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A CARTA BRASILEIRA DE 1988: UMA CONSTITUIÇÃO ESCRITA SEM JURISTAS

A CARTA BRASILEIRA DE 1988: UMA CONSTITUIÇÃO ESCRITA SEM JURISTAS

O PROFESSOR DOUTOR EIITI SATO, DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSSIDADE DE BRASÍLIA



No dia 5 de Outubro houve manifestações comemorando os 35 anos da promulgação da Constituição vigente. Tendo em vista o quadro político, tais manifestações ocorreram sempre em tom de louvação, mas se restringiram apenas às instâncias políticas, notadamente ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal. Na realidade, o STF não deveria estar incluído na categoria de instância política mas, nos anos recentes, sua natureza jurídica foi virtualmente abandonada e substituída pelo conteúdo político, tanto na sua composição quanto no que diz respeito às suas ações. O fato é que nem faculdades de Direito de prestígio e nem associações profissionais de juristas e de magistrados se sentiram motivadas a celebrar a efeméride, deixando, assim, transparecer a ideia de que o fato merece alguma reflexão. Há, de fato, o que comemorar?

O que são as constituições, e por que estudá-las? Uma constituição é um documento que define a vida política, social e econômica de uma nação. A elaboração de constituições nacionais é um fenômeno que se difundiu apenas a partir dos fins do século XVIII, quando o Estado moderno e o conceito de democracia, no seu sentido moderno, passaram a ser adotados pela comunidade de nações.

Os dicionários definem a constituição como um documento que reúne as normas e as leis fundamentais que estabelecem o regime político e as instituições que formam os poderes de uma nação, definindo a distribuição de competências e o exercício da autoridade sobre um território e sobre o povo que habita esse território. Por sua natureza e abrangência, entre os documentos jurídicos, a constituição se destaca em importância por ser um documento eminentemente político, que deve refletir a “vontade geral” da nação.

No mundo real, no entanto, uma constituição, além de ser um produto da vontade da nação, é também parte de uma ampla e complexa rede de instituições e de práticas formais e informais, que definem e que organizam a vida social, econômica e política das nações.

A Constituição dos EUA de 1787, que deu forma e expressão política aos EUA, e a Revolução Francesa, que simbolizou os dramas do declínio do ancien régime, são considerados os principais marcos nesse processo de consolidação dos termos Estado moderno e democracia moderna.

O termo “vontade geral” (general will) refere-se à tradição de se empregar essa expressão, desde a era do “iluminismo”, para expressar a ideia de representação política e de expressão da vontade do povo.

Essa rede, da qual a Constituição é parte central, vincula-se tanto à experiência histórica da vida social e política da própria nação, quanto com o quadro institucional de outras nações e com o meio internacional em seu conjunto, cada vez mais estruturado em torno de regimes internacionais compostos por padrões comuns e pela busca de estabilidade e de universalidade. Assim, pode-se dizer que uma constituição deve ser bem mais do que a “vontade geral” de uma nação. Ou seja, uma constituição não pode ser vista apenas e tão somente como um produto da vontade popular manifesta em um particular momento ou circunstância; é, também, uma peça jurídica das mais complexas que, além de expressar a vontade do povo que a produz, traz consigo muitas consequências, a maioria delas difíceis de serem previstas e analisadas, especialmente em um mundo marcado por mudanças tanto tecnológicas quanto institucionais. Essas mudanças, inevitavelmente, interferem continuamente na “vontade geral”, redefinindo objetivos e interesses para povos e países. São esses fatos que explicam a existência do campo de estudo do Direito Constitucional. Um campo de estudos organizado em disciplinas ministradas regularmente e em linhas de pesquisa e de reflexão praticadas nas centenas de faculdades de Direito espalhadas pelo país.

Discernir a relevância, o significado e mesmo os limites de cláusulas constitucionais é, na realidade, uma tarefa difícil até mesmo para esses estudiosos que observam, sistematicamente, os fatos e a experiência vivida tanto pelo próprio país quanto por outros países com diferentes trajetórias, nas suas construções constitucionais. Nesse quadro, que consequências decorreram do fato de a Constituição de 1988 ter desprezado o conhecimento jurídico? De forma objetiva, ao menos em duas oportunidades, a participação de juristas, especialistas em Direito Constitucional, foi claramente desprezada. A primeira oportunidade ocorreu na decisão de não se constituir uma Assembleia Constituinte específica, deixando a missão de produzir uma nova constituição para os deputados e senadores eleitos para mandatos regulares nas eleições de 1986.

O argumento para essa decisão foi a presunção de que deputados e senadores são suficientemente representativos da vontade política da nação. Assim, pela Emenda Constitucional 26 do Congresso, nos termos da Constituição de 1967, que ainda era vigente, os deputados e senadores eleitos para mandatos regulares nas eleições de novembro de 1986 (81 senadores e 478 deputados) foram formalmente declarados integrantes de uma Assembleia Constituinte, na sessão de instalação da Legislatura Ordinária do Congresso em 1º de Fevereiro de 1987.

A segunda oportunidade objetiva em que, formalmente, a experiência e os conhecimentos dos juristas foram desprezados, ocorreu na decisão tomada pelo Congresso de simplesmente ignorar todo o trabalho desenvolvido pela Comissão Afonso Arinos. Na realidade, os constituintes rejeitaram o relatório dessa Comissão com desprezo por aquele grupo “de elite”.

O estudo do Direito Constitucional no Brasil tem uma longa e rica tradição. Na realidade, a preocupação com os estudos constitucionais esteve ligada às origens dos cursos de Direito, desde os primeiros momentos do Brasil soberano e independente. Os registros históricos mostram que durante os trabalhos da Assembleia Constituinte convocada por D. Pedro I, o deputado José Feliciano Fernandes Pinheiro (futuro Visconde de São Leopoldo) apresentou, na sessão do dia 14 de Junho de 1823, a proposta de criação de uma Faculdade de Direito com o objetivo de formar quadros para as funções de Estado da jovem nação. Apesar de debatida, e depois aprovada em 11 de Novembro de 1823, essa proposta de criação de uma faculdade de Direito no Brasil foi abandonada, tal como ocorreu com a própria Assembleia Constituinte, cujos trabalhos foram interrompidos pela intervenção do Imperador D. Pedro I que, afinal, outorgou a primeira Constituição Brasileira em 1824.

Os primeiros cursos de Direito no Brasil – em Olinda e em São Paulo – foram criados apenas mais tarde, em 1827, e tiveram início em 1828. Os cursos previam cinco anos de duração e, no primeiro ano, o Curso de Bacharel em Direito se iniciava com o estudo do Direito Natural, do Direito Público e com a análise da Constituição Imperial Brasileira, que havia sido outorgada por D. Pedro I em 1824. Dessa forma, claramente, é possível dizer que, no Brasil, a preocupação com o estudo do Direito – em particular o Direito Constitucional – serviu até mesmo de motivação para a criação das primeiras faculdades de Direito no País. Essa digressão histórica evidencia uma questão importante, que merecia ser melhor compreendida: por que, na elaboração da Constituição em 1988, não se aproveitou os conhecimentos e a experiência de juristas em matéria constitucional acumulada desde os tempos da independência do Brasil?

Analisemos a estruturação da Constituição num Estado fraco e mal equipado para assegurar direitos, como é a nossa realidade. A Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, sob a presidência de Afonso Arinos, foi constituída pelo Presidente Sarney em Julho/1985 e concluiu seus trabalhos em Setembro/1986. Foi composta de 50 membros, tendo sido chamada de Comissão de Notáveis pois, além de grandes juristas, incluía personalidades da cultura e do pensamento brasileiro como Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes, Gilberto Freyre, Celso Furtado e Jorge Amado [cf. José Murilo DE CARVALHO, A Construção da Ordem. A Elite Política Imperial. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980; Edmundo Campos COELHO, As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia, 1822-1930. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999; Américo Jacobina LACOMBE, A Cultura Jurídica. In: Sérgio Buarque de HOLANDA, História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: DIFEL / Civilização Brasileira, 5ª. edição, 1985, Tomo II pp. 356-68].

Como já foi mencionado, uma constituição moderna e democrática, além de procurar refletir a “vontade geral” da nação, deve ser uma peça jurídica em condições de organizar com sucesso a vida associativa dos indivíduos e das organizações, conectando-a também a pessoas e organizações de outras nações próximas ou distantes. Nesse quadro, portanto, a Constituição deve incluir elementos de direito e também instituições nascidas da própria experiência associativa da nação, ao longo de séculos de história, assim como incorporar elementos oriundos da interação internacional, cada vez mais importantes para a geração de prosperidade das nações. A vida política, econômica e social das nações é, de fato, feita de muitas interações complexas para as quais a Constituição constitui peça de notável importância. Claramente, os deputados e senadores, ao desprezarem a experiência e o conhecimento de juristas – especialmente de constitucionalistas – desprezaram também esse fato de que uma constituição é mais do que uma expressão da “vontade geral da nação” expressa em manifestações populares, sendo também uma peça jurídica que conecta a nação a outras nações e, principalmente, conecta a nação com seu passado e com seu futuro.

Em uma atmosfera de inexperiência e de entusiasmo juvenil com as manifestações populares, os constituintes elaboraram uma Constituição que se presumia estar centrada na proteção de direitos individuais e sociais, entendendo que esses direitos só poderiam ser promovidos às custas de um Estado fraco. Ou seja, na ânsia pelo atendimento das manifestações populares, deixou-se de lado o fato de que as Constituições mais sensatas, mais duradouras e mais representativas de sociedades notáveis pela promoção de direitos individuais e sociais e pela prosperidade, são aquelas que levam em conta que é o Estado que garante a proteção dos cidadãos e de seus direitos. Assim, de forma equivocada, por desconhecimento, a Constituição de 1988 produziu um Estado mal estruturado, pobre de recursos, e pouco coerente com as forças em ação na ordem internacional.

Esse fato é visível na breve história de pouco mais de três décadas da Constituição de 1988 marcada por seguidas reformulações introduzidas no seu texto original. Com efeito, até o momento, essa Constituição já incorporou mais de 130 emendas e os registros disponíveis no Congresso mostram também que, neste momento, há dezenas de Propostas de Emenda Constitucional (PECs) em diferentes fases de tramitação tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal. Artigos mal formulados ou aspectos importantes ausentes ou considerados inadequados têm motivado seguidas alterações no texto constitucional original.

Ao longo de mais de 230 anos de existência a Constituição dos EUA incorporou apenas 27 emendas. A Constituição de 1988, ao contrário, em apenas 35 anos já foi objeto de mais de 130 emendas constitucionais. Além disso, a Constituição criou dificuldades institucionais para o cidadão que, embora tenha a declaração formal de seus direitos individuais e sociais, não pode contar com uma Justiça ágil e célere como ocorre nas grandes democracias do mundo. Os Artigos 5º, 6º, 7º, e 8º enunciam individualmente os mais de 120 direitos individuais, sociais, trabalhistas e até sindicais do cidadão, declarando estarem esses direitos sob a responsabilidade do Estado. Com essa enumeração detalhada, os constituintes tinham por objetivo promover direitos do cidadão. No entanto, ao fazê-lo nessa forma, a Constituição de 1988 tornou constitucional toda e qualquer demanda judicial ordinária. Na prática, o resultado é que, até mesmo quando há uma Justiça do Trabalho ou uma Justiça Eleitoral, processualmente, as demandas judiciais mais simples podem ir parar no STF. É o que explica as dezenas de milhares de processos atribuídos ao STF e também explica muitas das distorções na forma de atuação desse tribunal, entre as quais as mais notáveis são a subdivisão da Corte em “turmas” e o fato de que muitos dos despachos em nome do STF são, na realidade, prolatados por Ministros individualmente.

O resultado não poderia ser outro: uma justiça complicada, morosa, dispendiosa e, portanto, inacessível às pessoas mais simples. Outra dificuldade de natureza institucional, que torna a justiça mais lenta, mais inacessível e mais incerta para o cidadão comum, é o fato de que a prática corrente mostra que a Constituição de 1988 é um documento jurídico em estado de construção permanente, ao invés de ser um documento solenemente estável para servir de base e de referência à ordem econômica, social e política da nação. É como uma ponte ou um túnel em construção que, por mais bela e mais promissora que seja a sua arquitetura, sua utilidade plena só poderá ser atingida quando efetivamente pronta. Com efeito, enquanto as leis que nas grandes democracias são tramitadas de forma ordinária, no Brasil grande parte dos projetos de lei é tramitada no Congresso como projetos de emenda constitucional (PECs), porque algum aspecto da proposta pode se chocar com imperfeições na redação ou com exigências, por vezes desnecessárias e até descabidas, contidas na Carta Constitucional original.

Em relação ao STF e às Emendas Constitucionais 3, 22, 23, 45, 61, 103 e 122, elas introduziram modificações alterando os Artigos 101, 102 e 103. Quanto aos Artigos 39, 40 e 41, que tratam do servidor público e de seu regime de trabalho, as Emendas Constitucionais 18, 19, 20, 41, 47, 88 e 103 suprimiram ou acrescentaram algo à redação original. Vale lembrar a conhecida frase de Rui Barbosa: “Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” (extraída da mensagem “Oração aos Moços”, 1921). O entendimento que se extrai desses fatos é o de que ao menos duas conclusões se afiguram inevitáveis: a primeira, já mencionada, é que a Constituição de 1988, ao invés de servir como um referencial seguro para orientar a vida social e política nacional, é uma obra inacabada, em permanente estado de construção; a segunda conclusão inevitável é a de que, na verdade, a atual Constituição vigente não é a mesma de 1988; a profusão de PECs, gerou uma outra Constituição, substancialmente diferente daquela aprovada festivamente em 5 de outubro de 1988.

Brasília/Outubro/2023