucrânia com a Europa contribuíram para transformar uma negociação em crise. A política externa é a arte de estabelecer prioridades. Os ucranianos são o elemento decisivo. Eles vivem em um país com uma história complexa e uma composição poliglota. A parte ocidental foi incorporada à União Soviética em 1939, quando Stalin e Hitler dividiram os despojos. A Crimeia, cuja população é russa [na proporção de] 60%, tornou-se parte da Ucrânia apenas em 1954, quando Nikita Kruschev (1894-1971), ucraniano de nascimento, a concedeu como parte da celebração do 300º ano de um acordo russo com os cossacos. O Ocidente é em grande parte católico; o Oriente em grande parte ortodoxo russo. O Ocidente fala ucraniano; o Oriente fala principalmente russo. Qualquer tentativa de uma ala da Ucrânia de dominar a outra – como tem sido o padrão – levaria eventualmente à guerra civil ou à ruptura. Tratar a Ucrânia como parte de um confronto Leste-Oeste arruinaria por décadas qualquer perspectiva de trazer a Rússia e o Ocidente – especialmente a Rússia e a Europa – para um sistema internacional cooperativo”.

No atual confronto que já produziu uma onda migratória de características massivas, com mais de um milhão e meio de refugiados nos países vizinhos, notadamente na Polônia, há uma perspectiva de esperança, na medida em que, após difíceis negociações, se acende uma luz no fin do túnel: o presidente ucraniano, Zelensky, propõe um cessar-fogo mediante o reconhecimento das três regiões ucranianas (situadas ao leste do país) pleiteadas pelos russos e a promessa de a Ucrânia não pleitear mais uma integração total à OTAN. Mais do que um país inimigo, a Ucrânia agiria como uma espécie de ponte estratégica da Rússia com a Europa Ocidental.

Fica em pé, no entanto, o recado dos países ocidentais: as sanções econômicas decretadas contra a Rússia são para valer e podem aumentar, caso Moscou continue com a guerra de ocupação da Ucrânia, um conflito que já causou muita dor, com centos de mortes de ambos os lados e milhões de refugiados. Calcula-se o número de mortos civis em 364 e o de feridos em 759, sendo 41 crianças. Já o número de militares russos mortos é bem mais elevado, chegando a 14 mil. 

Ora, as sanções, como já está sendo demonstrado, conseguem paralisar o comércio da Rússia com o Ocidente. Os Estados Unidos e a União Européia, bem como os seus parceiros, não tolerarão mais o ataque indiscriminado a populações civis. O melhor que Putin poderia fazer seria reconhecer os direitos aos ucranianos para que elejam os seus governantes, sem pretender fazer da Ucrânia um país fantoche que obedece cegamente as ordens do Kremlin. A Ucrânia sabe reagir, mostrou que tem coragem e força,  e conta com o apoio do Ocidente.

O resultado do conflito pode certamente dificultar a vida para a Ucrânia crescer economicamente num futuro próximo. A finalidade de Putin, destaca o historiador americano Stephen Kotkin, da Universidade de Princeton, "é tomar o Mar Negro e inutilizar a Ucrânia". Para Kotkin, "o controle total da Ucrânia pela Rússia é inviável, mas a destruição pode ser suficiente" [Kotkin, "Putin quer tomar o Mar Negro e inutilizar Ucrânia", in: O Estado de S. Paulo,  9 de março de 2022, p. A26-27].

BIBLIOGRAFIA

KISSINGER, Henry. “How the Ukraine Crisis Ends” (The Washington Post, 06-03-2014).

MONTEFIORE, Simon Sebag. Os Románov - 1613-1918. 1ª edição brasileira. (Tradução de C. Carina e outros), São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 19.

KOTKIN, Stephen. "Putin quer tomar o Mar Negro e inutilizar Ucrânia", in: O Estado de S. Paulo, 9 de março de 2022, pp. A26-27.

PAIM, Antônio. A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

PAIM, Antônio. Marxismo e descendência. Campinas: Vide Editorial, 2009.

PAIM, Antônio. O Patrimonialismo Brasileiro em foco. Campinas: Vide Editorial, 2015. (Com a colaboração de Antônio Roberto Batista, Paulo Kramer e Ricardo Vélez Rodríguez).

POLITKOVSKAYA, Anna. Um diário russo. (Prefácio de John Snow; tradução de Nivaldo Montigelli Jr.). Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1982.

VOLKOGONOV, Dimitri. Os sete chefes do Império Soviético. (Tradução, a partir da edição inglesa, a cargo de Joubert de Oliveira Brízida). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

WEBER, Max. Economía y sociedad. 1a. Edição em espanhol. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina Echavarría, et alii). México: Fondo de Cultura Económica, 1944, 4 volumes.

WITTFOGEL, Karl. Oriental despotism. A comparative study of total power. Chicago University Press, 1957. 2a. Edição, 1959. Foi consultada a 1ª edição francesa intitulada: Le despotisme oriental. Étude comparative du pouvoir total. (Versão francesa de Micheline Pouteau). Paris: Minuit, 1977.