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A CIDADE E A GOVERNANÇA PÚBLICA

A CIDADE E A GOVERNANÇA PÚBLICA

LOGOTIPO DAS INDÚSTRIAS REUNIDAS MATARAZZO

O grupo “Altos Papos”, coordenado pelo Dr. Antônio Roberto Batista, dedicou a sua primeira reunião do mês de fevereiro para um bate-papo sobre o tema: “Questões relevantes de Governança Pública em São Paulo”. Como expositor tomou a palavra, inicialmente, Andrea Matarazzo, filiado ao Partido Social Democrático (PSD). Ele foi Ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (1999-2001) e ocupou outros vários cargos públicos como Vereador em São Paulo (2013-2017), Embaixador do Brasil em Roma (2001-2002), Secretário Estadual de Cultura em São Paulo (2010-2012), Secretário de Subprefeituras de São Paulo (2006-2008), dentre outros.

Sobrinho-neto do conde Francisco Matarazzo, Andrea vem de uma família de industriais e enxerga essa vocação original sob o viés dos serviços que a indústria pode oferecer à população de uma grande cidade como São Paulo, garantindo aos mais pobres um emprego digno. Matarazzo faz-me lembrar a geração dos utilitaristas ingleses, com personalidades como Jeremy Bentham, John Stuart Mill e Edward Sidgwick, pertencentes à elite burguesa, que tematizaram a questão da “justiça social” a partir de fortes convicções cristãs. Matarazzo lembra-me, também, a geração dos liberais franceses alcunhados de “Doutrinários” os quais, no sentir de Ortega y Gasset, foram o “que de mais interessante ocorreu na Europa no século XIX”. Figuras como Pierre-Paul Royer Collard, Jacques Necker, Victor Cousin, Villemain, Madame de Staël, Benjamin Constant de Rebecque, François Guizot, o conde Henri Clerel de Tocqueville (que criou, na França da Restauração, entre 1816 e 1830, o “Banco dos Pobres”) e o seu filho, o grande Alexis de Tocqueville, todos eles pertencentes às altas camadas de intelectuais provenientes da nobreza e da burguesia do Antigo Regime, e que possuíam uma enorme sensibilidade social, tendo reconstruído as instituições políticas à sombra do ideário liberal, inspirados no humanismo cristão e dando ensejo a políticas públicas que transformaram a antiga sociedade nobiliárquica numa democracia moderna.

Pois bem: o grande problema com que se defrontou Andrea Matarazzo na cidade de São Paulo, nas suas várias experiências como funcionário público ou representante da sociedade na Câmara de Vereadores, foi o seguinte: os empreendimentos industriais não acompanham as reais necessidades de uma grande população que se arrebanha na periferia e que se vê obrigada a buscar emprego em indústrias situadas longe de onde os trabalhadores moram, obrigando-os a longos deslocamentos.

Os primeiros empreendimentos industriais surgiram na cidade de São Paulo, no início do século XX, em bairros não muito distantes do Centro, como a Mooca (onde se situavam o Cotonifício Rodolfo Crespi e a Companhia União dos Refinadores de Açúcar e Café dos irmãos italianos Pugliese Carbone), a Barra Funda (Indústrias Matarazzo) ou a rua 25 de Março (onde os irmãos Jafet, de origem libanesa, organizaram a sua primeira loja de tecidos). Logo foram surgindo, ao longo das décadas de 30 a 50, empresas em lugares mais distantes, como a Indústria de Celulose das famílias Klabin e Lafer (que inauguraram a sua fábrica em Itu, prenunciando os rumos regionais da industrialização paulistana).

Paralelamente a esse desenvolvimento da indústria longe da moradia dos trabalhadores, a sociedade foi crescendo sem que o problema da representação política fosse adequadamente equacionado. Nos 131 anos de República não foi possível sedimentar um sistema representativo que, nos seus vários patamares (federal, estadual e municipal) acompanhasse de perto a defesa dos interesses dos cidadãos. Os vários ciclos autoritários que interromperam a corrente de um republicanismo de inspiração liberal, terminaram deformando o sentido da representação política. Os representantes passaram, como no ciclo getuliano ou no regime militar, a representar “bionicamente”, às vezes, os interesses do centro do poder, não os interesses dos cidadãos votantes. Essa é a grande desgraça do nosso republicanismo às avessas. Tocqueville definia o republicanismo como “o reino tranquilo da maioria”. O republicanismo brasileiro poderia ser definido, pelo contrário, como “o reino intranquilo da minoria”. Vamos convir que o nosso republicanismo está, hoje em dia, mais para o segundo modelo do que para o modelo tocquevilliano.

Os instrumentos de que o eleitorado pode deitar mão para ver garantidos os seus interesses simplesmente não funcionam. Os Partidos já trazem embalada a propaganda do “o meu candidato já ganhou”, calçada sobre a dinheirama dos Fundos Partidários de mais de 5,7 bi. O voto distrital, nos momentos em que poderia ter sido aprovado (como na Constituinte de 1988), simplesmente foi jogado para baixo do tapete, nessa circunstância e em outras que se têm apresentado após a promulgação da Constituição “cidadã” de 1988, ontologicamente corporativista e garantidora de direitos sindicais, não formatadora de deveres cívicos. O orçamento da União virou moeda de troca no Congresso dominado nas suas entranhas pela defesa dos interesses do “Centrão”, leia-se, da burocracia partidária defensora do Estado Patrimonial, com donos já pré-estabelecidos.

Resta, nos subúrbios das nossas grandes cidades, o deserto da representação dos cidadãos, substituído pelas máquinas eleitorais que elegem representantes desse patrimonialismo doentio, que engorda uma casta afinada com o atraso antidemocrático. Como seria interessante o planejamento urbano de baixo para cima, com Câmaras de Vereadores que representassem realmente os interesses dos seus cidadãos, não as máquinas político-partidárias!

Essa é a crítica tremendamente legítima de um político de corte liberal que quer ver representados os interesses da população, como é o caso de Andrea Matarazzo. Com uma representação municipal que realmente funcionasse, poder-se-ia planejar o incentivo à criação de indústrias médias e pequenas, ali onde moram os cidadãos, não longe deles para fazer vingar as “vias expressas” que deságuam no interminável engarrafamento em que se converteu São Paulo. Com uma Câmara de Vereadores realmente representativa, poder-se-ia formular uma política de industrialização que favorecesse o surgimento de pequenas e médias empresas nos bairros, dando ensejo a fontes de trabalho perto de onde os cidadãos moram e revitalizando com o oxigênio da livre iniciativa o tecido morto pelo voto proporcional e as alianças de legenda.

Ainda podemos piorar, se não dermos atenção, enquanto é tempo, à construção dos canais de representação dos cidadãos nos nossos municípios. Poderemos chegar ao impasse a que chegou a Colômbia, no final do século passado, com um país à beira da balcanização decorrente do domínio dos clãs do crime organizado, da guerrilha suicida e das oligarquias. Nas desordens sanguinolentas que, com atordoante regularidade, vão eclodindo nos nossos presídios pelo Brasil afora, assoma a sombra maligna do crime organizado, irmão-gêmeo do mecanismo de corrupção generalizada que foi crescendo nas sombras ao longo dos últimos 20 anos e que hoje nos assombra com pesadelos mortíferos.

Valeu o alerta dado pelo grande expositor e homem público que é Andrea Matarazzo.