Com Immanuel Kant, a filosofia moderna atinge a sua maturidade. O grande pensador alemão efetuou a síntese mais completa das tendências gnosiológicas que se desenhavam desde o Renascimento, colocando-as em diálogo permanente com a ciência moderna. Um sistematizador à maneira de Aristóteles: esse seria o retrato filosófico do nosso pensador.
I - Para entendermos adequadamente o alcance das afirmações de Kant, precisamos situá-lo no contexto do Iluminismo.
Este percorreu duas etapas: a primeira, ligada à concepção absolutista da razão, encontra a capacidade de organizar racionalmente os dados da experiência num princípio único, identificado com o Soberano Absoluto. Seria o momento do absolutismo, personificado na figura de Luís XIV (ao longo do século XVII). Entre 1680 e 1715 este modelo entrou em crise, no momento identificado por Paul Hazard como “crise da consciência européia” [cf. Hazard, La crise de la conscience européenne, Paris: Fayard, 1961].
Na segunda etapa do Iluminismo, encontramos a razão sendo apropriada pelos membros da sociedade; é a etapa correspondente às grandes revoluções do século XVIII, que culminam com a Revolução Francesa (1789). (É claro que este momento foi precedido, de forma pioneira, pela Gloriosa Revolução britânica de 1688). Kant faz parte desse espírito do tempo, que almeja encontrar uma forma de explicar a razão que pode ser apropriada por todos os seres humanos. Na tentativa em prol de identificar essa apropriação universal da razão, Kant se depara com a proposta da perspectiva transcendental formulada por David Hume, e encontra que ela explica, de forma muito mais simples, a estrutura ontológica que dá sustentação ao nosso conhecimento, sem ter de atrelar a objetividade do mesmo a uma substância externa ou coisa em si. Ao sair do seu “sonho dogmático” (identificado com a metafísica de Leibniz), Kant exprime, de forma clara, a nova concepção universalista da razão e a põe em relação direta com a nova física formulada por Galileu e Newton, numa genial síntese entre as tendências libertárias presentes no século XVIII e o status atingido pelas ciências da Natureza, na teoria elaborada por Isaac Newton, que tinha se distanciado do ponto de vista dinâmico e que se atrelou definitivamente ao ponto de vista cinemático, ligado à apreensão dos fenômenos, sem preocupações metafísicas. Nessa empreitada, o pensador alemão terminou sistematizando a perspectiva transcendental, que tinha sido postulada por David Hume.
Obras:
Único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus (1763).
Sonhos de um visionário, interpretados mediante os sonhos da metafísica (1766).
Dissertação sobre a forma e os princípios do mundo sensível e do mundo inteligível (1770).
Crítica da razão pura – Primeira edição (1781). Segunda edição (1787).
Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa vir a ser considerada como ciência (1783).
Fundamentos da metafísica dos costumes (1785).
Crítica da razão prática (1788).
Crítica da faculdade de julgar (1790).
A religião dentro dos limites da simples razão (1793).
A paz perpétua (1795).
O conflito das faculdades (1798).
Antropologia desde um ponto de vista pragmático (1798).
II - O pensamento de Immanuel Kant pode ser sintetizado nos seguintes 10 pontos:
1 – O sentido do Iluminismo.- “O que é a Ilustração? É a saída do homem da sua menoridade, da qual ele mesmo é responsável. Menoridade, ou seja, incapacidade de se servir do seu entendimento sem a orientação de outrem, menoridade da qual ele mesmo é responsável, pois a causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem para se servir dele sem a tutela de outrem. Sapere aude! Tem coragem para te servir do teu próprio entendimento! Essa é a divisa das Luzes!” [Kant, Immanuel. Respuesta a la pregunta: Qué es la Ilustración? In: Kant, Erhard, Freiherr von Moser, e outros. Qué es Ilustración? - Estudo preliminar de Agapito Mestre; versão espanhola de Agapito Mestre e José Romagosa – 3ª. Edição, Madrid: Tecnos, 1993, p. 17].
2 - Kant marcou definitivamente os rumos da filosofia ocidental, desatrelando-a da metafísica e colocando-a, de maneira firme, no contexto da denominada perspectiva crítica ou transcendental. Não temos acesso à essência substancial das coisas, embora não possamos prescindir delas na elaboração do nosso conhecimento. Da realidade somente conhecemos o fenômeno, aquilo que se revela à nossa experiência. Não temos o condão mágico de enxergar a essência substancial das coisas. Elaboramos os nossos conhecimentos a partir do que dos objetos nos revelam as experiências sensoriais. Podemos nos elevar até as generalizações teóricas, partindo da experiência, mediante a organização dos dados fenomênicos com a ajuda das idéias puras do entendimento. Não criamos, portanto, a realidade. Apenas a formatamos, de acordo com a estrutura ontognosiológica da nossa razão.
3 - O nosso entendimento é apenas faculdade ordenadora do real. Com este princípio exposto na Crítica da Razão Pura, o filósofo de Königsberg dividiu, com Platão, o mérito de ter formulado uma das duas perspectivas filosóficas que balizam a filosofia ocidental: a crítica ou transcendental, sendo que o pensador grego sistematizou, notadamente no seu diálogo Fédon, a perspectiva denominada realista ou transcendente.
4 - A partir da perspectiva transcendental, Kant deu embasamento epistemológico à nova física de Newton (1643-1727). Podemos dizer que Kant tirou a ciência moderna da enrascada em que tinha sido colocada pela tentativa de explicação substancialista. Se, segundo é pressuposto por esta, nós enxergamos a essência da realidade, não se explica como, no que tange às teorias cosmológicas, a Humanidade embarcou durante séculos a fio (desde os Gregos até 1543, quando Copérnico formulou a hipótese heliocêntrica) na canoa furada do Cosmo geocêntrico. No contexto da explicação kantiana, a mudança de paradigma cosmológico é de fácil explicação: passou-se, com Newton, de uma apreciação do fenômeno a uma outra, mais compatível com a experiência e os dados matemáticos. Nada de dogmatismo realista. Instalou-se, na filosofia da ciência, uma saudável relatividade quanto à necessidade de consultar os dados da experiência, sempre passível, aliás, de novas representações. À luz da perspectiva kantiana, Karl Popper, no século XX, definiu a certeza científica como afirmação probabilística, capaz de ser refutada. Afirmações passíveis de serem discutidas pela comunidade científica e verificadas por ela, essas são as assertivas científicas. Longe ficaria o neokantismo do dogmatismo positivista, que pretenderá uma certeza dogmática para a ciência, a partir de fatos apreensíveis de uma vez para sempre.
5 - A herança kantiana foi definitiva, também, em dois outros terrenos: o da ética e o da política. No que tange ao primeiro campo, Kant formulou, pela primeira vez, uma moral racional, mediante a tradução, em rigorosos conceitos filosóficos, dos postulados religiosos em que até então se alicerçava a moral. Na sua Fundamentação da metafísica dos costumes, o mestre de Königsberg traduziu o cerne da moral judaico-cristã, o mandamento da caridade, neste imperativo categórico: “Age de tal forma que trates a pessoa humana sempre como fim e nunca como meio”. Tornou-se possível, assim, uma moral racional, que incorporou o rico legado da tradição judaico-cristã, compatibilizando-o com a tradição helenística que valoriza a razão.
Já no que tange à política, o pensador alemão formulou, no seu opúsculo intitulado A paz perpétua, o que seria o princípio básico da moral pública, ou princípio da “transparência”, que reza assim: “Age sempre de tal forma que os motivos de tua ação possam ser divulgados aos quatro ventos”. Esse princípio tornou-se o centro irradiador de luz para a ação política, tanto no plano nacional quanto no terreno internacional. A melhor forma de manter a credibilidade de um governo é, à luz do princípio kantiano, mantendo a transparência perante a comunidade. E, no terreno internacional, a garantia da paz entre as nações consiste em não esconder cartas na manga, explicitando, perante a comunidade dos povos, os móveis da ação dos Estados. Utopia? Talvez. Mas a aproximação desse ideal é a que, certamente, tem garantido os clarões de paz na noite dos conflitos. Mais uma vez, o genial pensamento do filósofo de Königsberg tornou-se semente fecunda da civilização ocidental, neste conturbado início de milênio.
6 – No que tange, especificamente, à Teoria do Conhecimento, Kant sistematizou a forma em que podemos efetivar juízos de validez universal. Enveredou pelo caminho que já tinha sido assinalado por Aristóteles: os nossos conhecimentos completos expressam-se em juízos e estes se traduzem na linguagem. Ora, quais seriam, nesta, os tipos de juízos (ou afirmações) possíveis? - Esses juízos seriam de dois tipos: analíticos e sintéticos. Nos primeiros, o predicado já se encontra no sujeito, constituindo apenas uma explicitação tautológica. Quando digo, por exemplo: “O homem é um animal racional”, no sujeito (homem) já está contido o predicado (animal racional). A definição aristotélica seria, portanto, uma tautologia. Portanto, com juízos analíticos não aumento os meus conhecimentos. Restam os juízos sintéticos, aqueles nos quais o predicado não está contido no sujeito. Estes são de dois tipos: juízos sintéticos a-posteriori (referidos à experiência sensível, sempre individual e não generalizável, como quando afirmo: “o sorvete de morango está gostoso”), e juízos sintéticos a-priori (referidos à experiência – que nos fornece os objetos da intuição sensível em geral -, organizada a partir de categorias ou conceitos puros do entendimento e universalmente válidos para todos os sujeitos cognoscentes, como quando Newton afirma, no terceiro axioma da sua obra Philosophiae naturalis principia mathematica: “Toda ação é acompanhada de uma reação do mesmo tamanho e de direção oposta”).
7 – A partir da análise dos nossos juízos sintéticos a-priori, Kant deduz as categorias correspondentes a eles, no procedimento por ele identificado, na Crítica da Razão Pura, como “dedução transcendental das categorias”, na verdade, uma “indução” delas. Essa dedução é efetivada levando em consideração o seguinte princípio, explicitado nestes termos pelo próprio Kant: “Originam-se tantos conceitos puros do entendimento, referidos a-priori a objetos da intuição em geral, quantas [forem] as funções lógicas em todos os juízos possíveis que há na tábua [a seguir]; pois o entendimento esgota-se totalmente nessas funções e a sua capacidade mede-se totalmente por elas” [Crítica da Razão Pura, tradução de Manoela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 4ª edição, 1997, p. 110].
8 – Tábua dos Juízos sintéticos a-priori possíveis. A respeito, afirma Kant: “Se abstrairmos de todo o conteúdo de um juízo em geral e atendermos apenas à simples forma do entendimento, encontramos que nele a função do pensamento pode reduzir-se a quatro rubricas, cada uma das quais contém três momentos. Podem comodamente apresentar-se na seguinte tábua: 1. Quantidade dos juízos: Universais, Particulares, Singulares; 2. Qualidade: Afirmativos, Negativos, Infinitos; 3. Relação: Categóricos, Hipotéticos, Disjuntivos; 4. Modalidade: Problemáticos, Assertóricos, Apodíticos”. [Crítica da Razão Pura, edição Gulbenkian, 1997, p. 103-104].
9 – Tábua das Categorias. A partir da Tábua dos Juízos sintéticos a-priori possíveis, Kant deduz (infere) a seguinte Tábua das Categorias (ou Conceitos Puros do Entendimento): “1. Da Quantidade: Unidade, Pluralidade, Totalidade; 2. Da Qualidade: Realidade, Negação, Limitação; 3. Da Relação: Inferência e subsistência (substantia et accidens), Causalidade e dependência (causa e efeito), Comunidade (ação recíproca entre o agente e o paciente). 4. Da Modalidade: Possibilidade – Impossibilidade, Existência – Não-existência, Necessidade – Contingência”. [Crítica da Razão Pura, edição Gulbenkian, 1997, p. 110-111]
10 – Partes da Crítica da Razão Pura: Kant dividiu a sua obra em três partes, consistentes: 1. na Estética Transcendental (onde trata acerca do modo em que os dados da experiência sensível são organizados, no espaço e no tempo, pelas Formas a-priori da sensibilidade, com o auxílio do Esquema); 2. na Analítica Transcendental (onde trata acerca do modo em que o Entendimento elabora os conceitos, a partir dos dados fenomênicos, com a finalidade de construir os Juízos sintéticos a-priori); 3. na Dialética Transcendental (onde analisa o “sonho da Razão”, consistente na atividade de elaborar juízos dialéticos sobre objetos puramente imaginários, elaborados a partir de conceitos não alicerçados diretamente na experiência. Esses objetos ideais seriam três: a imortalidade da alma, a ordem cósmica e a existência de Deus. Aqui ancoram as construções da Metafísica, bem como as várias representações da Arte e da Religião, que exprimem desiderata do sujeito pensante, mas não diretamente fenômenos correspondentes à experiência).
III – A herança de Immanuel Kant.
A obra de Immanuel Kant marcou definitivamente os rumos da filosofia ocidental, desatrelando-a da metafísica e colocando-a, de maneira firme, no contexto da denominada perspectiva crítica ou transcendental. Não temos acesso à essência substancial das coisas, embora não possamos prescindir delas na elaboração do nosso conhecimento. Da realidade somente conhecemos o fenômeno, aquilo que se revela à nossa experiência. Não temos o condão mágico de enxergar a essência substancial das coisas. Elaboramos os nossos conhecimentos a partir do que dos objetos nos revelam as experiências sensoriais. Podemos nos elevar até as generalizações teóricas mediante juízos sintéticos a priori que, partindo da experiência, possibilitam-nos organizar os dados fenomênicos com a ajuda das idéias puras do entendimento. Não criamos, portanto, a realidade. O nosso entendimento é apenas faculdade ordenadora do real. Com esses seus princípios expostos na Crítica da Razão Pura, o filósofo de Königsberg dividiu, com Platão, o mérito de ter formulado uma das duas perspectivas filosóficas que balizam a filosofia ocidental: a crítica ou transcendental, sendo que o pensador grego sistematizou, notadamente no seu diálogo Fédon, a perspectiva denominada realista ou transcendente.
A partir da perspectiva transcendental, Kant deu embasamento epistemológico à nova física de Newton, mostrando como era possível uma ciência formulada em juízos sintéticos apriori, que levassem em conta os dados da experiência. Podemos dizer que Kant tirou a ciência moderna da enrascada em que tinha sido colocada pela tentativa de explicação substancialista. Se, segundo é pressuposto por esta, nós enxergamos a essência da realidade, não se explica como, no que tange às teorias cosmológicas, a Humanidade embarcou durante séculos a fio (desde os Gregos até 1543, quando Copérnico formulou a hipótese heliocêntrica) na canoa furada do Cosmo geocêntrico. No contexto da explicação kantiana, a mudança de paradigma cosmológico é de fácil explicação: passou-se, com Newton, de uma apreciação do fenômeno a uma outra, mais compatível com a experiência e os dados matemáticos. Nada de dogmatismo realista. Instalou-se, na filosofia da ciência, uma saudável relatividade quanto à necessidade de consultar os dados da experiência, sempre passível, aliás, de novas representações. À luz da perspectiva kantiana Karl Popper, no século XX, definiu a certeza científica como afirmação probabilística, capaz de ser refutada. Afirmações passíveis de serem discutidas pela comunidade científica e verificadas por ela, essas são as assertivas científicas. Longe ficou o neokantismo do dogmatismo positivista, que pretendia uma certeza dogmática para a ciência, a partir de fatos apreensíveis de uma vez para sempre.
Mas a herança kantiana foi definitiva, também, em dois outros terrenos: o da ética e o da política. No que tange ao primeiro campo, Kant formulou, pela primeira vez, uma moral racional, mediante a tradução, em rigorosos conceitos filosóficos, dos postulados religiosos em que até então se alicerçava a moral. Na sua Fundamentação da metafísica dos costumes, o mestre de Königsberg traduziu o cerne da moral judaico-cristã, o mandamento da caridade, neste imperativo categórico: “Age de tal forma que trates a pessoa humana sempre como fim e nunca como meio”. Tornou-se possível, assim, uma moral racional, que incorporou o rico legado da tradição judaico-cristã, compatibilizando-o com a tradição helenística que valoriza a razão. Já no que tange à política, o pensador alemão formulou, no seu opúsculo intitulado A paz perpétua, o que seria o princípio básico da moral pública, ou princípio da “transparência”, que reza assim: “Age sempre de tal forma que os motivos de tua ação possam ser divulgados aos quatro ventos”. Esse princípio tornou-se o centro irradiador de luz para a ação política, tanto no plano nacional quanto no terreno internacional. A melhor forma de manter a credibilidade de um governo é, à luz do princípio kantiano, mantendo a transparência perante a comunidade. E, no terreno internacional, a garantia da paz entre as nações consiste em não esconder cartas na manga, explicitando, perante a comunidade das Nações, os móveis da ação dos Estados. Utopia? Talvez. Mas a aproximação desse ideal é a que, certamente, tem garantido os clarões de paz na noite dos conflitos. Mais uma vez, o genial pensamento do filósofo de Königsberg tornou-se semente fecunda da civilização ocidental, neste conturbado início de milênio.