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A DEMOCRACIA NÃO CAI DO CÉU

A DEMOCRACIA NÃO CAI DO CÉU

O Mestre Antônio Paim (1927-2021), pregador da Educação para a Cidadania



Dizia o Mestre Antônio Paim (1927-2021), recentemente falecido em São Paulo, que “a democracia não cai do céu”, sendo tarefa de todos nós. Ora, nesse quesito estamos, certamente, em dívida com o Brasil. Porque a maior parcela da nossa sociedade não se sente chamada a participar da política, embora muitos reconheçam a importância desse fator, dada a má qualidade da política do dia a dia, notadamente no que se refere ao comportamento dos homens públicos. Ora, não pode haver sociedade politicamente organizada sem a participação dos cidadãos. E não pode se dar a participação destes, sem as instituições do Governo Representativo, como destacava o pai do Liberalismo, John Locke (1632-1704), nos seus Dois tratados sobre o governo civil (1689). Nesse sentido, precisamos, como escrevia Alexis de Tocqueville (1805-1859), “construir o homem político” que não nasce já feito, mas que é formatado na “educação para a cidadania”, como tinha ocorrido nos Estados Unidos, segundo o testemunho deste autor na sua obra principal, A democracia na América (1835-1840).

Estamos, de fato, vivendo no olho de um furacão de contrassenso, com poderes públicos que se digladiam, como se fossem gladiadores na arena do circo romano, tentando, cada um deles, dar um espetáculo de falta de civilidade, em decorrência da pouca transparência e do clientelismo. Um Legislativo que, quando instaura uma CPI, encena para o grande público o espetáculo de um rito inquisitorial, no qual o importante é apresentar rapidamente culpados, sendo desconhecidos todos os ritos que prescreve a justa investigação dos fatos, a fim de que brilhe a verdade sobre as fake news e a propaganda. Um Executivo eleito legitimamente por 58 milhões de brasileiros, que fala demais para os seus amigos e de menos para o resto, quando seria necessário que, com transparência, criasse um ambiente de confiança e de tranquilidade para que a sociedade identificasse, com segurança, a linha a ser seguida na rota da nau do Estado, notadamente nesta época trágica de pandemia. Faço esta observação sem deixar de reconhecer o valor representado pelo atual presidente, ao dar voz à maioria conservadora deste país, em que pese a carga de crítica sistemática da oposição radical, à qual foram submetidos ele e os seus colaboradores no gabinete ministerial, já antes da posse, tendo sofrido o próprio candidato, em Juiz de Fora, como todo mundo sabe, a criminosa tentativa de assassinato durante a campanha. Uma magistratura, com o colegiado supremo tratando de política e esquecendo a missão fundamental de ser juiz em última instância, com a obrigação moral de encarnar o amor à Justiça nas suas falas, no seu comportamento e nas suas decisões como máximo tribunal e que, infelizmente, tem apresentado algumas soluções que mais enfraquecem o senso do Justo, por exemplo, colocando célere na rua os corruptos sistemáticos de ontem, que tinham sido julgados em todas as instâncias, cumpridos os ritos processuais.

Conhecido jornal destacava, recentemente, o desinteresse especial que as novas gerações devotam à política. Frisava o editorial do dia 4 de junho: “Um estudo realizado pelo Ibope e pela Rede Nossa São Paulo mostrou uma situação preocupante para o regime democrático e o exercício da cidadania. Segundo o levantamento, 67% das pessoas entre 16 e 24 anos na cidade de São Paulo não têm nenhuma vontade de participar da vida política do Município. Dois terços de uma parcela especialmente relevante da população – a nova geração, que se aproxima da vida adulta – querem distância da política. Apenas 19% disseram ter alguma vontade de participar da vida política e 15%, muita vontade. Realizada no mês de janeiro com 800 pessoas na cidade de São Paulo, a pesquisa apresentou aos entrevistados uma série de possibilidades de atuação na vida política, que iam desde o compartilhamento de notícias sobre política na internet e trabalho voluntário até a participação em atos de rua e atuação em conselhos municipais. Quase a metade (42%) respondeu que não pratica nenhuma das ações listadas. Segundo o público pesquisado, a forma mais frequente de fazer política é a assinatura de abaixo-assinados (22%), seguida do compartilhamento de notícias em redes sociais e em aplicativos de mensagens (18%) e atuação no movimento estudantil (15%). O quadro é especialmente grave tendo em vista que as pessoas reconhecem a importância da participação política, mas mesmo assim não veem sentido nessa atuação” [“O perigoso afastamento da política”, O Estado de S. Paulo, 4 de junho de 2021].

A verdade é que não cuidamos, como Nação, da “educação para a cidadania”. O professor Paim no seu livro intitulado: Momentos decisivos da história do Brasil no prefácio à 1ª edição de 1998, frisava que a nossa história passou por três momentos decisivos, “nos quais o país poderia ter seguido rumo diverso do escolhido”. Paim identificava esses momentos assim: “O primeiro configura-se nos séculos iniciais, quando escolhemos a pobreza e nos deixamos ultrapassar pelos Estados Unidos, depois de termos sido mais ricos. O segundo no século XIX, quando optamos pela unidade nacional, mas nos revelamos incapazes de consolidar o sistema representativo. Finalmente, o terceiro, no século XX, quando estruturamos em definitivo o Estado Patrimonial, recusando terminantemente o caminho da democracia representativa. Neste fim de milênio pode estar sendo decidido um quarto momento que, entretanto, somente se apresenta como interrogação: seremos capazes de enterrar o patrimonialismo?”.

O Patrimonialismo, ao contrário do que seria a solução almejada pelo professor Paim, corre livre e solto nesta terceira década do novo milênio e parece que vai a caminho da consolidação desse modelo perverso de organização política, que privatizou o Estado em benefício de uma burocracia orçamentívora. O fenômeno do desinteresse das novas gerações pela política decorre exatamente da opção errática de manter vivo o Estado Patrimonial. Este somente poderia ser desmontado mediante a reforma que possibilitasse à sociedade amadurecer na gestão do Estado, construindo a representação em benefício de todos os brasileiros e não apenas de uma parcela identificada com a nomenklatura. Teria sido necessária a redefinição do nosso pacto federativo e a adoção do voto distrital, de forma que os cidadãos pudessem participar, mediante a representação, da gestão do Estado. Mantida a estrutura patrimonialista, a representação continuou a ser deformada em decorrência da multiplicação de siglas partidárias que nada têm a ver com os reais interesses dos cidadãos. Junto com o fortalecimento de uma autêntica representação política, o passo seguinte para o desmonte do Estado patrimonial seria a implantação da educação para a cidadania, que habilitasse as novas gerações no caminho da participação política, tornando realidade a participação da sociedade, sem a qual não haverá instituições que garantam o reto exercício da democracia.

Quando a sociedade brasileira enxerga um espaço educacional de culto aos valores patrióticos, de controle à desordem e ao desrespeito em face dos valores tradicionais, de cuidado para com as famílias e de prática da liberdade e da disciplina acadêmicas, como nas Escolas Cívico-Militares, imediatamente filas de pais se formam na entrada dessas instituições que oferecem tal oportunidade. Assim tem acontecido no Estado de Goiás, com as suas mais de 50 Escolas Cívico-Militares e em outras muitas instituições de ensino pelo país afora, que adotaram esse modelo. Não se trata de uma militarização da educação como erradamente críticos apressados identificaram essa salutar iniciativa. Trata-se de escolas municipais ou estaduais onde, junto com os educadores civis, profissionais ativos ou aposentados das forças de segurança pública participam, a fim de desenvolver a disciplina “Educação para a Cidadania”, garantindo também a segurança de alunos e professores, em face das investidas de salteadores e narcotraficantes, que assolam os espaços destinados ao ensino público ao longo do país. O governo Bolsonaro tinha assinalado a meta de pôr em funcionamento, pelo Brasil afora, 500 Escolas Cívico-Militares. Convenhamos que num universo amplo como o oferecido pelas nossas 184.100 escolas públicas (112.900 municipais e 71.200 estaduais), o número almejado é realmente pequeno. Mas já significaria um bom começo.

Paralelamente, seria necessário resgatar o espaço das nossas Universidades Federais e das Instituições de Formação Técnica e Profissionalizante das mãos de uma burocracia identificada com os interesses de determinados partidos políticos da oposição, a fim de que se tornassem instrumentos de profissionalização e de formação humanística superior, ampliando a participação do alunado das classes menos favorecidas. Reformas no modelo de escolha dos reitores deveriam ser feitas, a fim de libertar as eleições do domínio que nelas exerce a burocracia sindical, ampliando os mecanismos de eleição para a participação efetiva e independente de professores, alunos e funcionários, bem como dos empresários da região, restabelecendo o princípio de livre escolha entre os mais votados, por parte das autoridades competentes, sem a imposição, como ocorre atualmente, da escolha do mais votado em números absolutos. Vejo com bons olhos o novo florescimento do Projeto Rondon, gerido competentemente e num espaço democrático pelo Ministério da Defesa e pelo MEC, como iniciativa que permite aos nossos estudantes dos cursos superiores entrar em contato direto com as várias regiões do país, identificando as suas necessidades e ampliando o raio de ação das instituições de ensino superior e técnico.

Insisto, para terminar, que a verdadeira pérola em termos de formação cívica repousa na volta da disciplina “Educação para a Cidadania” no seio do ensino básico e fundamental. Países que hoje se situam na dianteira da modernização das suas economias e da participação cidadã resolveram essa questão há muito tempo. Os Estados Unidos consolidaram o sistema de Educação para a Cidadania já no final do século XIX e início do XX, sendo a obra de John Dewey (1859-1952) fundamental para essa realidade, bem como a fundação da Universidade de Colúmbia, dedicada à formação dos mestres dos mestres. A França e a Alemanha realizaram as reformas do seu ensino básico e fundamental na segunda metade do século XIX, sendo memorável a Escola Normal Superior da França, criada para formar os mestres das seguintes gerações. Outros países cuidaram com carinho desse empenho, como é o caso do Japão, da China, de Taiwan, da Coreia do Sul, da Espanha, do Canadá e da Inglaterra, para não falar dos países nórdicos como a Finlândia. A renovação do ensino básico e fundamental em Portugal acompanhou a entrada desse país na Comunidade Europeia, nas últimas décadas do século XX.

No Brasil ainda estamos para consolidar as reformas do nosso ensino básico, fundamental e secundário profissionalizante. Falta entre nós, especialmente, o equacionamento da disciplina “Educação para a Cidadania”. Se não cuidarmos dela, não teremos brasileiros interessados na formulação das políticas públicas e na participação ativa na política. O professor Antônio Paim coordenou, no Instituto de Humanidades (criado em 1986), a pesquisa e a publicação do livro intitulado: Cidadania: o que todo cidadão precisa saber (do qual participei honrosamente, junto com o saudoso Leonardo Prota e que foi publicado no Rio de Janeiro, pela Editora Expressão e Cultura, em 2002). A ideia desse livro era fomentar o debate para chegar a um consenso, entre professores do ensino básico e fundamental dos setores público e privado, acerca dos temas que deveriam constituir a disciplina “Educação para a Cidadania”.

Outras iniciativas nesse contexto seriam de grande utilidade para fazer deslanchar a almejada disciplina, que despertaria nos nossos educandos o sentido da cidadania. A nossa democracia, assim, não cairia do céu, mas seria formatada pelos brasileiros. O mito bem brasileiro do "Salvador da Pátria", uma espécie de Ferrabrás que, com mão dura, saneasse as instituições políticas para garantir a democracia, não passa de uma figura imaginária. Ninguém democratiza praticando o autoritarismo. A politização das Forças Armadas é, hoje, um risco desnecessário que deveria ser desmontado já, voltando à sadia prática da "doutrina Geisel", que contribuiu para a profissionalização e a valorização das Forças Armadas após a abertura, findo o ciclo militar. As mitologias escatológicas de "lutas pela eternidade" com que acenam hoje ideólogos tradicionalistas no Brasil e alhures, contribuem mais para tumultuar do que para construir o edifício da democracia. Somente haverá "paz perpétua" na vida social, quando for praticado o imperativo categórico das luzes, como dizia Immanuel Kant no seu breve ensaio intitulado: A paz perpétua (1795), a qual, como frisava o sábio alemão, não era a paz fria dos cemitérios, mas o ambiente de concórdia gerado pela "coragem de pensar".